Cípsela escrita por Taticastrom


Capítulo 1
Cípsela




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Cípsela: Fração de um dente de leão que as pessoas assopram e voa.

A batida da chuva agredia as janelas de meu quarto, o ranger da madeira me mantinha acordada, sem perspectiva de uma noite calma de sono de qual eu tanto necessitava. Depois de umas duas horas virando na cama tentando abafar o barulho da chuva, desisti da ideia de ficar ali e me levantei. Peguei o meu roupão e fui para perto da janela para apreciar o que parecia uma dança de cores no céu.
O céu misturava-se entre azul, laranja, vermelho e roxo de uma forma belíssima, mas o barulho era insuportável. Depois de poucos minutos despedi-me da chuva e verifiquei se a porta da sacada de meu quarto permanecia fechada depois do vento parecer querer despedaçá-la, mas como toda a casa, ela sobrevivia a mais uma noite chuvosa de Cípsela, uma cidade perdida do mapa, que não se localiza em lugar nenhum, sem qualquer referência no Mapa Mundi, apesar de não ser uma cidade minúscula.
Decidida a fazer alguma coisa útil com a minha noite, acendi a luz e peguei o primeiro livro que encontrei. Na verdade era o manuscrito de uma história de minha melhor amiga, Nicolle, e eu havia prometido que entregaria para ela lido, corrigido e com meus comentários há duas semanas, e, como eu adorava chamá-la de enrolada, devia me apressar para ler. Como toda e qualquer história de Nic eu já fiquei apaixonada desde o principio, e aquele clima de suspense que ela sempre conseguia colocar no papel me tomou e, junto ao barulho da chuva e as sombras trepidantes que se formavam em meu quarto, eu estava em um cenário assombroso.
Vez ou outra parava a leitura, pois achava que alguma sombra havia mexido mais que o natural, mas logo percebia que era apenas ilusão de ótica, continuei lendo a história e adormeci com os papéis e um lápis na mão e ainda com meus ridículos óculos de leitura no rosto. A história dela permaneceu comigo durante a noite, e seus desafortunados personagens me acompanharam em uma estranha caminhada entre a majestosa floresta de pinheiros que existia logo a frente de minha casa. Havia outras pessoas desconhecidas conosco, e aquele mistério durou durante todo meu sono. Assim que acordei vi que as folhas, antes unidas corretamente pelo clips, estavam soltas em minha cama e por todo meu quarto. Levantei rápido e comecei a juntar todas as 586 páginas que haviam escapado quando uma das janelas de meu quarto cedeu à chuva e abriu. Por sorte nenhuma folha sumiu ou foi drasticamente estragada, alguns pingos e letras borradas no máximo, ou Nic ia me matar no dia seguinte. De qualquer forma, ela tinha milhões de cópias daquela história, mas a minha já continha meus “rabiscos especiais”, como ela gosta de chamar.
Depois de unir as folhas e guardá-las em um lugar seguro, vesti o velho e chamativo uniforme do meu colégio que, sem qualquer originalidade, se chamava Instituto de Ensino Jonathan Morelli, nome do fundador da escola. O uniforme, antigamente, era cinzento, então os alunos insistiram durante anos por cor e foram atendidos com grande louvor. Em vez da breguissíma saia plissada cinza, atualmente usávamos uma ainda pior e mais comprida, com listras do amarelo mais vivo encontrado. Afinal de contas, a escola devia representar a cidade, uma parte da flor conhecida como dente-de-leão.
A história da criação de Cípsela é um borrão histórico mantido entre lendas sobrenaturais e o majestoso campo de dentes-de- leão que existia no local, e ainda foi um pouco preservado. Uma das lendas da cidade, e a que mais gostava, era que quando você encontrava um dente-de-leão e assoprava a flor, deixando as cípselas voarem, você fazia um desejo que seria realizado pelos seres mágicos da redondeza. Eu me lembro de quantos dentes-de-leão já despedacei pedindo minha mãe de volta.
Com a saia listrada, a blusa social branca, uma jaqueta por cima e meu fiel all star preto, já estava pronta. Olhei para o espelho de meu banheiro, passei um lápis no olho, tentei domar meus cabelos rebeldes e ondulados em um rabo e desci para tomar o café.
Já estava atrasada, percebi pelo olhar do rapaz de cabelos castanhos mel, iguais ao meus, que fazia minhas torradas e meu suco para o café da manhã enquanto preparava seu próprio café. Ele usava uma calça social e uma blusa social branca por cima que não estava fechada e nem dentro da calça, como deveria.
– Já achei que ia ter que acordar a dorminhoca. – Gabriel falou, sentando-se à mesa e me convidando a fazer o mesmo.
– Você ouviu a noite passada? Estava insuportável dormir, quando consegui já era quase manhã. Dê-me um desconto, Gabe. – Falei, fazendo um biquinho que sabia que o faria pegar leve comigo.
– Certo, mas vê se come rápido, tenho uma reunião importante.
Aos 35 anos, Gabriel era um advogado bem sucedido em uma cidade sem grandes perspectivas de sucesso. Talvez fosse porque além dos maravilhosos cabelos mel que sempre estava desarrumado, ele usava aquela barba por fazer e seus olhos azuis eram assustadoramente penetrantes e fazia com que qualquer pessoa acreditasse nele, apesar do jeito meninão. Ele era meio paradoxal, um menino que trabalhava levando tudo a sério, mas fora daquele ambiente engravatado era o senhor piadista.
Depois de quase não mastigar direito, porque os olhos de Gabe me lembram de meu atraso, escovei os dentes, joguei a mochila no ombro e saí de casa. Verifiquei se todas as portas estavam trancadas.
Entrei no carro e seguimos para escola, onde ele me largou e seguiu para seu trabalho. Gabe já havia insistido para que eu mudasse para outra escola, outra particular e ainda mais pomposa, e pior, uma escola só de meninas, irritantemente cheia de regras que já me embrulha o estômago só de pensar. Apesar da breguisse e monotonia, eu amava o IEJ, eu crescera naquela prisão verde escura, rodeada por pessoas que eu adorava e na escola que meus pais e todas as gerações antes de mim passaram.
Cípsela é uma cidade de médio porte, com poucas escolas, e o Instituto nasceu com a cidade. Com a chegada das quatro famílias fundadoras, os Tharde, Hortz, Morelli e os Fortini. E ali começou a boa educação particular das crianças das famílias, é o que dizem. Depois de tantas décadas, a escola permanecia como um gigantesco edifício verde escuro e cinza, com delicados tons de amarelo. O verde era a cor preferida de Jonathan, e seus descendentes preferiram honrar sua memória mantendo a cor.

Assim que adentrei os velhos e gastos portões da IEJ, encontrei Nicolle Fortini me esperando com seu maravilhoso sorriso. Minha única e fiel amiga tinha cabelos vermelhos, do seu último ato de rebeldia, e acabou gostando. Usava o mesmo uniforme brega que eu, mas conseguia ficar maravilhosa. Talvez porque ela fosse magra, alta e bonita, o meu oposto. Seu maravilhoso cabelo liso estava solto e seus olhos felinos sorriam, fazendo suas bochechas subirem e dar um ar contraditório de mulher e menina.
– Vai entrar um novato na nossa sala. – Ela falou animada, assim que cheguei perto dela. – Parece que a família dele teve que largar a capital para cuidar dos negócios da família. E ele nunca visitou Cípsela para conhecer a casa dos avós, acredita?
Eu ri enquanto ela me puxava de um lado para o outro, contando sobre o tal Lucca Hortz, novo aluno, informações adquiridas graças aos privilégios da Nic como organizadora do comitê de boas vindas do colégio para alunos de outras cidades. O diretor havia chamado Nic mais cedo para pedir que ela interagisse com o garoto para melhor adaptação fora e dentro da escola.
Nicolle é uma dessas pessoas que acredita que a família é a coisa mais importante do mundo, não era aceitável para ela ir totalmente contra sua família. Isso não quer dizer que você tenha que fazer tudo o que eles dizem que é certo; ela mesma sempre me lembra, pois mesmo sabendo que a Sra. Fortini odeia seu cabelo tingido ela já passou por cabelos loiros, castanhos, pretos, com mechas rosa, azuis e roxas.
De repente um par de olhos negros e conhecidos se voltou para mim, parecia que seu olhar penetraria minha pele e faria um estrago gigantesco. Ergui os meus olhos e tentei fixá-los naquelas órbitas descomunalmente pretas que, há muitos anos, havia me chamado atenção, mas como sempre, não consegui manter o olhar sério que queria, então desviei o olhar, sabendo que ele não faria o mesmo.
– Karly Tharde, você está prestando atenção em mim? – Nic falou, me olhando quase ameaçadoramente, com os braços na cintura, uma postura que só me deu vontade de rir. – Vai rindo mesmo, eu vou fazer amizade com o Lucca e te largar.
Jamais fui capaz de compreendê-la. Ela era uma das garotas mais populares da escola e andava comigo. Eu não era o tipo de pessoa mais social da escola, tinha alguns colegas e poucos amigos, que dá para contar nos dedos de uma só mão. Nicolle era a pessoa que me ligava a quase todos outros meus contatos do colégio, que era lotado e meninas metidas e filhinhos de papai.
– Por favor, não me deixe – Entrei no drama da Nic, e saímos rindo até chegarmos à nossa sala. Como sempre, as pessoas cochichavam sobre as fofocas mais quentes do dia anterior e algumas copiavam o dever. Nic cumprimentava cada uma pelo nome e eu sorria para elas até me sentar no meu lugar definido, a primeira carteira da segunda fileira depois da mesa dos professores, com Nic atrás de mim e, ao meu lado, um lugar vago, provavelmente seria ocupado pelo misterioso Lucca Hortz.
Enquanto o sinal não batia, conversa com a Nic sobre sua história e falava que estava adorando, ela sorria, pois sua humildade impedia de falar que ela sabia o quão foda ela era. O que me deixava muito chateado era que os senhores Fortini não apoiarem o dom de minha amiga para escrita, era óbvio que era a carreira dela. Todos os prémios possíveis de literatura, contos e até poemas, que não são a praia dela, ela já tinha recebido da escola e da cidade.
– Tem certeza de que ficou bom? Achei que falta alguma coisa. – Ela falava, observando o nada, pensando o que encaixaria naquele cenário que ela mesma criara aquele mundinho perfeito que ela havia feito.
– Nicolle Fortini, eu dou minha palavra de honra que está é uma das suas melhores histórias, que não dá para mudar uma vírgula do lugar.
Ela me deu aquele sorriso infantil e suas bochechas ficaram mais vermelhas que seu cabelo enquanto ela agradecia. Enfim o sinal tocou estridentemente e o professor entrou na sala, jogando material na mesa e começando a passar as anotações no quadro enquanto a turma se sentava.
– Então, galera, temos um novo integrante. – Ele fez sinal para que a pessoa na porta entrasse – Quero que todos deem boas vindas ao novo morador de Cípsela e estudante de nossa escola, Lucca Hortz. – Todos começaram a sorrir para ele e se apresentar, enquanto o jovem loiro devolvia com um sorriso sedutor e sentava ao meu lado, agradecendo ao professor atenção e dizendo que não queria atrapalhar a aula com sua chegada. Sem mais delongas, o professor de geografia tomou a palavra e começou a dar sua aula, falando sobre o relevo do país, como se realmente aquilo fosse relevante para minha vida.
Aquela havia sido a aula mais entediante de geografia que podia existir, com o nosso professor falando sobre as formações existentes durante as eras geológicas, como se eu realmente tivesse algum interesse em saber como a terra estava na época que se quer era habitada por seres vivos. Mas, para compensar, tivemos os dois melhores horários possíveis. O segundo horário era minha matéria favorita, Biologia, e a que Nicolle mais desprezava. Estávamos aprendendo botânica e ao meu lado a ruiva bravejava:
– Qual a necessidade de saber que meristema é o tecido jovem e indiferenciado das plantas? – Ela falava enquanto anotava o colorido resumo que o professor havia feito no quadro. – Para que eu preciso saber sobre plantas? Como se reproduzem; que, para criar arbustos com formatos diferentes, eu aplico ácido indolacético? Se quiser um jardim bonito, contrato jardineiro.
Eu me divertia com os comentários que Nicolle soltava durante a aula de biologia, onde ela não via significado do estudo, tal como eu em certas matérias de geografia. O horário seguinte, tanto eu quanto ela adorávamos, era a aula de história.
A história de Cípsela não é muito relevante, tampouco o nosso país de nome impronunciável e chatíssimo de escrever. Assim, nossa história era basicamente sobre a história mundial. Adorava ver o nosso professor, Tiago Morelli, ensinando sobre as civilizações clássicas, falando de mitologia, dos deuses gregos que os romanos roubaram, dos governos teocêntricos do Egito que foram responsáveis por avanços inimagináveis na medicina, eu delirava com as obras do Renascimento e ouvia atenta cada minuto falado sobre as Grandes Guerras. Tiago conquistava seus alunos com suas palavras, ele não queria que seus alunos seguissem cegamente a sua linha de pensamento, ele queria que pensássemos por conta própria, tivéssemos nossas opiniões formadas e lembrar que não existe história absoluta.
Naquele dia em especial, o professor estava discutindo sobre o trabalho que valeria 10% da nota da etapa.
– Muitos de vocês são apaixonados pela mitologia, pelas crenças dos povos, e não sabem da crença do seu próprio povo. Cípsela é uma cidade rica em histórias, em lendas, em mitos. E esse é o nosso tema de debate da próxima semana, os mitos da cidade e seus surgimentos. Pesquisem e venham preparados para ouvir sobre os desejos que um dente-de-leão realizou para as famílias de seus colegas. – Ele falou com seu ar brincalhão e terminou sua aula com seu comum e irônico “Ide em paz”. A menção de uma frase usada no final das missas na Igreja Católica era o jeito bem humorado do professor de manifestar a hipocrisia na qual vivemos ateus, como ele, que usam frases religiosas como “graças a Deus” sem pensar na ideologia impregnada nela.
Em menos tempo do que eu imaginava aqueles cabelos loiros milimetricamente arrepiados, aqueles olhos verde folha seca e o sorriso sedutor conquistou a sala. Tempo recorde, pois antes do sinal do final da aula de história bater o menino já estava interagindo com todas as panelinhas da sala. Nic foi a primeira a se apresentar a ele e chamou para lanchar com a gente, algo que não foi muito de meu agrado.
Lucca começou a perguntar sobre a vida em Cípsela, o que normalmente fazíamos. Comentava alguma coisa de esportes e política no meio. E atraía todos para sua conversa. Apesar de parecer um filhinho de papai, criado na capital, o garoto tinha modos da cidade, uma simpatia incrível que envolvia todos os presentes na enorme roda que se formou entre ele, eu e Nic pouco depois que saímos dos corredores. Ela queria conversar com todos ao mesmo tempo, dar um pouco de sua atenção a cada um.
– E você, Karly, gosta de morar em Cípsela? – Lucca perguntou, tentando me atrair para conversa.
– Nunca saí dessas terras tingidas de branco, amarelo, cinza e verde, mas não sinto vontade de fazê-lo. – Falei, dando de ombros. – Aos poucos você vai ver que nossa modesta vida é bem interessante, até para os moldes da capital, pelo que dizem.
Todos me olharam boquiabertos. Levando em consideração que eu mal falava com as pessoas eu tinha dado um discurso hoje, e a maioria das pessoas deve pensar que eu queria me ver longe daquela cidade, dos traumas que ela me causou, das dores que me marcaram por viver ali. Que mais do que qualquer um, eu queria pegar meu rumo para fora daquele lugar. Mas simplesmente eu não podia algo em mim me mantinha presa naquele lugar, eu sabia que me sentiria mais forasteira longe dali, longe das minhas origens, das minhas raízes.
Lucca começou a perguntar sobre os locais que a galera normalmente ia e, por unanimidade, ficou decido ir ao Bobby’s, o melhor restaurante/bar/fliperama/casa de shows que uma cidade como Cípsela já conheceu. O velho Bobby era mais antigo que as lendas da cidade, mas era um senhor trabalhador que adorava quando os jovens entravam em seu estabelecimento e colocavam a mais nova música na maior altura. Ele dizia que se sentia mais jovem conosco por perto.
Lucca adorou as histórias que as pessoas contaram do Bobby’s e perguntou quem poderia dar carona para ele, como ele nunca tinha visto nada além de sua casa e da escola, ele não podia pegar seu carro para o Bobby’s. Mãos se levantaram, mas ele tinha que escolher a minha carona também, por conta de Nicolle. Aparentemente ele morava agora a duas ruas de minha amiga, e ela sempre me levava para os lugares, então iríamos exprimidos no seu smart car amarelo, que sua mãe lhe deu inspirada nos dentes-de-leão. Quão brega a Sra. Fortini era?
– Kaká, quatro e meia você já tem que está pronta. Linda e maravilhosa como sempre, e avisa o Gabe claro. – Nic falou quando me deixou em casa. Confirmei que estaria pronta e parei na porta. Não precisei usar a chave estava destrancado, achei estranho.
Assim que entrei, deparei com uma jovem jogada em meu sofá, ela chorava ruidosamente, e seus olhos, antes azuis, estavam vermelhos. Encarei a garota, tentando reconhecê-la, e logo suspirei. Era a última ex do Gabe, Vanessa.
– Vanessa, o que você está fazendo aqui de novo? – Perguntei, tentando manter a calma, algo que não era bem meu perfil.
– Já faz um mês, Kakázinha. – Ela falava entre soluços e começou a me apertar tão forte que tive que afastá-la com força, com medo de machucar. – Eu dei o tempo que ele pediu, já faz um mês e ele não me liga, não responde as mensagens e nunca está no escritório quando eu o procuro lá.
– Vanessa, já conversamos sobre isso. – Falei, me sentando do seu lado e percebendo que ela havia deixado a cópia da chave da minha casa no sofá, peguei e guardei na minha bolsa rapidamente. – Ele não pediu um tempo. Ele terminou tudo, querida. Vou te pedir educadamente mais uma vez. – Respirei fundo – Não volte aqui!
– Não, Karly, ele falou tempo. Tenho certeza. – Vanessa, uma modelo famosa na região parecia uma garota sem rumo toda vez que entrava por aquela porta em busca de Gabe, ela não entendia que ele já havia se cansado dela, de seus dramas, de sua falta de compromisso e imaturidade?
– Já vimos esse filme algumas vezes, não? – Perguntei para ela. – Ele não te quer mais, aceite esse fato e, por favor, não nos procure mais. – Levantei e abri a porta para ela.
– Eu volto quando ele estiver em casa. – Ela levantou e saiu olhando para os lados em busca do seu próprio carro. A coitada nem sabia onde havia deixado, até me deu pena, mas era a quinta vez que ela invadia minha casa em menos de um mês, já estava cansada do drama daquela modelo sem graça, e nunca entendi onde Gabe arrumava aquelas mulheres e como ele a trazia a nossa casa.
– Vanessa, ele não quer te ver, melhore as coisas para os dois lados, não busque mais meu pai. – Falei e pareceu que, pela primeira vez, ela teve essa conexão. Ela sabia que eu e Gabe somos parentes, mas achava que éramos irmãos, como todos achavam. Poucos sabiam que o jovem Gabe me tinha como filha, um fruto de um desastre durante seu último ano de ensino médio que ele aceitou e criou quando a própria mãe abandonou. Ainda perdida nessa revelação que havia dito, o que me fez virar os olhos, afinal ela parecia apaixonada por meu pai e nem sabia sobre a vida dele, eu continuei a falar. – Quer ajuda para achar seu carro?
Ela negou com a cabeça, possivelmente as coisas que havia dito anteriormente não foram bem assimiladas e ela seguiu seu rumo, ainda chorosa. Esperei vê-la seguir a rua e depois entrei em casa e tranquei as portas. Nota mental: trocar todas as fechaduras rapidamente.
Subi para meu quarto, com apenas a solidão de companhia, liguei o som e comecei a ver as minhas tarefas do dia. Fui à porta da minha sacada, pensando em sentar lá e ler, mas vi que a chuva começava a cair. O que me deu até dó de Vanessa, que podia até ter vindo a pé a minha casa pelo estado que estava e teria que percorrer o caminho na chuva.
A chuva começou a ficar forte, eu já havia desistido de ficar na sacada, fechei a porta e olhei uma coruja que olhava atentamente para dentro da casa de forma assustadora. Suas orbitas, normalmente negras, pareciam ter uma cor levemente avermelhada.
Balancei a cabeça, estava delirando de novo. Cada dia as coisas estavam piorando, logo teria que contar para Gabe e voltar a todo trauma que foi minha infância. Peguei um dente-de-leão do buquê que fica em meu quarto - Gabe sempre me trás um buquê do trabalho para sempre lembrar minha origem. Assoprei-o, desejando que tudo aquilo não se repetisse, eu não aguentaria mais uma vez.
Respirei fundo e desliguei o som para fazer os deveres para o dia seguinte. O barulho da chuva aumentava e o vento abriu a janela. Fui trancá-la direito e vi de novo a estranha coruja observando. Gritei e enxotei o animal. Mas ele permaneceu quieto, como uma estátua. Por fim, fechei a janela e esperei que a chuva levasse minhas cípselas para que meu desejo se realizasse. Pelo menos desta vez.


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