O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 15
III.4 O ódio e a vingança.




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- Zephir!... Não pode ser!

O feiticeiro esboçou um sorriso diabólico ao ver o terror estampado no rosto de Toynara. Como fora insensato. Nunca o deveria ter traído. Agora, iria saber qual o preço dessa traição.

- Não… podes estar aqui.

- Não faças essa cara, Toynara. Não estás a ver um fantasma. Sou tão real, como tu.

O jovem sacerdote pestanejou várias vezes para se certificar que não estava a ter uma visão. Havia alguns dias que jejuava e as tonturas poderiam estar a criar ilusões entre as sombras. Mas aquele que estava ali, com os olhos vermelhos de desprezo e de raiva, era mesmo Zephir, em carne e osso, o sacerdote maldito que tinha sido expulso do Templo da Lua. Mais osso do que carne, pois emagrecera desde a última vez que o vira.

- Não estavas à espera de voltar a ver-me. Pois não?

Toynara levou uma das mãos à mesa, onde estavam espalhadas as flores brancas, para não cair.

- Julgavas que ardia para sempre no Inferno – continuou Zephir. – E mesmo que estivesse no Inferno, viria para te atormentar.

As palavras enchiam-lhe os ouvidos, gritos a serem semeados no cérebro.

- Naquele dia, quando te vi no Salão da Luz, ao lado do Sumo-sacerdote, envergando os símbolos sagrados dos sacerdotes, jurei a mim mesmo que haveria de regressar para me vingar. Não te deixaria impune por aquilo que me fizeste, traidor. Nas montanhas, onde me deixaram para morrer, era o teu nome que me animava e foi o teu nome que me fez lutar pela vida. Enquanto a escuridão me rondava, lembrava-me de ti e combatia a morte. E assim, clamando pelo maldito do teu nome, sobrevivi. Vais ser o primeiro a cair sob a minha magia.

E, sem aviso, disparou um raio amarelo da mão que não segurava o livro. O ataque fez Toynara espetar-se contra a parede daquela exígua câmara, derrubando a mesa e espalhando as flores brancas. Ergueu-se cambaleante e sorriu.

- É isto a tua magia? – Perguntou provocador.

O feiticeiro não respondeu.

- A tua magia já foi mais poderosa – prosseguiu Toynara. – Chegaste a ser muito respeitado no Templo da Lua. Até que a ambição te cegou e perdeste tudo.

- Regresso para recuperar o que perdi.

- E julgas que te vão deixar apoderar facilmente do templo? Poderás passar por cima de mim, derrotar-me e eliminar-me, mas eu sou fraco. Existem outros muito mais fortes do que eu e que não terão dificuldade em travar a tua investida, que se apoia nessa magia de segunda classe.

O feiticeiro disparou novo raio. Mas Toynara estava atento e parou-o com as mãos, fazendo-o desaparecer no ar numa nuvem de fumo que subiu até ao teto.

- Agora, sou muito mais forte do que antes! – Exclamou, embriagado pelo poder que sentia crescer dentro de si. – Vais morrer às minhas mãos!

Apesar do arrepio que o gelou, Toynara disse:

- Estou preparado para te enfrentar.

- E não terei qualquer piedade! – Completou, rosnando.

Os olhos de Zephir encheram-se de um brilho diabólico. Atirou para o chão o livro de capa negra que carregava e estendeu os braços esqueléticos. O ar ondulou num ritmo preciso até Toynara, que não se moveu, admirado com o movimento, tentando perceber o que era para conseguir enviar uma réplica. Não teve tempo. Atingido pelo feitiço, soltou um grito e caiu de joelhos no chão, agarrado à cabeça. A dor era indiscritível. Sacudia furiosamente a cabeça, com a sensação de ter o cérebro a desfazer-se em mil bocados.

- Mas quero que a peças! – Gritou Zephir insano. – Pede piedade. Implora-me que te salve a vida, meu querido aprendiz!

Pelo meio da aflição, Toynara conseguiu estender dois dedos, desenhar um sinal mágico e anular o ataque. O feiticeiro sentiu o baque, perdeu o equilíbrio e caiu de costas.

- Só isto? – Soprou Toynara, fingindo que não tinha sido demasiado atingido pelo feitiço.

- Isto… – E Zephir levantou-se. – Isto é só o princípio.

Antes de se conseguir pôr de pé, Toynara foi atingido no peito por um raio quente e brilhante. Gritou com a queimadura que lhe abriu um buraco na túnica branca.

- Levanta-te!

Apesar de sentir o corpo dormente, Toynara levantou-se.

Zephir era demasiado forte. Recordou-se que o tinha admirado, em tempos, quando era um rapazinho crédulo e carente, que buscara naquele homem esquivo e solitário apoio e companhia, principalmente ensinamentos e experiência. Ser o discípulo favorito do grande Zephir, do Senhor das Trevas, tinha-o tornado presunçoso. Fora enganado, desviara-se irremediavelmente do caminho da luz que lhe oferecia a deusa bondosa. Mas ele sentia ambição no coração, queria ser mais do que era, elevar-se acima de quem o espezinhava.

Cerrou os punhos com força, endireitou as costas. Recuperara a tempo a orientação certa no caminho da magia. Ele não era mau, como Zephir. Ele tinha um coração que conhecia a bondade e a caridade. As lágrimas que chorara no amplexo restaurador do Sumo-sacerdote mostraram-lhe que não estava a proceder erradamente enquanto traía o mestre. As mesmas lágrimas inundavam-lhe agora a mente, numa recordação dolorosa e vergonhosa. Não podia baixar os braços quando estava em jogo a honra do templo e a sua própria honra… Toynara não era suficientemente forte e dotado para derrotar Zephir, mas iria resistir até ao fim.

- Já estás recuperado? – Perguntou Zephir, dando um ênfase irritante às palavras. – Ótimo, sacerdote! Ótimo. Não queria que isto acabasse depressa. Quero saborear a vingança convenientemente.

Toynara agitou os braços em gestos elaborados, desenhando figuras geométricas no ar com os dedos, combatendo a dor que latejava em cada centímetro da pele. Zephir aguardou, sorrindo e desdenhando. Ao parar os gestos, deixou ficar as mãos suspensas no vazio, os dedos esticados. A cara foi inexpressiva durante longos segundos, até que um espasmo lhe insuflou os olhos de vida e todo ele se agitou num estremecimento. Utilizava o feitiço mais forte que conhecia.

O ar vibrou em redor de Zephir, que não desfitava o adversário, expectante.

- Então? Estou à espera do teu ataque!

- Vê por ti mesmo, Zephir.

Não teve tempo para se voltar. Antes de conseguir mover-se, o feiticeiro sentiu os braços e as pernas apertados por fortes garras. Gritou, estrebuchou furioso. Mas quanto mais se mexia, mais as garras se cravavam nos membros e mais aprisionado ficava entre dois enormes espíritos negros, que serpenteavam sem forma e que o cobriam por inteiro.

- São espíritos das trevas – explicou Toynara, ofegante. – Entreguei-te a eles, Zephir. E só eu te poderei salvar da sua vontade. Irão devorar-te.

- Maldito!

O conjuro era poderoso. Aqueles espíritos eram imbatíveis. Uma vez presos a alguém, nunca mais o largariam e bastava uma simples palavra de quem os convocara para transportarem o prisioneiro para um lugar de esquecimento eterno, uma prisão gelada inviolável, da qual ninguém, nunca, conseguira escapar. Era um mistério como um sacerdote imberbe como Toynara conhecia aquele conjuro.

Como se lhe lesse os pensamentos, Toynara disse:

- Sou um sacerdote do Templo da Lua. Sou um feiticeiro, como tu.

- Ganhaste as insígnias dos sacerdotes sem mérito. És um falso feiticeiro.

- Pelo menos, não sou um traidor.

- Não és um traidor? – Atirou Zephir, sufocado por um braço de fumo negro que se enrolava no pescoço. – Traíste o teu mestre!

- Foste um dia o meu mestre. Mas deixaste de merecer o meu respeito quando traíste o Templo da Lua. Por isso, não te traí. Reduziste-te a nada, por seguires o teu enorme egoísmo e a tua falta de escrúpulos. Ao desejares reinar no Universo aproveitando a generosidade do templo, deixaste de ser meritório dos seus ensinamentos.

- Não entendes… Ninguém entende! O Trono de Marfim será o Trono do Universo!

A energia que mantinha os espíritos era imensa e Toynara começou a sentir que fraquejava. Mexeu os dedos e os espíritos apertaram o prisioneiro com mais violência. Zephir urrou, agitou-se e, de repente, ficou quieto. Toynara julgou que o tinha finalmente dominado, pois ficara de olhos fechados, inconsciente e alquebrado. Respirou fundo, a preparar mentalmente a última parte do conjuro e terminar com a provação do antigo mestre.

Nisto, Toynara sentiu resistência. O corpo do feiticeiro continuava pendurado entre os espíritos, mas o movimento viera do mundo invisível. Soube que tinha perdido o combate e entrou em pânico. A voz de Zephir ecoou naquela câmara, vinda das profundezas:

- Eu, Zephir, sacerdote do Templo da Lua, invoco o poder da lua…

- Não! – Gritou Toynara horrorizado. – Não o podes fazer!

- Invoco o poder da lua e das trevas.

Os espíritos negros cresceram desmesuradamente, até encherem a câmara toda, do chão até ao teto. As garras ainda se cravavam nos braços e nas pernas, mas Zephir percebeu que quebrara o conjuro do jovem sacerdote ao olhar para a sua cara lívida.

- Não o podes fazer, Zephir! Já não pertences ao templo…

- Pelo poder da lua! – Insistiu.

O corpo de Zephir sacudiu-se numa convulsão repentina. Toynara já não controlava os espíritos. Tentava desesperado fazê-lo, de braços estendidos que tremiam, mas os espectros bailavam agora, ao sabor de uma brisa imaginária, embalados pela magia que oscilava entre os dois.

- Pelo poder supremo do Makai! – Gritou Zephir, despertando do transe em que mergulhara.

- Ma… Makai?!

Num enorme estrondo, os fantasmas dissolveram-se. As garras soltaram o corpo esquelético de Zephir e Toynara gritou, apavorado com a derrota. Os arrepios gelados tinham o prenúncio da morte e o jovem sacerdote começou a tremer. Não teve muito tempo para saborear esse terror. Um raio vermelho atingiu-o em cheio e derrubou-o. Quando tentou arrastar-se e escapar-se, levou com novo raio vermelho e deixou-se ficar, percebendo que, a partir daquele momento, não valia a pena lutar contra o destino.

Uma gargalhada diabólica feriu-lhe os ouvidos, enquanto um sem fim de faíscas da cor do fogo lhe envolviam e lhe queimavam o corpo. Contorcia-se, aos gritos, a tentar proteger a cara, as mãos, o tronco, os braços, amaldiçoando-se por estar a ceder à fraqueza da carne que lhe era arrancada dos ossos. Não queria que Zephir o ouvisse gritar, mas as dores eram insuportáveis e o outro ria-se com o seu sofrimento. Os raios mortais roubavam-lhe a vida. As gargalhadas roubavam-lhe a honra.

Um derradeiro raio, um último grito. Toynara arquejou, com os pulmões ressequidos e a garganta ensanguentada. Os dedos queimados ainda esgravataram as lajes da câmara, mas as forças acabaram por abandoná-lo e deixou-se ficar.

Recebeu um pontapé nas costelas que o voltou de barriga para cima. Ofegante, Zephir acercou-se do rosto de Toynara, para verificar os estragos. O ataque cansara o outro e o jovem sacerdote sorriu.

- Porque sorris? Vais morrer.

- Estás cansado… Para acabares comigo, ficaste sem energia. E o Templo da Lua não sou só eu… Existem mais sacerdotes, monges… guerreiros. O Sumo-sacerdote. Não poderás com todos eles.

- Imbecil! Achas que vim sozinho?

Toynara engasgou-se.

- O Templo da Lua será meu antes do sol se pôr no horizonte – sentenciou Zephir.

- Não…

No corredor ouviu-se o som de passos arrastados. Kang Lo espreitou para dentro da câmara.

- Que fazes aqui, Kang Lo? – Perguntou Zephir endireitando-se.

- Sensei, já acabei com todos eles.

Primeiro, Zephir sorriu. Mas depois lembrou-se de um pormenor e ficou vermelho de raiva.

- Todos? – Berrou.

- Todos, não – respondeu Kang Lo. Ergueu um braço e exibiu cinco monges inconscientes presos na sua manápula pelos hábitos esfarrapados.

Toynara viu os irmãos feridos e teve vontade de chorar. Fechos os olhos, retendo um soluço, apertando os lábios rebentados. Zephir afastou-se para seguir o brutamontes e prosseguir o massacre. Antes de perder os sentidos, Toynara murmurou:

- Não o conseguirás, Zephir… A Terra está protegida. Se a quiseres conquistar terás de passar pelos seus protetores… Pelos poderosos guerreiros das estrelas que a guardam.

O feiticeiro voltou-se irado com o descaramento da ameaça do moribundo, uma bola vermelha na mão, o golpe final que acabaria com aquele odiado sacerdote. Mas como Toynara ficou imóvel, exalando um longo e doloroso suspiro, poupou o golpe.

Passou por Kang Lo e caminhou pelo longo corredor, apanhando o livro de capa negra. O lutador seguiu-o sem perguntar nada.

Alguns metros mais à frente pararam junto a uma enorme porta dupla, ricamente trabalhada. Zephir apoiou as mãos nos pesados batentes em forma de argolas e empurrou-os. A porta abriu-se de par em par.

A luz do interior do enorme salão cegou-o no início. Piscou os olhos para os habituar à claridade e quando viu o Trono de Marfim à sua frente, o magnífico trono que desde sempre cobiçara, o coração disparou. Atrás dele, Kang Lo soltou uma exclamação de assombro. Nunca tinha visto uma sala tão bela como aquela.

No Trono de Marfim, estava sentado o Sumo-sacerdote, usando as Insígnias Sagradas da Lua. O feiticeiro fitou-o com desprezo.

- Que sejas bem-vindo, Zephir!


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Um estranho combate.



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