Acordo e percebo que minha caixa sumiu. Olho para cima e vejo Daniel mexendo na mochila.

- Você não disse que só precisa das cordas? – pergunto.

- E só preciso – ele fecha a mochila.

- Então o que você estava fazendo com a mochila da Aisha?

- Essa mochila não é da Aisha. Ela está morta – ele fala sem piedade e meus olhos se enchem de lágrimas.

- Poderia ser menos insensível? – tento não gritar.

- Só estou sendo realista. Mesmo que a realidade doa, essa é a verdade – ele joga a mochila no chão.

- Poderia ter cuidado com coisas que não são suas? – dou ênfase na palavra “não”.

- Talvez eu possa ter.

- Por que está sendo tão ignorante comigo? – grito.

- Cale a boca, sua estúpida! Você quer que nos encontrem? – ele olha furioso pra mim.

- Pare de ser tão grosso! Precisamos ficar juntos e achar os outros porque somos do mesmo distrito! – não acredito que estou chorando.

- E daí que somos do mesmo distrito? Isso não significa que temos que ficar juntos!

- Por que você não quer a minha companhia? – as lágrimas de ódio caem incessantemente.

- Eu não quero a companhia de ninguém! Eu estou me virando muito bem sozinho desde que eu cheguei aqui. Não precisei, não preciso e não vou precisar de ajuda nenhuma – ele cospe as palavras na minha cara.

- E desde quando eu te atrapalhei em alguma coisa? Desde que eu te encontrei nessa porcaria de Arena, a única coisa que eu fiz foi te obedecer! Ficar que nem uma idiota correndo atrás de você e só fazendo o que você quer! Se isso é te atrapalhar, então eu não sei mais o que fazer! Talvez eu tenha que mandar agora – olho com raiva no fundo dos olhos dele. Ele continua calado apenas me encarando. Cheio de ódio nos olhos.

- Se quiser continuar comigo, continue – ele começa a andar.

Eu sou tão idiota a ponto de segui-lo?! Eu não consigo acreditar no que eu mesma estou fazendo! Ele é tão ridículo! Se acha o superior, e eu, idiota, continuo andando atrás dele... Mas eu não tenho escolha. Ou eu o sigo, ou continuo sozinha. E estando sozinha é o jeito que eu mais tenho chances de morrer. E eu prefiro continuar viva.

Não devia ter pedido tanto pra me encontrar com o Daniel. Ou até mesmo pedido tanto para que ele estivesse bem. Se eu soubesse esse tempo todo, desse idiota que ele é, provavelmente eu teria pedido para que ele estivesse morto.

Ando ao seu lado. Mas a partir de agora não vou obedecê-lo. Vou andar com a cabeça curvada. Parar de ser idiota. E estúpida, como ele mesmo cuspiu isso em mim. Ele não vai mais mandar em mim. Não vai. Chegando a um lugar fechado, nossos aparelhos começam a apitar bem alto. Procuro pelo muro e o encontro. Pego minha faca e o corto. O líquido azul começa a jorrar e minhas mãos ficam imóveis.

- Droga! – saio de perto – Rápido, pega as garrafas d’água!

- Vai gastar a nossa água pra que? – ele pergunta.

- Nossa água? Nossa? Primeiro você diz que quer ficar sozinho e depois diz que a água é nossa? Eu preciso dessa água. Da minha água! Pega AGORA! – mando. Ele pega na mochila, mas todas já estão vazias – Droga! Rápido, preciso de água. Me ajude a encontrar! – começo a andar rápido. Ouço os passos de Daniel. Não acredito! Ele está me seguindo! Estou finalmente no comando! Estou começando a gostar disso... Dou um sorriso de canto de boca e continuo andando.

Vai ser difícil encontrar água, porque ela pode aparecer a qualquer momento e em qualquer lugar. E agora que eu preciso, não vou encontrar.

Andamos por vários lugares sem encontrar nada, então, entro em um lugar que depois de andar mais um pouco, não encontro saída.

- Estamos presos? – Daniel pergunta e começa a socar as paredes.

- Estamos. Não vai adiantar ficar batendo nas paredes. Elas somem a qualquer momento. Vamos ter que esperar – olho para o lado e vejo uma faca enorme no chão – Ei Daniel, pega essa faca – ele olha e vai até lá, se abaixa e pega – Agora tenta cortar esse muro. Se não, não vamos sair daqui até ele sumir – ele encosta a ponta da faca no muro e tenta cortar. Ele consegue fazer um arranhão – Continue. Faça um retângulo em que consigamos passar – ele revira os olhos e continua cortando o muro. Sorrio com minha autoridade finalmente alcançada.

Ele passa um tempo cortando a parede. Parece que paredes que não tem comida são mais duras de serem cortadas. E quando ele finalmente termina de cortar tudo, chuta com o pé e a parte cortada cai fazendo muito barulho. Desnecessário, pois, logo em seguida a parede some.

- Ótimo! Tanto trabalho pra nada – Daniel reclama.

- Anda logo – o empurro.

- Você machucou as minhas costas – ele olha pra mim com raiva e reclama de novo.

- Ai, coitadinho – ironizo – Minhas mãos estão paralisadas! Nem senti que te encostei. Agora vai – continuamos procurando água. Encontro um lugar para ficar e resolvo parar – Espero que apareça água aqui.

- Vou fazer uma armadilha aqui pra caso alguém apareça.

- Ótimo. Faça isso mesmo – ele me olha irritado. É tão bom deixá-lo furioso! Depois de toda ignorância, ele merece isso.

Ele se abaixa ao lado de uma caixa e amarra a corda. Vai até o outro lado e amarra bem forte em outra caixa.

- Pronto, agora quem passar por aqui correndo, vai cair. E nós poderemos o pegar mais rápido.

- Nossa, falando com “nós” na frase. Que generosidade da sua parte – digo irônica. Me levanto e mecho na corda com o pé – É, está bem colocada. Só espero que alguém passe por aqui pra não termos colocado a toa – consigo o ouvir rosnando de raiva. Adoro isso!

Depois de um tempo, nossos aparelhos começam a fazer barulho. Pelo tempo de estarmos aqui e o barulho só começar agora, provavelmente deve ser água. Procuro uma caixa para ficar em cima enquanto o chão for abrir. O chão começa a tremer e aparece água bem ao lado de onde Daniel amarrou as cordas. Me abaixo e começo a lavar minhas mãos. Sinto o alívio de poder senti-las de novo percorrendo pelo meu corpo. Encho as garrafas d’água e me levanto. Quando olho para frente, vejo alguém correndo em minha direção.