O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 23
IV.5 Aliados, súbditos e escravos.




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Tinham já passado cinco dias.

Zephir reinava no Templo da Lua, sem interferências.

O dia tinha nascido havia pouco tempo. Ritualmente, como se acostumara a fazer durante todos os anos em que ali vivera, foi prestar homenagem à Deusa Suprema da Noite. Queimou incenso, murmurou a oração das madrugadas, ficou em meditação a contemplar a escultura negra enfeitada com o colar de flores brancas.

A seguir, encaminhou-se para o Salão da Luz e sentou-se no Trono de Marfim. Respirou deliciado o ar sagrado do lugar. Tudo aquilo lhe pertencia. As colunas que orlavam o salão, os magníficos vitrais do teto, as lajes polidas do chão, o esplendoroso trono.

Pensativo, levou uma mão ao colar dourado que usava. As Insígnias Sagradas da Lua. Era agora o Sumo-sacerdote e sorriu ufano, mas logo um pensamento lhe roubou a satisfação. Era o magno senhor de um templo deserto. Reinava sobre ninguém.

Olhou em redor. A imagem que tinha do Salão da Luz era de um local de veneração e de companhia. Quando entrara ali pela primeira vez fora no dia em que se ordenara monge, após um longo período como aprendiz de feiticeiro. Tinha sido há tanto tempo, que parecia noutra vida.

Lembrava-se nitidamente. O êxtase que reprimira por estar num sítio tão belo. O coração a bater como um tambor. A busca da face da Deusa Suprema da Noite em cada brilho. O Trono de Marfim envolvido numa luz branca sobrenatural. Os sacerdotes solenes ao longo da passadeira vermelha, bordada a ouro, que se estendia desde os degraus do estrado do trono até à porta dupla do Salão. Atrás dos sacerdotes, os monges nos seus hábitos brancos, entoando cânticos de louvor aos céus da noite. O Sumo-sacerdote a orientar o cerimonial. O pedestal dourado onde repousava um pequeno cofre que encerrava dentro a Chave de Cristal que abria a Sala Sagrada. Os aprendizes recebendo a consagração. O incenso a perfumar o ambiente mágico. Uma grande família unida pelo amor aos mistérios da Deusa.

Os ecos desse dia magnífico sumiram-se numa espiral de silêncio. Zephir endureceu o olhar, amaldiçoando a sua fraqueza. Não se permitiria sucumbir a estúpidas recordações, de um tempo em que era inferior a qualquer um dos imbecis que ali tinham servido. Levantou-se do trono e lembrou-se que não estava arrependido da decisão que tomara e que levara Kang Lo a assassinar todos os habitantes do Templo da Lua. Se não tinha súbditos que o temessem, obedecessem e adorassem, iria criá-los.

Ajeitou o manto vermelho nos ombros e desceu vagarosamente os degraus de mármore do estrado. Entrou numa câmara, para a qual se acedia através de uma pequena porta dissimulada, situada atrás do Trono. Nesse pequeno compartimento guardavam-se as Insígnias Sagradas da Lua – que incluíam, para além do colar que tinha ao pescoço, uma coroa e um cetro de prata – e o cofre da Chave de Cristal. Agarrou na chave e saiu.

Os seus passos reverberaram sinistramente pelos corredores vazios e ainda mergulhados na penumbra. Os primeiros raios de sol surgiam no horizonte e devolviam o calor às paredes, salas, quartos, câmaras e santuários do templo. Passou pelo pátio interior onde se erguia a estátua da Deusa Suprema da Noite, que era ainda mais bela quando beijada pela luz da manhã. Sabia que podia contar com o apoio dessa entidade que lhe norteava os destinos desde menino e que a Deusa, aquela que representava a lua, que era ventre e túmulo, a eterna companheira da magia e do oculto, estaria permanente e incondicionalmente ao seu lado na próxima tarefa: conquistar a Terra!

A mágoa aninhou-se, por momentos, no coração do feiticeiro. A sua deusa amada era apenas memória, porque a lua não existia fisicamente. Tinha desaparecido misteriosamente dos céus noturnos, havia vinte e cinco anos.

Devia ser a solidão abafada do lugar que o fazia regressar aos tempos antigos. Relutante, convocou nova recordação, desta feita aquela relacionada com o desaparecimento da lua.

Era uma noite bonita, muito clara e quente. Monges e sacerdotes partilhavam bolos e vinho, numa celebração informal em honra da Deusa, que se mostrava tão magnífica na sua plenitude. Os aprendizes espreitavam-nos, num grupo separado, não ousando juntar-se-lhes. De repente, toda a luz que abençoava aquela noite desvanecera-se numa explosão mais forte. Os monges e sacerdotes presenciaram o fenómeno estupefactos. A lua morria numa nuvem de destroços, vapor e poeiras brilhantes e ficara o vazio no céu violeta. A Deusa Suprema da Noite desaparecia. Ficara apenas a estátua negra, como uma lembrança fugaz daquilo que existira outrora.

Após o cataclismo, o Templo da Lua vivera os seus piores dias. Fizeram-se inúmeras penitências e sacrifícios rituais. O Sumo-sacerdote da altura suicidara-se para honrar o templo e a Deusa, um par de monges e outro de sacerdotes que tinham assistido à morte da lua foram sacrificados, Zephir recolhera-se em meditação profunda.

Mas o templo conseguira sobreviver à tragédia desse dia. Reerguera-se com regras mais rígidas e isolara-se ainda mais do mundo exterior. Aumentara o poder, baseado nas artes negras e na magia, passara a selecionar os seus membros com redobrada exigência. E agora iria conhecer o auge, pensava Zephir com um sorriso malvado.

Dirigiu-se aos subterrâneos. Desceu a escadaria, a segurar uma tocha para iluminar o caminho. Os degraus, escurecidos e corroídos pelos anos, abriam para as caves, em que as paredes eram rugosas e ásperas, como as das grutas. A sombra que o feiticeiro projetava nelas ondeava fantasmagoricamente, à medida que avançava. Naquele lugar frio, húmido e assustador situavam-se os oráculos da Deusa, câmaras secretas habitadas por espíritos, o seu santuário, uma sala que costumava usar para meditar e entrar no Reino dos Espíritos. Abriu a porta estreita e baixa, as dobradiças rangeram com o peso da madeira apodrecida.

A sala era pequena e comprida, pouco mais larga que a porta que lhe dava acesso. As paredes eram rochosas e o chão imitava as paredes. Ao fundo tinha uma mesa, que fazia as vezes de altar, coberta com uma velha toalha branca. Entre dois castiçais acesos, a cera das velas derretendo-se languidamente, estava o “Livro de Babidi” aberto.

Zephir começou a folhear o livro. Havia uma passagem sobre criaturas demoníacas que recordava ter lido, quando estudara os ensinamentos daquele manual na caverna de Kang Lo.

Para tudo haveria de encontrar uma solução e não se deixaria derrotar pelas aparentes contrariedades.

Achou a página que procurava, inserida num capítulo dedicado a diversos entes que podiam nascer através de conjuros. Não lhe prestara muita atenção quando o lera pela primeira vez, mas sabia que um dia iria ser-lhe útil.

Havia de tudo um pouco. Poderia criar grifos, harpias, górgonas, vampiros, demónios e toda a espécie de seres das trevas. Alguns conhecia, outros não, analisava Zephir, sublinhando as linhas com o dedo escanzelado.

Já estava quase no fim do capítulo e ainda não tinha encontrado o que queria. Todas as criaturas que se lhe apresentavam descritas eram bastante poderosas e malignas, mas eram demasiado vulneráveis também. Tinham um ou outro ponto fraco que o desagradava.

Nisto, os olhos brilharam, o dedo deteve-se em cima daquele nome.

Kucris!

Era aquela espécie de criaturas que lhe interessavam. Fortes, leais, obedientes, letais… Desprovidas de alma, incarnavam o próprio mal. Não pensavam, não tinham sentimentos e nunca sentiam remorsos. Eram impiedosos, obstinados e, detalhe curioso, sabiam combater.

O rosto iluminou-se com a satisfação de ter descoberto o que procurava. Esfregou as mãos uma na outra e preparou-se para realizar a magia que lhe permitiria obter os kucris. Seriam perfeitos. Para além de obedecerem cegamente ao seu criador, iriam também proteger o Templo da Lua de possíveis intrusos. Kang Lo era um excelente lutador, mas era apenas um. Não podia estar em todos os sítios ao mesmo tempo.

Releu o feitiço com cuidado. Teria de colocar uma pedra embruxada dentro de um vaso cheio de areia. Consoante a cor da pedra, assim seria a cor dos kucris. Saiu dos subterrâneos para obter o material necessário. Numa saleta, encontrou um pequeno pote azul, com uma cintura de desenhos mágicos, normalmente utilizado para realizar oferendas à Deusa. Fora dos subterrâneos, no pátio, esgravatou um canteiro e encheu o pote de areia. Regressado ao santuário, retirou da parede um pedaço de rocha, com a ajuda de um pequeno disparo de energia vital. Esta era negra como o carvão, logo, os seus kucris seriam negros. Respirou fundo, ergueu a mão direita sobre a rocha que tinha na palma da outra mão e murmurou as palavras do feitiço. Disse-as três vezes, como indicava o livro.

Quando se calou, viu como uma névoa esverdeada envolvia a rocha, que começara, subitamente, a palpitar a um ritmo preciso, como se emulasse um coração. Com muito cuidado, enterrou-a na areia do pote azul. Só faltava um último pormenor: a rocha teria de ser regada com o seu sangue. Levou um dos dedos à boca, mordeu-o com força. Apareceram duas gotinhas vermelhas na pele branca. Inclinou o dedo e o sangue molhou levemente a areia que tapava a rocha negra, regando a macabra sementeira.

Estava feito!

Os kucris iriam aparecer em breve. Uma pequena espiral de fumo muito escuro surgira do pote azul, sinal de que as criaturas negras iriam materializar-se. E com o feitiço que usara, Zephir sabia que iriam aparecer dois kucris por dia. Dentro de pouco tempo contaria com um exército invejável, composto por aguerridos seres das trevas.

Soltou uma gargalhada triunfal. Depositou o pote azul no altar, entre os dois castiçais, junto ao livro de magia. Olhou casualmente para as páginas e algo despertou a sua atenção. Dois nomes… Julep e Kumis, os gémeos malditos que serviram o Príncipe do Mal, Dabura. Estava ali, quase num apontamento de rodapé, o conjuro para os convocar do Reino dos Espíritos.

Referência curiosa naquele livro… E também interessante!

- Zephir!!

A voz rouca de Kang Lo ressoou pelos subterrâneos. O feiticeiro ouviu-a e contrariado abandonou a leitura. Virou-se furioso para a porta. Perturbava-o que o brutamontes o tratasse com tanto desrespeito. Afinal, ele era o Sumo-sacerdote do templo.

- Zephir!!!

Kang Lo entrou no santuário sem cerimónias. A respiração era ofegante e irregular, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço físico, mas agora era sempre assim. O sangue bombeava apressado pelas veias e Kang Lo não controlava a ira que lhe consumia a alma e lhe retesava os músculos do corpo.

- Zephir, andava à tua procura.

Na testa sobressaía o “M” tatuado do Makai, o que significava que a mente simples daquele homem lhe pertencia e bastou-lhe semicerrar os olhos, desejar submissão, mesmo que fosse um leve pensamento, para que Kang Lo vacilasse, engolisse uma grande golfada de ar e baixasse a cabeça confuso, numa humilde reverência.

- O que queres de mim? – Perguntou na sua maneira monótona de falar.

A boca do lutador moveu-se e a muito custo conseguiu arrancar as palavras, debelando a terrível dor de cabeça que o assaltava:

- Venho lembrar-te de uma promessa que me fizeste, sensei. Já se passaram muitos dias desde que chegámos a este sítio.

- Prometi fazer-te mais forte. És mais forte, Kang Lo.

- Sim, sou forte. Muito forte! – Sacudiu a cabeça numa série de vénias, enquanto ria como um louco, aos soluços.

- Nada mais te prometi.

- Não é verdade!

O berro de Kang Lo sobressaltou o feiticeiro. Volveu os olhos injetados de sangue, ergueu as mãos torcidas como garras e disse num tom gutural e ameaçador:

- Prometeste-me que descobririas quem era ele, os seus filhos e os seus amigos. Aqueles guerreiros que protegem a Terra!

De repente, a voz de Toynara encheu-lhe os ouvidos.

“A Terra está protegida. Se a quiseres conquistar, terás de passar pelos seus protetores… Pelos poderosos guerreiros das estrelas que a guardam”.

Era o Toynara arquejante e vencido que o ameaçava, a ousadia do jovem sacerdote era um espinho cravado no seu orgulho. Mesmo moribundo, achara que o podia desfeitear. Atrás da voz de Toynara, veio a do Sumo-sacerdote, brilhante como o Salão da Luz:

“A Terra está protegida… por poderosos guerreiros das estrelas”.

O aviso ecoava nos subterrâneos, conspurcando o seu santuário que deveria ser o lugar perfeito, livre de impurezas e de dúvidas mesquinhas. Onde ele era intocável, poderoso, magnífico, o maior feiticeiro do mundo. Mas Zephir sabia que aquele aviso, dito e repetido por Toynara e pelo Sumo-sacerdote não deveria ser menosprezado. Interiorizou as palavras, marcando-as a fogo na memória.

“…guerreiros das estrelas”.

Quem quer que estivesse a proteger a Terra, deveria ser eliminado, ou Zephir não cumpriria o sonho de ser o senhor do Universo. Teria de os enfrentar e, mais importante, derrotar. Mas primeiro, deveria saber quem eles eram e se eram, de facto, assim tão poderosos. Os fantasmas que assombravam os treinos de Kang Lo, a resistência invisível que ameaçava os seus planos megalómanos. Por muito extraordinários que fossem, iriam desaparecer e a magia seria bastante para realizar a tarefa.

Afinal, a inconveniência do brutamontes poderia revelar-se útil, pois seria como o terceiro aviso.

“A Terra está protegida…”.

E Zephir não ignorava sinais, mesmo que viessem dos seus inimigos.

Kang Lo bateu no peito com um punho fechado e disse:

- Eu sou muito forte e quero desafiar esse grande guerreiro… Quero roubar-lhe o título de homem mais poderoso da Terra. Tu ficaste contente com aquele trono branco. Eu ficarei contente com o sangue desse guerreiro nas minhas mãos. Dá-me o nome dele, para que o possa enfrentar! 

- Tu mesmo me disseste que ele não está sozinho. Tem os seus filhos e os seus amigos.

- Dá-me o nome de todos! – Um brilho selvagem encheu o rosto e os olhos vermelhos de Kang Lo. – Derrotá-los-ei e serei… o maior guerreiro do Universo!

Cansado da berraria do lutador, fez um símbolo mágico e Kang Lo calou-se. Levou as mãos à garganta, asfixiado. Bateu com as costas na parede do santuário, lutando por ar, estrebuchando como um peixe fora de água. Quando julgou que finalmente dominara o mau feitio de Kang Lo, libertou-o do feitiço e este caiu de joelhos no chão, a recuperar o fôlego. Enquanto ouvia as inspirações aflitas do lutador, o feiticeiro acariciou a Chave de Cristal da Sala Sagrada que levava ao pescoço. Estava na altura de entrar na Biblioteca do templo e estudar a sabedoria milenar dos seus livros.

- Eu dir-te-ei quem é ele – disse o feiticeiro. – Mas, para que te dê o que tanto desejas, preciso de tempo.

Kang Lo arrastava-se pelo santuário, tossindo e rugindo, tentando encarar o mestre, mas não passava de uma besta ferida e dominada pela vontade de um ser superior. Zephir admirou a cena com asco.

- Precisas de estar entretido – completou o feiticeiro.

O lutador pôs-se finalmente de pé.

- Como sou um líder supremo e generoso, vou fazer-te uma oferta.

- Uma oferta, sensei? – Indagou Kang Lo rouco, encolhido, não ousando olhar o mestre de frente.

- Porque cumpriste todas as minhas ordens e porque estás a mostrar-te o mais leal dos servos.

- Mas já me deu tanto, sensei.

- Eu disse-te que sou generoso.

- Hai, sensei.

Saíram dos subterrâneos, Zephir à frente, caminhando devagar e num passo solene, costas direitas, imperturbável na majestade que exibia por usar o título de Sumo-sacerdote, porque era um conhecedor supremo das artes negras da magia, Kang Lo atrás, seguindo-o curvado e obediente, arfando e tremendo, como um cão. Pararam no pátio principal do Templo e Zephir pediu a Kang Lo que lhe trouxesse dois ramos de árvore, poderia ser qualquer uma, desde que fossem grandes e fortes. 

Passado um pouco, o lutador regressou com o pedido e deixou os dois ramos aos pés do seu amo. Em seguida, afastou-se, conforme lhe era ordenado com um gesto seco. O feiticeiro retirou duas contas douradas das Insígnias Sagradas da Lua e moldou-as, por meio de um encantamento, para que tomassem a forma de duas argolas de ouro. Prendeu os dois brincos, um em cada ramo, e depois recuou ligeiramente.

Ergueu os braços esqueléticos no ar e apareceu um remoinho que agitou as folhas das ramagens e ondulou o manto vermelho nas suas costas. Começou a murmurar uma ladainha inteligível, que fazia com que o remoinho de vento fosse gradualmente maior, até se transformar num vendaval que fustigava tudo em redor. Um relâmpago cruzou os ares, seguido do ribombar de um trovão. Kang Lo olhou assustado para o céu, que tinha escurecido de um momento para o outro.

Quando o estranho vento acalmou, os dois ramos tinham desaparecido. No lugar deles, estavam dois homens, dos mais estranhos que Kang Lo alguma vez vira.

- Bem-vindos, criaturas das trevas! – Saudou Zephir átono.

Os dois homens fizeram uma profunda vénia diante do feiticeiro e disseram ao mesmo tempo:

- Os Príncipes dos Infernos estão aqui para vos servir, senhor!

Eram idênticos. Não havia maneira de os distinguir, notou Kang Lo, a não ser pelas argolas douradas que tinham nas orelhas. Enquanto um usava o brinco na orelha direita, o outro usava-o na orelha esquerda. De resto, as feições, os corpos, eram perfeitamente iguais, como duas gotas de água. Os cabelos eram vermelho-vivo, e, presos numa fita preta, elevavam-se por cima da cabeça num repuxo que fazia lembrar as chamas de uma fogueira. Os rostos eram brancos, pálidos como se fossem os de um fantasma, ladeados por orelhas pontiagudas e translúcidas. Os olhos, rasgados e grandes, tinham pupilas alaranjadas. Os dentes caninos estavam mais desenvolvidos que os outros. Nas mãos tinham unhas compridas e afiadas. Eram muito altos, com corpos musculados e bem proporcionados. E havia um pormenor que Kang Lo fixou. Sem saber bem porquê, deixou-o hipnotizado: na testa tinham um “M” negro rebuscado.

- Esta é a oferta de que falava há pouco, Kang Lo – disse Zephir com um ligeiro sorriso. – São dois lutadores, como tu. És um grande guerreiro, verifiquei esse facto no dia em que conquistei o templo e vi como te enfrentaste sozinho aos monges e sacerdotes. Mas um grande guerreiro precisa treinar todos os dias para aperfeiçoar e desenvolver o seu potencial. Não concordas?

Indicou o par com um braço e antes de receber uma resposta, pois não a queria, anunciou:

- Os dois príncipes que nos concederam a honra da sua presença no Templo da Lua não se importam de te ajudar a melhorar as tuas capacidades de guerreiro. Irão treinar-se contigo.

Kang Lo agradeceu inclinando a cabeça, sem nunca desfitar os dois gémeos.

- Arigato.

- São Julep…

E o homem do brinco da orelha direita avançou um passo e cumprimentou-o com uma vénia.

- …e Kumis!

E o homem do brinco da orelha esquerda imitou o irmão e também o cumprimentou.

Kang Lo repetiu mentalmente os nomes deles, fixando as argolas douradas de cada um.

- Agora, deixo-vos – concluiu Zephir. – Espero que aprendas muito com os teus novos companheiros, Kang Lo.

O lutador não respondeu. Apercebendo-se do que iria enfrentar, perscrutando e lendo as auras dos dois gémeos, ia ficando cada vez mais apreensivo.

- Não me verão por alguns dias e não quero que me procurem. Durante esse tempo, estarei entregue a um exercício complexo de meditação e não quero ser interrompido.

Ao mesmo tempo, os três homens acenaram afirmativamente com a cabeça.

- Aviso-vos também que irão surgir pelo Templo da Lua criaturas pequenas e negras. São os kucris, os meus fiéis servos. Têm ordens para não os importunar. Quem o fizer, será severamente castigado.

Os três tornaram a acenar que sim.

Zephir deixou o pátio. Percorreu alguns corredores até parar diante de uma porta de madeira trabalhada escura, muito alta, arredondada no cimo.

A Sala Sagrada!

Iria, por fim, visitar o antro de sabedoria do Templo da Lua, reservado apenas aos sacerdotes mais velhos. Introduziu a Chave de Cristal na fechadura, destrancou a porta e empurrou-a com um braço, tão devagar que a madeira da porta rangeu com um uivo, indicando que profanava aquele local. Disse uma curta prece, para afastar uma possível maldição.

A Sala Sagrada era um local poeirento e sombrio. Não tinha a impressionante majestade do Salão da Luz, mas, a seu modo, era igualmente magnífica e especial. Ali encerrava-se todo o saber a que um feiticeiro poderia aspirar, toda a magia do mundo. Na realidade, a Sala não passava de uma grande biblioteca, com enormes estantes de madeira preta, do chão até ao teto, repletas de livros enormes com capas de couro comidas nas pontas e folhas amarelas de tão antigas. No centro, existiam mesas individuais, sobre as quais estavam castiçais metálicos com velas apagadas.

Zephir fechou a porta atrás de si. Entrava na Sala Sagrada e só sairia de lá quando soubesse quem eram os guerreiros das estrelas que protegiam a Terra.

Só sairia de lá quando soubesse o nome dele, dos seus filhos e dos seus amigos.


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Notas finais do capítulo

Na boa tradição de Dragon Ball, os nomes dados aos dois demónios - Julep e Kumis - são os de duas bebidas. Mint Julep, uma bebida americana com base de whisky; e Kumis, uma bebida alcoólica com base em leite de égua, muito comum na Ásia Central.
Próximo capítulo:
Acontecimentos inesperados.



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