é Proibido Sonhar escrita por Davi Mello


Capítulo 1
É Proibido Sonhar




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Ele acordou e fingiu que não me viu ali.

Espreguiçou-se todo, coçou a bunda e foi até o banheiro. Chamei por seu nome, ele fingiu não ouvir.

O segui. Ele olhava no espelho com um olhar preocupado, parecia não reconhecer a si mesmo. Alisava o seu reflexo com a tez franzida, estava muito estranho.

Cheguei por trás e o abracei. Beijei o seu rosto e senti o hálito de menta. Ainda havia pasta dental nos lábios carnudos.

- Está tudo bem? – perguntei.

Ele retirou as minhas mãos de seu corpo, com repulsa.

- O que aconteceu? – perguntou-me. Podia ver a confusão em seus olhos.

- Ed...

- E-eu não sei o que faz aqui... – Ele se afastou de mim como se estivesse defronte a um monstro. Pegou sua pasta-de-dente e apontou-a para mim, ameaçadoramente. – Saia!

O olhei com certo desprezo. O que diabos estava acontecendo com o Eduardo? Xinguei-o, todavia ele não se importou. Voltou a alisar seu reflexo no espelho e nem tentou me impedir de ir embora.

Eu não queria chorar, mas foi inevitável.

Até ontem estava tudo bem. Ele disse incontáveis vezes que me amava, rimos juntos e dançamos como nos filmes românticos. Era para ser uma data especial, afinal, completamos um ano de namoro. Tínhamos planos, e na noite anterior, após fazermos amor, conversamos sobre o nosso futuro e decidimos a data do casamento. E agora, todos os nossos sonhos tinham sido destruídos por um motivo ainda oculto...

Desci as escadas de seu apartamento carregando apenas uma bolsa. Controlei minhas lágrimas, não queria que ninguém me visse daquele jeito. Atravessei uma das movimentadas ruas de São Paulo sem olhar para os lados. Se um carro me atropelasse naquele momento, eu não me importaria.

Havia um mímico logo à frente. Percebi que ninguém lhe dava atenção, era como se ele sequer existisse. Tinha uma aparência sisuda, mas seu olhar ostentava tristeza. Incrível como alguém consegue se expressar apenas com gestos, sem movimentar os lábios, e, mesmo assim, não é notado. O mímico é apenas mais um na sociedade.

Eu o entendia. Talvez por isso curvei-me até a caixinha próxima aos seus pés e deixei ali uma nota de cinco reais. Ele continuou com a sua mímica, nem agradeceu, nem olhou para minha pessoa, muito menos sorriu. É! Acho que também sou só mais uma na sociedade.

Andei por mais alguns minutos. Abri a porta de minha casa e larguei-me no sofá. Chamei por minha mãe, mas parecia que ela não estava lá. Subi as escadas e pude escutar o seu típico cantarolar enquanto cosia.

- Mãe? – chamei.

- Eu já estava farta dessa monotonia. – disse ela, com a cabeça baixa. – Pensei que voltaria no sábado.

- Aconteceu algumas coisas...

Mãe sempre percebe quando há algo errado com o filho. Ela interrompeu imediatamente com a sua costura, levantou-se das cobertas e me beijou. Seus lábios se moviam, provavelmente procuravam as palavras certas.

E então, disse-me que me amava e se calou, fitando-me como uma estranha. De supetão, afastou-se de mim e chorou.

- Quem é você? – indagou-me, muito confusa. – Deixe-me em paz!

Tentei ajudá-la, mas não pude. Quanto mais eu me aproximava, mais ela gritava. E então, com os olhos marejados, ordenou que eu fosse embora, e o fiz.

Não tinha mais nenhum lugar para eu ir. Fiquei na praça perto de casa, pensando no que poderia estar acontecendo. Lembrei do Eduardo, do jeito com que ele me olhou, e ao mesmo tempo, a imagem de minha mãe gritando comigo não saía de minha cabeça. Foi aí que, observando a tudo e todos, percebi que a bizarrice não era só comigo. As pessoas estavam diferentes. Andavam de cabeças baixas como se tivessem perdido algo... Perdido uma chave, um bilhete, uma moeda, um amor, um sonho... Perdido as lembranças ou suas memórias. Em um minuto, pais e filhos brincavam carinhosamente; no outro, pareciam se odiar. Notei que um casal de namorados – aparentemente muito apaixonados, pois andavam abraçados e trocavam carícias – passou perto de mim. Minutos depois, andavam a sós, um de cada lado, como se nunca tivessem se conhecido.

Estava muito atribulada com tudo aquilo. Achei que fosse algo de minha cabeça, mas com o passar dos minutos, as coisas só pioravam. Às vezes escutava um grito ou um choro, mas logo ficavam no passado. Estava imersa à confusão e ao silêncio.

Quando me dei conta, alguém se aproximava de mim...

Era o mímico.

Pela primeira vez notei que era uma mulher... Podia ser um homem, claro! Na verdade, não sei ao certo, só sei que estava tranqüilo; ainda com um semblante sisudo, todavia, tranqüilo. Não veio até a mim com ofensas ou gritos, nem parecia estar confuso, apenas triste.

Ele fez uma mímica engraçada e conseguiu arrancar-me um sorriso. Sentou-se ao meu lado e ficou me imitando. Sabia o que ele queria dizer. Pelo jeito, estranhava os recentes acontecimentos, igual a mim.

- É uma conspiração? – perguntei-lhe. – Cadê as câmeras? Será que é algum tipo de reality-show?

O mímico balançou a cabeça, e depois, fingiu estar sendo estrangulado. Por fim, levantou-se do banco da praça e lançou-se no chão, fingindo dormir. Levantou logo em seguida e balançou a cabeça novamente.

- Você não consegue dormir? – perguntei.

Ele negou com o um aceno.

- Você não consegue... Sonhar? – arrisquei.

Ele afirmou com um sinal positivo.

- E o que isso tudo tem a ver com o que está acontecendo?

O mímico ergueu sua mão enluvada e a posicionou em meu rosto. Tapou os meus olhos e eu nada mais vi. Senti que ele desceu minhas pálpebras com delicadeza...

Quando abri os olhos novamente, notei que eu não estava mais na praça; encontrava-me sentada de cócoras em um gramado muito bonito.

Escutei passos, olhei para todos os lados e deparei-me com o mímico. Ele sorria para mim.

- No que você acredita? – indagou-me.

- E-eu... Eu não sei. – gaguejei, confusa. – Nos sonhos?

Ele deu de ombros.

- Então você acredita em tudo! – respondeu. – Disseram-me que somos formados por sonhos! Está vendo este céu, ou as nuvens? – ele apontou para o horizonte, sorrindo. – É tudo sonho!

- E você acredita nisso? – quis saber.

- Eu prefiro não acreditar. Você se lembra de tudo o que você já sonhou?

Antes que eu pudesse lhe responder, o mímico me interpelou:

- Se nem dos pesadelos nos recordamos direito, imagine os sonhos bons! E se formos, realmente, constituídos por sonhos? Também seremos esquecidos?

- Achei que mímicos não falavam. – disse, angustiada com tudo o que ouvira.

- Não me culpe. Estou em sua mente, em sua cachola, entende? Nada mais sou do que parte deste sonho que você está tendo.

- Tudo bem! – exclamei, exaltada. – Se estou sonhando, não vou me lembrar de você, mesmo!

- Eu não lhe disse? Mas se servir de consolo, não lembrará deste sonho nem dos outros pequenos fragmentos de seus devaneios anteriores! Quando você acordar, já não sonhará mais, tampouco vai poder resgatar lembranças na sua mente... Sua imaginação ficará perdida no vazio... Ficarás como todos os demais.

- E-então você sabe o porquê de estar havendo isto? – balbuciei.

- Sim. – o mímico fechou a cara de repente. – Eu nunca sonho, se recorda? Ninguém nota minha presença, ou seja, deixam de lado um sonho...

- Não pode fazer isso! Você está... Assim você está destruindo todos os outros sonhos!

- Não fui eu que comecei. – ele sorriu, mas ainda estava triste. – Mas se me permite, lhe darei  um conselho. - ele aproximou-se de meus ouvidos e sibilou: - Haja o que houver, nunca pare de sonhar!

 

Despertei-me, porém, estava em outro lugar. Deitada sobre uma maca, com os pés e mãos amarradas feito a um criminoso, notei a presença de mais uma pessoa dentro daquele escuro e úmido recinto. Ao meu lado, segurando uma seringa com um líquido fosforescente em seu interior, estava um enfermeiro caolho que vestia um avental azul bem sujo.

- O-onde estou? – gritei. - Eu quero sair daqui! – exclamei, tentando fugir daquela situação, entretanto, só consegui hematomas.

O enfermeiro fincou a agulha em meu braço; não doía, mas eu chorava. O líquido adentrou minhas veias, senti-o percorrendo por todo o meu corpo.

- Amanhã não se lembrará disso. – disse o enfermeiro. Sua voz saiu abafada pela máscara cirúrgica. – Pela manhã, não se lembrará de nada.

- O que você fez comigo? – perguntei enquanto ele me desamarrava.

- Só estou lhe poupando de um mal, assim como o fiz com os outros. Não sabe que agora sonhar é proibido?

- Sonhar não é proibido! – gritei.

O enfermeiro fitou-me com desdém e continuou com seu “trabalho”.

- Agora não sofrerás ao ver seus sonhos fracassarem. Não se importarás com o passado, nem se lembrarás do que viveu antes do amanhã. Estamos lhe dando uma nova vida, uma nova chance. Quando você sair por esta porta, – ele apontou para a mesma – já terás esquecido até mesmo dessa nossa conversa.

- Eu não vou me esquecer. – disse, contrariando-o. – Sei disso!

O enfermeiro abriu a porta para mim. Eu deixei aquela sala fazendo um esforço para lembrar cada palavra proferida por ele.

 

Acordei e já era tarde. Sentia dores na cabeça e no corpo. Afaguei o lençol à procura do corpo de Ed, mas o lado esquerdo de meu leito estava vazio.

Então eu lembrei. Lembrei de ter sonhado com um bolo de pétalas de rosas brancas. Ainda sentia o seu gosto azedo. Fiz uma careta, fui até o banheiro e debrucei-me sobre a pia.

Eu ainda me reconhecia. Ainda era jovem e pálida, mas atraente.

Abri a janela de meu quarto. Avistei pessoas lá embaixo. Toda confusas, todas foram alvos da calúnia e acreditaram nela, por isso esqueceram do passado. Eu podia mudar isso!

- Você aqui novamente? – gritou minha mãe ao me ver deixando o quarto.

Evitei discussões. Ainda de pijama, desci as escadas, fui até a praça e fiquei de pé sobre o banco. Pedi a atenção de todos, mas sequer me notaram.

- Sonhar não é proibido! – gritei. – É preciso!

Um ou outro olhou para a minha direção.

- E se sonhar for realmente proibido... – eu tentei conter as lágrimas, mas elas já desciam por meu rosto. - ... nosso único delito é Sonhar!

Escutei alguns murmúrios.

Sonhar?

Sonhar?

O que é sonhar? – comentavam entre si.

Então eu fiz uma mímica. Dentei-me sobre o banco da praça e fingi dormir, mas com os olhos abertos. Nada mais disse. Meu gesto foi o bastante para fazer todos se recordarem.

Sonhar!

Sonhar!

É o que estamos fazendo... – passaram a comentar.

E, em meio a toda aquela algazarra, pude ver o mímico do outro lado da rua. Não se movia, estava estático.

Desviei-me das pessoas e fui em sua direção. Ele me encarou com aquele seu olhar melancólico e sentou-se na calçada, tristemente. Talvez aceitara a derrota.

Sentei ao seu lado, posicionei a cabeça dele sobre o meu colo e alisei seus cabelos arroxeados.

Ele arqueou as sobrancelhas abruptamente.

Notei um sorriso se formando em seu rosto, e logo, seus olhos cederam, fechando-se. Era a minha vez de conceder a ele uma nova chance.

- Shiiuu! – sibilei, enquanto alisava o seu rosto maquiado. – Tenha bons sonhos!

Ao meu redor, tudo se voltava a sua normalidade. As pessoas conversavam, compravam e trabalhavam. O mundo parou de sonhar por algumas horas, mas era como se ninguém tivesse notado... E por nossos gestos e aparências cansadas, dei-me conta que só tínhamos acabado de acordar de um sonho ruim, já esquecido.


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