A Trlha De Narcisos escrita por DrLecter


Capítulo 1
One-shot




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O

 Sol brilhava mais uma vez no céu límpido da Grécia. Não havia nuvens nem nada que pudesse denunciar a ameaça de chuva. Certamente Zeus estava de bom humor — uma coisa que, convenhamos, seria raridade. Ela andava por um prado em meio a flores que cresciam enquanto passavam, como se respondessem a sua presença. Parava de vez em quando, colhendo flores. Cheirava-as, de olhos fechados, guardando o cheiro na memória.

Era assim que Perséfone passava a maioria de seus dias. Corria pelos campos, passeava nas florestas, banhava-se nos rios, em um eterno estado de êxtase e despreocupação. Não havia nada para fazer, nada para se preocupar, nada para se aborrecer nem nada para se alegrar. Talvez a vida assim tranquila fosse tentadora para os mortais, mas não para ela. Tudo que sabia era fazer crescer flores para as pessoas ficarem admirando, colhê-las e levarem para suas casas. Aquela vida a por vezes a deixava entediada.

A jovem parou e se sentou por alguns instantes para aproveitar a brisa que fazia naquele dia. Provavelmente Éolo também estava de bom humor. Aquela calmaria toda era realmente incomum, uma vez que os mortais sempre estavam a se meter em encrencas entre eles, os semideuses estavam sempre arrumando brigas com metade do mundo e os deuses ocupados demais com as intrigas infantis que reinavam o Olimpo.

Perto dela, o rio Cefiso corria. Perséfone se abaixou, e observou seu reflexo na água. Tinha os cabelos loiros como um raio de sol, a pele alva e macia e dois olhos verdes como a relva das planícies. Sorriu, lembrando-se da vez em que visitara o Olimpo. Naquela ocasião, quase todos os deuses cortejaram-na. Hermes, com seu sorriso travesso e ar sorrateiro, Ares, com sua armadura reluzente e força sem igual, Apolo, com seus cabelos de Sol e a poesia na alma, e até mesmo o feio Hefesto a cortejaram. Educadamente, ela rejeitara a todos. A festa foi grande naquele dia, e a admiração de todos também.

O tempo passou. Na época da visita ao Olimpo, Perséfone era apenas uma menina. Agora, crescida, pouco ia à montanha, já que nenhum dos deuses parecia agradá-la. Hermes era demasiado malicioso, sempre a correr e a pregar peças nos outros. Ela não pretendia passar a vida ao lado de um deus que só viajava. Apolo era demasiado vaidoso, com seus raios de Sol e sua poesia. Chegava a ser narcisista, e a jovem deusa não queria ser ofuscada por sua beleza arrogante. Ares era muito bruto, e embora a ideia de desagradar Afrodite lhe parecesse tentadora agora, na época ela não passava de uma criança, e o deus da guerra era somente assustador aos seus olhos. E Hefesto, por fim, era apenas feio. Perséfone reconhecia que todos eles tinham suas qualidades, mas nenhum deles parecia lhe agradar. Procurava por outra coisa que não fosse uma vida pacata no Olimpo colhendo flores nos prados ensolarados. Aquilo era repetitivo demais, monótono demais. Ela precisava de algo diferente. Algo que não fizesse dela apenas mais uma deusa em meio as demais.

Um narciso se destacou entre os demais. Enquanto todos eram brancos, aquele tinha uma tonalidade diferente: um tanto pálida, beirando ao cinza. A jovem fixou o olhar na flor por alguns segundos e então caminhou até ela, depois colheu-a. Nunca tinha visto um narciso daqueles e queria alguns exemplares para plantar em outro lugar. Aquele narciso definitivamente não era tão bonito quanto os outros, mas era diferente, assim como ela.

Outro narciso surgiu a poucos metros de onde o primeiro estava. Perséfone percebeu que além daquele, uma trilha de narcisos cinzentos começou a nascer a margem do rio. Ela continuou colhendo-os, tentando ver onde aquela trilha ia dar. Conforme a trilha avançava, as flores pareciam mudar de cor — a primeira era pálida, e conforme avançava, ia escurecendo. O último narciso que ela colheu era completamente negro.

Ela contemplou a flor por alguns instantes. Uma brisa gelada soprou seus cabelos, fazendo-a abraçar-se para se proteger do frio. O céu escureceu, ocultando o Sol. A sombra de uma enorme árvore se projetou sobre ela.

Ele não fez barulho algum ao chegar. Nada denunciava sua presença além do calafrio que a jovem sentiu percorrer-lhe a espinha quando se fez presente ali. Aquela sensação não lhe era familiar, mas ela já tinha ouvido histórias sobre o causador. Não o chamavam pelo nome, pois era quase um tabu. Os deuses evitavam falar sobre ele no Olimpo. Zeus costumava dizer que era perverso, outros diziam que fora traído pelo deus dos céus e por Poseidon, o deus dos mares. Perséfone nunca pensara nada sobre ele: não o conhecia, não sabia se tinha o direito de ter opinião.

Hades estavam em uma biga feita de ébano com rodas de metal escuro. Quatro corcéis estavam atrelados à ela, todos negros de olhos vermelhos, irradiando uma força sombria e assustadora. Em sua mente, Perséfone pensara que o deus dos mortos devia ser hediondo, mas se enganara. Ele não tinha a força e a presença de Zeus nem a energia de Poseidon, mas tinha uma presença aterradora que deixa claro que está no controle. Era alto e esguio e tinha pele pálida, como se feita de papel. Estava vestido com uma túnica negra e sua espada pendia na cintura. Seu rosto estava oculto pelo elmo negro que usava. O formato lembrava a cabeça de um cão.

— Sabe onde está, menina? — perguntou ele, com a voz rouca. Tudo que ela pôde fazer foi sacudir a cabeça.

— N-não, meu senhor. — respondeu-lhe. O deus grunhiu algo indecifrável e ficou alguns segundos em silêncio, fitando-a por trás do elmo.

— Aqui é o monte Etna. — respondeu ele, indicando com o dedo a direção de onde ela viera. — Meu domínio.

Ela olhou para trás, assustada. Não sabia que tinha caminhado para tão longe de onde estava. Certamente passara muito tempo colhendo os narcisos que agora tinha em sua cesta.

— Os narcisos que você tem são meus. — disse ele, apontando a cesta. — Como os conseguiu?

— Segui uma trilha, meu senhor. — respondeu. — Estava nas margens do rio Cefiso, e os segui até aqui. Deixá-los-ei, caso o senhor esteja aborrecido.

— Não me importo. — Hades continuou com os olhos nela, parecendo rígido. Perséfone engoliu em seco: não estava acostumada a esse tipo de abordagem. Os outros deuses eram sempre gentis e amáveis com ela, mesmo ela os rejeitando. Mas aquele mau parecia notar sua beleza tão falada. — Quem é você?

— Perséfone, filha de Démeter, a deusa da agricultura, e Zeus, o rei dos deuses.

— Poupe-me de todas essas definições. — resmungou. — Eu os conheço antes mesmo de você pensar em nascer, menina. Zeus, aquele maldito parece nunca se cansar de encher o mundo com suas crianças. E ainda quer ensinar aos mortais alguma coisa.

— Zeus é muito prudente, meu senhor. — redarguiu. — Agradeceria se medisse um pouco mais suas palavras.

No mesmo instante em que disse essas palavras, Perséfone se arrependeu de tê-las dito. Foi invadida por uma onda de pavor vinda de Hades, que tirou o elmo, revelando um rosto pálido, cabelos longos, lisos e negros que caiam por sobre seus ombros e um par de olhos negros que pareciam um abismo. Ele estreitou os olhos e colocou um pé para fora da biga. A grama ao seu redor começou a secar.

— Tinha mesmo que ser filha de Zeus para ser tão arrogante e insolente. — Hades disse, com repulsa. — Invade meus domínios, rouba minhas flores e ainda pensa que pode me fazer alguma advertência. Eu devia lançar-te ao Tártaro, menina.

— Meu nome é Perséfone, meu senhor. Agradeceria se parasse de me chamar de menina.

Ele brandiu a espada e apontou-a para sua garganta. Perséfone não se moveu um só centímetro, embora interiormente estivesse começando a ficar com vontade de sair dali. Hades apenas manteve a espada apontando para sua garganta, sem ameaçar um golpe.

— Porque seguiu a trilha de narcisos? — indagou ele.

— Porque são diferentes, meu senhor. — ela respondeu, tentando ignorar a lâmina em sua garganta. — Gosto de coisas que são diferentes.

— Dizem que os meus narcisos são amaldiçoados por causa de sua cor. Por que você os pegou?

— Alguns têm dificuldades em aceitar o que é simplesmente diferente, meu senhor. Ser diferente não significa que são amaldiçoados.

— Os olimpianos e os mortais não pronunciam meu nome. Eles dizem que é um mau agouro. Me diga, você pensa assim, Perséfone? — seu nome foi pronunciado com uma certa ironia.

Ela engoliu em seco.

— Não, meu senhor. Ser diferente não significa ser mau. Se não fosse pelo seu trabalho, o mundo não seria como é. As almas dos mortais precisam de um lugar para descansar.

Hades guardou a espada. Em seu rosto, algo próximo de um sorriso parecia estar se formando.

— Você é esperta, Perséfone. — seu nome foi pronunciado sem a ironia dessa vez. — Não como Atena, mas certamente não é uma tola. Eu soube que você foi cortejada por vários deuses. Por que os rejeitou?

— Não quero uma vida pacata, meu senhor. — ela pegou o narciso negro e mostrou a ele. — Assim como este narciso, quero que possam me distinguir das demais deusas. Viver colhendo flores não é tão divertido.

O sorriso de Hades se abriu, embora não passasse de um sorriso de canto discreto e um tanto enigmático.

— Em meu reino as coisas não são assim. — informou. — São diferentes, como você talvez tenha ouvido, mas como você mesma disse, alguém tem que fazer. Você gostaria de ir para lá comigo?

Ela olhou para trás e suspirou. Talvez não tivesse nada a perder ali. A mãe iria se sentir abandonada, certamente, mas iria se acostumar. Ela poderia ter uma vida diferente das demais deusas se aceitasse ir para o submundo com Hades. Não era o melhor lugar do mundo, mas todo reino precisava de uma rainha, e o deus dos mortos ainda não tinha uma. Não se importava com o que poderiam dizer dela. Nenhum deles gostava de nada que não se limitasse ao padrão dos olimpianos. Talvez a oportunidade que ela tanto esperava de ter uma vida diferente estivesse ali com Hades, que estava com a mão estendida.

Perséfone sorriu e subiu na biga.


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