Deus Lhe Pague escrita por Mariana


Capítulo 1
Capítulo 1




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Zé Waldisnei. 23 anos cronológicos. Na favela do Inferninho, em Osasco, mais um brilhante dia radiante de nuvens cor de poluição chegava. 06h13 da manhã. Hora de acordar, e Zé nem sequer reluta. Liga o Stereo Sound que comprou no último Natal, em 36 parcelas quase imperceptíveis e vai se trocar. Escolhe a dedo a mesma camisa social que vestiu no dia anterior, na terça-feira e também na segunda. Dirige-se à cozinha, que fica junto à sala, separada do quarto apenas por uma meia-parede de tijolos que ainda não viu o acabamento, enche um copo americano com leite gelado, pega um pão de ontem e, com pressa, se alimenta. 

Antes de sair, para diante da imagem de Nossa Senhora com detalhes prateados, principal e  único objeto de decoração da sua casa, realçando a parede azul. Com pressa, faz uma oração, o nome do Pai e se retira. 

O ônibus está lotado, como de costume. O oxigênio suficiente para garantir sua sobrevivência no penoso trajeto até o Jardim Joelma é o suficiente. Ao entrar, cumprimenta Milton, o motorista, com um sorriso irônico, que deixou subentendido a alegria por seu Palmeiras ter vencido o Corinthians de Milton. Em contrapartida, ele, que era mais amigo do que motorista e tinha um temperamento forte, apenas deu um tapa de leve no ombro de Zé, tencionando demonstrar indiferença quanto ao resultado do jogo. 

Pelo trajeto, Waldisnei, involuntariamente, observava a tudo e a todos com um sorriso escancarado – e nem por isso menos espontâneo – na cara. Não podia deixar de ver beleza no seu cotidiano. Estar vivo, por si só, já era uma graça. Durante toda sua adolescência precoce, estivera várias vezes em casas de detenção para menores. O pai, ele não conheceu. A mãe, quisera ter tido a mesma sorte. Fora criado pelo irmão mais velho, João Aparecido, que morrera durante uma troca de tiros entre a Polícia Militar e os traficantes do Inferninho, havia já cinco anos. 

Quando tudo parecia dar errado, Zé recebeu o amparo de Sílvio, um amigo de seu recém-falecido irmão. Sílvio se comprometeu a ajudá-lo com alimentação em troca de Zé cursar o supletivo e se manter longe das drogas, destino de oito a cada dez meninos dali. Três anos depois, com o diploma na mão e uma renda de trezentos reais conseguida como office boy, Waldisnei recebeu a proposta de Silvio: "vagou um lugar lá no meu escritório, se quiser mesmo ter um futuro, posso investir em um curso rápido pra você me ajudar com a matemática". 

Zé reconheceu aí a sua chance de crescer e, com uma gratidão sem tamanho, topou fazer o tal curso. Sempre gostou de números, equações e fórmulas, embora pudesse contar nos dedos os amigos e os momentos de plenitude que vivenciara até ali. Agora, de pé, no ônibus, era para o escritório de Silvio que ele se dirigia, sempre satisfeito.

Nos acentos ao lado, duas moças comentavam empolgadas sobre o capítulo da novela das nove que tinha ido ao ar na noite anterior. "Você viu a cena em que o Robertinho, filho da empregada, entra no quarto da patroa e pega um colar? Ouvi falar que ele é filho dela, e a empregada pegou pra criar porque a Tereza tinha engravidado do José Mayer, que na época não quis assumir". Zé se lembrou desse trecho. Enquanto esperava o jogo começar, ligou a TV e como o programa do Ratinho estava no comercial, deixou lá na novela, mesmo. 

A condução passava agora por um prédio que estava sendo construído. A cada dia que passava ele se tornava maior e adquiria características próprias. A obra era grandiosa. Zé até se curvou, no corredor do ônibus, para ver o topo da construção. "Um exagero", pensava ele.

Mais alguns quarteirões, uns minutos perdidos com o congestionamento e Waldisnei puxa a corda acima de sua cabeça, dando sinal de que iria descer no próximo ponto. O veículo para e ele desce. Dali até o seu endereço final, uma caminhada de aproximadamente trezentos metros. 

Na rua, observa alguns bêbados que provavelmente viraram a noite em botecos, jovens moças arrumadas, com saias quase imperceptíveis – como as parcelas do seu Stereo Sound – voltando de alguma festa e alguns semelhantes: vendedores ambulantes montando suas barracas na esperança de um dia rentável, autônomos oferecendo CDs e DVDs piratas para a garantia da refeição diária e tantas outras pessoas andando com pressa para chegar ao trabalho.

Zé finalmente entra no escritório, vai até a sua sala – que também é a sala de outros três contabilistas – e deixa sua pasta sob a mesa, não antes de cumprimentar animadamente Arantes, um de seus colegas que já estava lá. Dirige-se até a cozinha e solta um "Bom dia" animado para Madalena, a empregada que acaba de coar o café. Madalena, espalhafatosa como era, corresponde com a mesma saudação e já avisa que o café está saindo. Nesse meio tempo, pergunta, então, se Zé ouviu falar do caso da puta no Tietê.

"Não, não deu tempo de ler o jornal, ainda".

"Pois é, menino. Um mocinho filho de juiz pegou uma puta aí e parece que ela lembrou quem ele era, de umas festas da faculdade que ela ia ganhar o pão dela. O menino, nervoso, falou que se ela contasse alguma coisa, a vida dela ia virar um inferno. Ela, tirando proveito, ficou fazendo chantagem e ele foi de madrugada até uma ponte que cruza o Tietê por cima, parou o carro e atirou a mulher lá de cima. Foi encontrada agora de manhã, ouvi no rádio enquanto tava no ônibus". 

Madalena era a fonte de informações trágicas oficial de Zé. A cada dia era um novo caso que ela contava com a mesma naturalidade como quem comenta um filme, uma novela. A realidade deturpada em que presenciamos despejou dentro de nós um anestésico para não desanimarmos com essas atrocidades. A vida de Zé nunca foi fácil e, se ele não tivesse "pessoas maravilhosas para guiar" o seu caminho, sabe-se Deus o que teria acontecido. Dentro do dia-a-dia de milhares de pessoas, alguns se tangem, tantos outros viram manchete. 

Após tomar o seu café, Madalena ligou seu MP3 e foi fazer suas obrigações. Enquanto ninguém aparecia para que ela pudesse comentar o caso da puta, faria seu serviço ouvindo um sambinha. Zé, por sua vez, foi cuidar dos números de Silvio, estava feliz por ser útil. O seu futuro, se fosse igual ao presente, estava de bom tamanho.


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