O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 8
II.2 O feitiço do mal.




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Lá fora caía uma chuva miudinha, própria daquela altura do ano. Não estava frio, mas o tempo estava desagradável e Kang Lo preferiu não sair naquele dia. Treinava-se à mesma, como se estivesse sob o céu imenso das montanhas, dentro das paredes rochosas da caverna.

O rosto do lutador escorria suor. A respiração era apressada. As pernas agitaram-se no ar, uma e duas e três vezes, a golpear inimigos imaginários, a fazer voar a poeira da gruta em seu redor. Endireitou as costas, fechou os olhos. Concentrou-se e deixou-se ficar.

Ao fundo, sentado à mesa de pedra, Zephir lia em silêncio o “Livro de Babidi”. Os dedos descarnados folhearam uma página. Desde que regressara das montanhas com o livro de capa negra, nunca mais o deixara. E também nunca mais comera ou bebera ou dormira e passara os últimos sete dias a ler os mistérios de Babidi encerrados naquele manual supremo de feitiçaria. Por cada frase que lia, por cada página que virava, por cada folha que deixava para trás, sentia-se cada vez mais esmagado e insignificante. Babidi sabia tanto! E ele, que se julgara tão poderoso, que se considerara um grande feiticeiro, via agora que não era nada. Ao pé de Babidi, convertido num espectro azul de uma criatura horrenda e disforme, Zephir não passava de um mero aprendiz. E, à medida que a sua leitura se aprofundava, aumentava o desprezo de Zephir por Babidi. Aquele maldito zombava dele e das suas pretensões desde o Outro Mundo, ao conhecer os seus planos de conquista do Universo.

Afastou esse pensamento ingrato. Babidi poderia estar a escutá-lo e ficaria ofendido. Afinal, o espírito contara-lhe sobre o livro e confessara-se disposto a ajudá-lo. Não o deveria desonrar e aceitava com piedade, dissimulando a raiva, ser o instrumento dele.

O seu objetivo mais imediato era invadir o Templo da Lua, esmagar e destruir todos aqueles que o tinham expulsado e sentar-se no Trono de Marfim do Salão da Luz. Depois, naturalmente, seguir-se-ia o Universo. Quando chegasse, enfim, o momento glorioso de se intitular Senhor de Todos os Mundos, Zephir teria cumprido a sua parte do acordo com Babidi e logo encontraria uma maneira de se livrar do espírito. Não desejava tê-lo eternamente colado a si, a lembrar-lhe promessas passadas. E chegaria uma altura em que Babidi poderia tornar-se demasiado exigente…

Mas o momento de se livrar de Babidi teria de ser bem escolhido. Nunca o poderia fazer antes de saber tudo o que ele sabia. A astúcia era uma das principais características dos grandes feiticeiros e Zephir iria agir com inteligência naquele assunto.

Sorriu a olhar para a sombra esguia que o dedo fazia sobre as folhas amarelas do livro. E tudo teria começado no Templo da Lua. Assim ficaria escrito.

Mais uma página. As últimas folhas estavam preenchidas com inúmeros conjuros antigos. Lia os feitiços e continuava a pensar.

Sabia muito bem que não lhe bastava a magia para encetar o assalto e a conquista do Templo da Lua. Ele era só um, enquanto dentro dos muros do Templo existiam, pelo menos, cem monges e cem sacerdotes, que, por muito mal treinados que estivessem nas artes mágicas, não teriam dificuldades em desembaraçar-se dele com um ataque bem dirigido e uma boa estratégia de defesa. Para o ajudar, precisava de alguém que conhecesse as artes da luta, que fosse forte, aguerrido, ambicioso e impiedoso. Precisava do maior lutador do mundo e encontrara-o em Kang Lo. O homem podia não ser o melhor, mas queria sê-lo e essa ambição fazia-o vulnerável. Com meia dúzia de promessas, conseguiria de Kang Lo o que quisesse. Bastava acenar-lhe com a possibilidade de ter mais poder em pouco tempo e teria nele o mais fiel dos aliados.

Kang Lo despertou da concentração. Relaxou os músculos, respirou fundo várias vezes, preparou um novo exercício. Zephir não teve necessidade de se voltar para ver os movimentos do lutador. Aquele seria fácil de subjugar, com uma mente tão simples e acessível. Não fora difícil enfeitiçá-lo de maneira a que ele não fizesse perguntas sobre o livro de capa negra que aparecera de repente nas suas mãos. Tanto quanto Kang Lo sabia, o livro sempre estivera na gruta e quando achava estranho esse pensamento e tentava lembrar-se de algo mais, a cabeça doía-lhe tanto que desistia e esquecia o assunto.

Na folha seguinte, Zephir viu algo interessante. Um conjuro que desconhecia, algo novo e particularmente útil para os tempos vindouros. Com olhos ávidos leu a página demoradamente, sublinhando com o dedo mirrado todas as palavras.

Aprendeu que poderia utilizar as más intenções e as emoções erradas em seu proveito. O processo era simples. Bastava conseguir entrar no espírito de alguém com um coração impuro, imprimir neste a sua voz e roubar-lhe a alma. O outro perderia para sempre o controlo de si próprio. Deixaria de pertencer ao mundo onde nascera e renascia para um outro mundo – o mundo do mal, o Makai. Em troca da alma e do coração entregues ao Makai havia mais energia vital e mais poder. No caso dos guerreiros torná-los-ia praticamente invencíveis. Aquilo que Kang Lo precisava para ser o melhor lutador do mundo estava ali.

Chegara a hora da partida para o Templo da Lua!

Zephir inspirou profundamente. Fechou o “Livro de Babidi” pela primeira vez em sete dias. Aprendera o suficiente para prosseguir com os seus planos mais imediatos. Tomou consciência que tinha fome, sede, que sentia cansaço. Compreendeu que as suas vestes estavam sujas e rasgadas, que o corpo estava pegajoso e imundo. Ignorou essas necessidades mesquinhas e voltou-se lentamente para Kang Lo que se dividia em socos e pontapés na caverna, golpes tão rápidos que se tornavam invisíveis. Ao se sentir observado, Kang Lo parou.

- Tens feito progressos? – Perguntou o feiticeiro sem emoção na voz.

Kang Lo deixou-se ficar de costas voltadas, a recuperar da fadiga dos treinos.

- Tenho. Os treinos aqui dentro ajudam, mas preciso de o fazer lá fora, para dominar melhorar os ataques flamejantes.

- O que são ataques flamejantes?

A voz de Zephir era tão monocórdica que Kang Lo duvidou do genuíno interesse pelos treinos, mas aceitou responder.

- São ataques baseados em energia – explicou. – Com a concentração adequada, reúne-se energia vital para enviar bolas de fogo, ou anéis, ou discos, ou raios, ou o que quer que seja… depende da técnica. Existem várias técnicas que utilizam os ataques flamejantes. Têm um poder de destruição muito superior ao de um vulgar soco ou pontapé e têm a vantagem de não precisarmos estar perto do adversário para atacarmos. E, se o nosso adversário não conhece a técnica ou não possuir a energia necessária para ripostar o ataque, a nossa vitória é certa.

Zephir sorria. Kang Lo perguntou agastado:

- O que foi que disse que achas assim tão engraçado?

- A tua conversa sobre os ataques flamejantes. Da maneira como falas, parece que é alguma coisa de muito especial.

A cara de Kang Lo ficou vermelha de raiva. Deu um passo em frente, pronto para seguir o instinto e apertar o pescoço de Zephir, mas parou logo a seguir, admirado por ver surgir na mão descarnada do feiticeiro uma pequena bola azul muito brilhante, rodeada de faíscas. A bola flutuava diante da cara de Zephir e Kang Lo assustou-se com o que viu. Parecia que estava a olhar para um fantasma diabólico, a luz azul a acentuar as covas do rosto, as olheiras e as pálpebras inchadas, alongando-lhe o nariz e convertendo a boca sem lábios numa fina linha retorcida naquilo que se assemelhava a um sorriso.

Pela primeira vez, Kang Lo sentiu medo de Zephir.

- Vês, Kang Lo? – Disse o feiticeiro, fazendo sumir a bola azul fechando os dedos da mão mirrada. A cara voltou ao normal. – Eu também sei reunir energia e transformá-la em bolas de fogo.

Foi a vez de Kang Lo zombar de Zephir.

- Só que isso não é um ataque flamejante! – Exclamou.

- Não?

O lutador gritou com todo o ar dos pulmões. As paredes da caverna tremeram com o grito. O cabelo ruivo de Kang Lo ondulou, o corpo rodeou-se de uma fina capa luminosa. Estendeu o braço direito e da mão saiu um raio amarelo, quente e brilhante, que foi explodir numa parede da gruta, transformando-a num monte de rochas. A água brotou entre as rochas e uma nova fonte nasceu na caverna. Endireitou as costas e concluiu soberbo:

- Isto é que é um ataque flamejante!

Zephir lutou interiormente para não deixar transparecer o quanto estava impressionado. Nunca julgara que aquele homem pudesse ser tão forte.

- Vejo que és um grande lutador, Kang Lo – disse Zephir pausadamente. – Possuis um enorme poder dentro de ti e um talento inigualável. Mas posso tornar-te ainda mais poderoso.

Kang Lo perguntou desconfiado:

- Como?

- Se concordares em ajudar-me…

- Ajudar-te? – E Kang Lo começou a sentir-se tonto só de olhar para a cara inexpressiva de Zephir. – Sim, já me tinhas dito que se te ajudasse conseguirias descobrir a identidade daquele guerreiro que guarda o planeta com os amigos e os filhos. Agora dizes-me que me fazes mais forte?

Zephir não esboçou nenhum sinal, nem respondeu.

- Mas só se eu te ajudar… – balbuciou Kang Lo.

A tontura tornou-se insuportável e o lutador desviou o olhar do feiticeiro. Disse, com desprezo, sem encará-lo:

- Como é que podes fazer-me mais forte? És algum mestre de artes marciais, por acaso? Conheces alguma técnica fantástica que permita multiplicar as forças em pouco tempo? Bah!… Se nem sabes fazer um ataque flamejante de jeito… Como é que queres que acredite em ti? – Irritado, Kang Lo esqueceu a náusea que o atacara e olhou novamente para o feiticeiro. – Troças de mim, Zephir?!

- Não. Nunca o faria, Kang Lo. Quando digo que posso ajudar-te a tornar-te mais forte, estou a ser sincero.

O feitiço estava a enervar o lutador. A cara torceu-se com a ira que lhe incendiava o peito e fazia o sangue bombear acelerado por todo o corpo em ebulição. Zephir exigiu, no mesmo registo pausado:

- Em troca quero a tua colaboração. Promete-me que me ajudas e faço de ti o homem mais forte do Universo.

Kang Lo arfou, cada vez mais tonto. Agora já não era capaz de deixar de olhar para ele, apesar de as tonturas serem insuportáveis.

- Promete-me.

O tom de voz de Zephir indicava que não passava de um pedido, mas Kang Lo entendeu-o como uma ordem. E gaguejou:

- Prometo-te… Prometo-te que irei ajudar-te… no que quer que seja… Sou o teu instrumento, a partir de agora – abanou a cabeça para sacudir uma sonolência esquisita.

Zephir sorriu abertamente. Confessou:

- Nunca te disse, mas sou um feiticeiro, Kang Lo. Conheço um conjuro que te pode dar uma força imensa. Posso transformar-te no homem mais forte da Terra, se te entregares aos meus poderes e se confiares em mim.

- Confio…

- Ainda bem.

- Se ficar mais forte, poderei voar?

Não estava à espera de uma pergunta daquelas. A hipnose que aplicara naquele brutamontes sem miolos, para lhe controlar a mente e fazer com que não recusasse subjugar-se, fora talvez demasiado forte e fizera estragos. Perdera o juízo. Ou talvez a pergunta fosse legítima. Kang Lo prosseguiu, babando-se:

- Ele voa… É… é uma técnica que me falta aprender. Bukuujutsu… Depois de tantos anos de treino ainda não descobri esse segredo. Domino os ataques flamejantes, um sem fim de técnicas de luta, mas voar… Sei que a energia não me falta, que o poderia fazer neste momento, mas… mas não sei como fazê-lo…

- Não te preocupes – sossegou Zephir. – Com este feitiço poderás fazer tudo o que desejas.

Kang Lo desenhou um sorriso selvagem e inchou de vaidade.

O feiticeiro respirou fundo, ruidosamente. Levantou-se do banco onde se sentava e o lutador recuou quando o viu aproximar-se. Humedeceu os lábios, observando Kang Lo. Para além dos traços fortes e bem marcados do corpo moldado por anos de treino intensivo viu-lhe os pensamentos, a alma, o coração. Cheios de impaciência, orgulho e desprezo. Não poderia haver erros. Se os houvesse, Kang Lo poderia pensar que o estava a enganar e atacá-lo-ia. Não lhe seria difícil desfazer-se dele, que estava magro e fraco devido ao jejum da última semana. Sem erros, portanto.

Alçou os braços esqueléticos. Devagar e com cautela, entrou na mente de Kang Lo. Reuniu os sentimentos mais sombrios e fê-los seus. Trouxe-os para a superfície, ampliados, tornou-os físicos. A dor foi insuportável. Numa convulsão repentina, Kang Lo caiu de joelhos no chão da caverna, dobrado sobre o estômago, a gritar como um louco. Instintivamente, retraiu-se e escondeu os pensamentos do feiticeiro. Mas era tarde demais. Kang Lo já não era dono da sua mente, Zephir estava lá dentro, contaminando todos os cantos, estendendo os dedos, tocando, arranhando. Uma presença tão real que era palpável e impossível de aguentar. O lutador rebolou pelo chão, aos gritos, agarrado à cabeça.

Zephir sorriu. Fora fácil apoderar-se da mente do homem que berrava descontrolado a seus pés. Passava à etapa seguinte com mais confiança, extrair a maldade e convertê-la em força. Perturbado com as dores que sentia na cabeça e por todo o corpo, Kang Lo queria escapar-se do domínio do feiticeiro, o bem a lutar contra o mal.

- Não resistas, Kang Lo! - Ordenou o feiticeiro.

Os gritos do lutador ecoavam nas paredes rochosas. O corpo tremia em ondas de energia, os músculos e as veias pareciam querer rebentar.

- Não! Não! - Berrou Kang Lo desorientado.

- Não resistas! - Tornou Zephir, esforçando-se para manter o feitiço.

- Não!!

- Entrega o que falta e a tortura acaba. Basta quereres. É tão simples!…

- N… Não… – balbuciou dormente.

O lutador parou de se debater. Zephir sentiu claramente o momento em que Kang Lo se entregou ao poder negro do mundo do mal. O corpo ficou imóvel, enrolado no chão rugoso da caverna, debaixo da sua sombra esguia e fantasmagórica. Baixou os braços lentamente, com um sorriso maquiavélico no rosto.

- És meu! – Murmurou Zephir triunfante.

Kang Lo estremeceu. Apertou os punhos com força. O cabelo ruivo estava todo eriçado e chamuscado nas pontas. Quando se levantou, Zephir foi capaz de sentir que a energia que emanava se tinha multiplicado. O corpo duplicara de tamanho, com enormes músculos salientes sob a pele morena, grossas veias a pulsar com cada batida do coração.

- Bem-vindo à tua nova existência, Kang Lo – disse.

Kang Lo ergueu a cabeça. Os olhos tinham mudado. Neles havia o brilho do mal… Zephir gostou. Estava orgulhoso do seu trabalho. Kang Lo também. Sorriu primeiro e depois desatou a rir à gargalhada, plenamente consciente de que era muito forte, muitíssimo forte.

Na testa, cravado a negro, entre os olhos, estava marcado para sempre um “M” rebuscado – o símbolo maldito do Makai.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
O desafio.



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