O Livro De Merlin escrita por Yuri Nascimento


Capítulo 3
Foi mesmo um sonho?


Notas iniciais do capítulo

Algo muito incomum acontece com Luan, e pela segunda noite seguita ele tem sonhos com a menina do bosque, mas dessa vez muito mais conturbados. Parece que as noites não serão mais as mesmas. Afinal, quem seria ela?



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Luan caminhava cabisbaixo pelas calçadas amplas da Rua dos Cravos, onde morava, com as mãos nos bolsos da calça jeans e a camisa branca de gola azul que era o uniforme da escola. Fazia um silencioso pacto consigo mesmo de não pisar no rejunte das grandes pedras quadradas das quais a calçada era feita, em sua maior parte, e ia o caminho todo contemplando o chão e seu par de sapatos All Star azuis que iam alternando no seu campo de visão, ora o direito, ora o esquerdo, ora o direito, ora o esquerdo, sem nunca pisar nas linhas.

– E aí, florzinha? – cumprimentara-o Ezequiel, passando veloz com sua bicicleta.

– Pede pra sua irmã passar lá em casa essa noite pra gente se cheirar um pouco– respondeu prontamente Luan um pouco mais alto, fazendo um túnel na frente da boca com a mão direita a fim de se fazer ouvir melhor. O outro, que já ia longe, fez um gesto silencioso e discreto com o dedo médio, ao que Luan respondeu com um sorrisinho abafado. Idiota irritante. Ganhou o apelido florzinha há umas quatro semanas, depois que foi visto colhendo uma rosa no parque perto de casa. Não obstante, ainda corou feito uma menininha quando foi pego cortejando Cássia com essa mesma rosa. Ela pareceu ter gostado, então Luan decidiu que valeu a pena. Mas sempre duvidava quando os meninos apelidavam-no demais.

Os meninos na rua tinham essa intimidade agressiva e infantil de muito tempo. Não falando da mãe, era permitido qualquer coisa, sendo as irmãs o assunto preferido na hora de tirar o adversário do sério. Era quase um código de conduta, uma amostra infalível de virilidade e habilidade com as palavras ofensivas. Quase toda discussão seguia o mesmo roteiro: empurrões amistosos, xingamentos a plenos pulmões, um clímax do tipo “é, eu também não quero te bater” e então falar da irmã pra fechar com chave de ouro. Apesar de tudo, se tinha uma coisa da qual não podia reclamar era da vizinhança. Morava na mesma casa desde que nascera, conhecia todos os meninos do bairro, e todos o conheciam também. Até uns dois anos atrás, ainda passava os dias pelas ruas correndo atrás de pipa, se metendo em brigas e voltando pra casa aos prantos para, outra vez, levar umas palmadas. Enquanto você não se comportar como gente, não vai ser tratado como gente. Não tô criando galo de briga, repetia sempre Lívia. Luan constantemente tirava a mãe do sério, e era involuntário. Nunca foi um menino lá muito inteligente, ao menos não como se espera das crianças na escola. Mais irritadiço do que maleável.

Entretanto, as coisas vinham mudando de uns tempos pra cá. E ele percebia. Correr de bicicleta a noite toda até faltar ar nos pulmões ainda era divertido, porém a diversão começava a ter outro gosto, e o que antes era uma completa perda de tempo – como ficar sentado na frente do computador da sala – hoje despertavam nele maior interesse, em detrimento às brincadeiras de rua. Tudo bem, os outros meninos também estavam mudando, mas Luan ainda se sentia desconfortável e diferente com essa mudança inexplicável. Cássia. Ele sabia que a garota tinha desempenhado algum papel na sua metamorfose comportamental. Estava longe de poder se dizer alguém maduro, longe de ter débitos a pagar, fatura de cartão de crédito – o pai ficava especialmente mais chato nas épocas da fatura do cartão –, filhos pra educar e alimentar, horários a cumprir, responsabilidades com algo ou com alguém, mas estava crescendo. Estou crescendo. Pensava, satisfeito consigo mesmo. O caminho de volta era mais longo que o da ida, pela manhã. Andava três quarteirões em linha reta da parada de ônibus até a sua casa, outra vez passando pela frente da padaria de Seu Juca.

O sol já ia baixo, e, ao olhar para cima, na varanda da casa do padeiro, seu coração disparou em um Allegro que, se fosse capaz de dizer duas palavras, seu nervosismo seria denunciado antes da metade da primeira. Lá estava Cássia, com seus caracóis negros descendo sobre os ombros tão perfeitamente alocados que, Luan sabia, mesmo sabendo pouco de matemática, a matemática e todas as ciências do mundo nunca representariam aquelas curvas com um terço da beleza e maestria. E não eram os seus cabelos as únicas curvas que faziam Luan refletir sobre o quanto nada sabia de nada. Estava debruçada sobre a balaustrada da varanda observando a rua, com os braços cruzados abaixo dos seios, Luan não pode deixar de perceber, usando uma blusa de regata preta e um short confortável de vestir em casa. Apoiava o peso sobre a perna direita com a esquerda enroscando por trás da outra. Por favor, bochechas malditas! Não mudem de cor, não mudem de cor! Luan saíra mais ao pai. Em geral carrancudo e fechado, bobão às vezes – Marina conseguia, aos doze, ser mais astuta que ele, aos catorze –. Tinha o mesmo jeito de andar, as pernas eram miniaturas das pernas do pai, os traços do rosto, até os olhos e o cabelo pretos como piche, este volumoso e repicado. Porém, onde menos desejou foi onde mais herdou da mãe. A facilidade de corar que tinham as maças do seu rosto fazia dele um livro aberto pra quem quisesse ler a sua timidez.

Os olhos verdes da garota encontraram os seus, e ela sorriu acenando. Isso foi suficiente para abrir nele um sorriso de uma orelha à outra, e seja lá qual fosse o motivo de sua tristeza, desaparecera como que por mágica.

– Voltando da escola a essa hora? – perguntou ela lá de cima.

– Pois é... – Luan passou a mão por trás da nuca, alisando o cabelo – estava no reforço, na verdade. – Não que se orgulhasse, mas seu desempenho acadêmico medíocre obrigara os pais a pagarem um professor particular para ele todos os dias úteis. Protestou bastante quando teve de sair da natação, e Roberto, seu pai, até ameaçou tirá-lo do Tae-kwon-do. Dai as notas na escola tiveram um perceptível aumento, e ele pode permanecer nas artes marciais de que tanto gostava.

Cássia meneou a cabeça em negação e tentou prender o sorriso com os lábios, divertidamente repreendendo-o.

– Que foi? – Luan não escondia a satisfação de estar ali, parado, no meio da calçada, gastando seus minutos com aquela criatura tão encantadora e angelical. Ficaria ali até amanhã de manhã, e até depois, se ela quisesse. Não sairia pra tomar banho, comer, andar de bicicleta, pra nada. Desejava que os segundos se arrastassem lentamente, que o tempo parasse. Melhor, desejava que o tempo fosse uma formiga, para que pudesse esmaga-lo e impedir o seu curso. Mas o tempo era um filamento de água correndo, daqueles que, quando impedidos de seguir em frente, buscam outro caminho a seguir, e, na falta de outro caminho, inundam até se transformar tudo em um rio. Inevitavelmente chegando onde quer.

Cássia não respondeu, apenas continuou sorrindo, ao que Luan retribuiu sorrindo de volta. Sentir-se-ia embaraçado se pudesse ver o brilho que tinha nos olhos.

– Sabe como é, né. As pessoas me condenam, mas não ajudam muito. Você, por exemplo, poderia ir lá em casa de vez em quando, me ajudar com matemática, química, essas coisas.

– Luan... – Ainda sorria enquanto inclinou a cabeça para o lado num gesto carinhoso de negação.

– Luan! Eu quero saber o que você tá fazendo aí na calçada olhando pra minha varanda e dando em cima da minha filha! – gritou Seu Juca de dentro da padaria, logo abaixo.

O allegro do coração de Luan virou um Prestissimo mais rápido que um relâmpago. Seu sorriso congelou na cara – agora corando – e ele olhou para dentro da padaria, nervoso. Não percebera que o pai dela estava lá dentro. Não!

– Que é isso, Seu Juca! Ninguém tá dando em cima de ninguém! – tentou despistar. Cássia gargalhava com as mãos na frente da boca, a expressão de Luan era de tremendo pavor e vergonha.

– Mantenha esse pintinho dentro das calças, moleque, se não eu corto fora e uso na massa do pão.

Era o fim por hoje, Luan queria enfiar a cabeça dentro da bolsa e marchar até em casa, onde entraria no banheiro e choraria lágrimas de sangue. Ainda podia ouvir Cássia rindo deliciosamente da brincadeira do pai. Ele não pode ter dito algo assim, mil vezes não! Seu Juca era sempre muito divertido, menos para Luan. Do ponto de vista do garoto, ele era um velho gordo e cruel e pervertido que fazia brincadeiras embaraçosas com os garotos que se aproximavam da filha mais nova. Não, ele só fazia brincadeiras assim com Luan.

Nunca mais eu compro pão aqui! Pensou de cara fechada enquanto caminhava derrotado para casa. Como sempre, sabia que em duas horas estaria na padaria comprando pão. Em parte porque a mãe gostava do pão que Seu Juca fazia, em parte porque, eventualmente, Cássia estaria na varanda ou na padaria ajudando o pai. Luan estava vermelho quando cruzou a rua, desatento, e passou pelo bosque com o qual sonhara na última noite. Olhou para dentro dele, entre as árvores. Tudo agora era escuro, com o sol se pondo. Tentou se lembrar de como fora o sonho, porém sem sucesso.

Passou o dia inteiro sem sequer lembrar aquele sonho, mas quando a noite chegou os pensamentos inundaram sua mente como uma torrente. Estava deitado na sua cama encarando o teto, com as mãos sobre o peito e os dedos entrelaçados. Marina dormia na cama ao lado, mexendo vez ou outra na busca de uma posição mais confortável. A noite já ia longe, e ele não conseguia dormir. Era assim nesses dias estranhos. O sono custava a chegar, e quando o despertador tocava, ele sempre acordava de mau humor por isso. Ao menos a música de amanhã fui eu que escolhi. Divagava sobre o futuro, sobre Cássia, fazia planos, desejos, fantasiava situações. Quando finalmente conseguia dormir já era tão tarde que mal fazia cinco horas por noite, compensando apenas nos fins de semana. Essa noite, entretanto, tinha algo de estranho. A lua projetava sua luz azulada como um farol para dentro do quarto. Luan não podia fechar as janelas porque era quente demais, embora nos dias frios a mãe deslizasse silenciosamente no meio da noite para fechá-la, de modo que ambos não pegassem um resfriado. Com o vento que fazia, a cortina leve esvoaçava lentamente numa sequência de ondas inebriante, como ondas preguiçosas no alto mar. O teto refletia a luz indireta azulada, e a cortina dançava sobre o olhar de Luan. Subitamente, ouviu um barulho de madeira seca partindo sob os passos de alguém. Franziu o cenho e aguçou os ouvidos na intenção de ouvir melhor, mas nenhum som veio depois disso. Ficou intrigado por algum tempo, até decidir que tinha sido só sua imaginação.

Pouco tempo depois, acordou sobressaltado. O vento uivava agora, as cortinas pareciam ter vida própria, agitadas. Ao longe, janela afora, ouvia as árvores e sua melodia verde de folhas e galhos batendo uns contra os outros. Apoiou-se sobre os cotovelos para olhar ao redor, Marina ainda dormia na cama ao lado, alheia a todos os sons. Estou sonhando? Luan levantou da cama, vestindo as sandálias automaticamente como sempre fazia, e foi até a janela. Ventava forte, mas tudo parecia dentro da normalidade. Olhou para um lado da rua e depois o outro, e tudo parecia comum. As mesmas calçadas amplas e regulares, a rua remendada de tons de cinza diferentes, as casas dos vizinhos, as árvores e os postes com sua iluminação laranja precária, proveniente das lâmpadas de vapor de sódio.

Já se preparava para fechar a janela, quando um toque frio no seu ombro gelou o seu sangue, e então o frio percorreu todos os músculos do seu corpo. Do primeiro ao último fio de cabelo, estavam todos eriçados. Os olhos de Luan estavam tão arregalados em seu pânico que, se conseguisse mover os braços, taparia os olhos para que eles não saltassem das órbitas. Fechou-os com força e sussurrou “Marina?” na esperança de que fosse a irmã. Só podia ser ela! Disse para si mesmo, mas por que tão fria? Ninguém respondeu.

Era uma brincadeira de extremo mau gosto, e o temor deu lugar à racionalidade quando os batimentos desaceleraram um pouco. Respirou fundo e tomou fôlego para repreender a irmã, mas ao girar sobre os calcanhares, não era ela que olhava de volta.

A noite traz os pensamentos mais tolos e os medos transbordam as portas do ser.

Uma mão negra como a noite e brilhante como o metal agarrou sua camisa, Luan tentou gritar, mas outra mão tapou sua boca. Ambas eram cheias de anéis, todos de prata e ouro com adornos meticulosos e pedras preciosas de todas as cores, mas Luan não reparou neles. Os olhos ainda estudavam os braços antes de encarar o seu agressor. Sôfrego, remexeu as pernas e os braços tentando se livrar, mas seus esforços se mostraram em vão. O outro era muito forte. Desesperado, olhou para Marina, mas ela parecia simplesmente não ouvir quando ele derrubou o celular, o porta-retratos e os livros de cima do criado mudo, ou quando um copo caiu e estilhaçou no chão. Eu vou morrer! O pânico tomou conta dele. Tirou os olhos suplicantes e marejados de Marina, lamentavelmente percebendo que sua irmã não o ajudaria. Os braços do homem que o subjugara tinham diversas ligas, correntes metálicas e fivelas por cima de um bracelete de couro negro que cobria o seu antebraço inteiro. O garoto agarrou-se aos braços, tentando de alguma forma arranhá-los, mas era inútil. Um Manto escuro escondia o corpo de cima a baixo, e a parte inferior do rosto estava escondida por um tecido também negro. Uma faixa do mesmo tecido negro cobria sua testa e o início do couro cabeludo. Os longos cabelos eram grossos e caiam como cobras por cima do manto, abundantes de adereços feitos de tecidos, ossos e prataria. Do rosto, só o que se via era os olhos cheios de ódio, vermelhos como a lava.

– Onde está o livro? – Sua voz era um sussurro rouco e intimidador.

– Que livro? Que ... – Uma das mãos estava segurando sua camisa, a outra, apertando sua garganta até quase estourar – não tenho... Tem livros na gaveta!

– Onde está O livro? –perguntou de novo, como se não entendesse ou ignorasse a primeira resposta.

Luan esperneou o quanto pode, mas a mão não queria soltar seu pescoço e camisa. O homem estava entre a sua cama e a de Marina, quase o empurrando por cima do criado mudo até a janela. Em um gesto desesperado, o pequeno levantou um dos pés e acertou com o calcanhar um dos globos oculares do gigante de negro. Ele levou as mãos aos olhos num impulso e empurrou Luan contra a janela, no que seria um escorrego por cima da estreita faixa de telha e uma queda de quase três metros até o chão. Ele gritou algo, fechou os olhos, e caiu.

Por favor.

Eu não quero morrer agora.

Por favor!

Cássia...

A queda foi suave, e a morte não veio. Ao invés disso, abriu os olhos e fechou de novo, espremendo e reabrindo lentamente para adaptar a pupila à luz do sol. Luz? Inacreditavelmente, Luan estava deitado sobre um tapete de folhas secas num bosque. O bosque outra vez. Ainda estava com sua bermuda marrom e sua camisa de Star Wars. Mas o que diabos é isso? Levantou sobressaltado, procurando o homem de capa preta, mas ele parecia não estar ali. Só depois de ter certeza de sua segurança – ou tão seguro quanto poderia estar numa alucinação que parecia tão real – tentou procurar algum sinal de vida fora a sua.

– Alô, tem alguém aí? – gritou, mas o silêncio foi toda a resposta que teve. Ainda tinha lágrimas nos olhos, e os pensamentos mais tolos começaram a tomar conta dele. Pela segunda vez naquele bosque, temeu não mais encontrar alguém. Não conseguiu conter-se dessa vez, e chorou como um bebê. Primeiro correndo, depois praguejando todos os xingamentos que conhecia. Quando eles esgotaram-se, bateu contra as árvores, chutou as folhas até tropeçar num tronco muito grande que não tinha visto por baixo da camada de folhas mortas. Deixou-se ficar no chão enquanto chorava, depois sentou para continuar chorando. Chorou pelo que pareceram horas, e a essa altura já estava com os olhos vermelhos, olheiras, arranhões nos joelhos, cotovelos e no encontro das falanges com os metacarpos das mãos. A camisa fora rasgada em dois pontos quando corria. Estava um trapo, e não parecia acordar. É um sonho, tem que ser um sonho! Só pode ser um sonho. Acorda, acorda! Muito tempo se passou antes que ele visse o primeiro ser vivo que não fosse ele próprio. Um gato do tamanho de um cachorro de rua, que no começo ele tomou por um filhote de onça, pronto a trepar a primeira árvore que encontrasse para salvar sua vida. Entretanto, a criatura parecia completamente desinteressada na presença do humano. Cheirou aqui e ali, buscando o ponto onde tinha enterrado um tipo de planta que parecia ser um repolho, fixou o lanche entre os dentes pequenos e pontiagudos e partiu tão lenta e desinteressadamente como viera.

A sensação de medo começava a se desfazer, mas o fato de não conseguir acordar ainda era preocupante. Jogou-se da árvore que tinha começado a escalar na esperança de acordar ao alcançar o chão, mas tudo que conseguiu alcançar foi uma dor chata que o impediu de levantar por mais algum tempo. As lágrimas tinham secado nos olhos, e ele começou a pensar em meios de sair dali. A razão começava a acordar outra vez, antes obscura pelo medo, e ele notou que, embora as horas passassem – e embora não pudesse dizer se tinham sido mesmo horas ou apenas minutos – aquele bosque nunca escurecia. Olhou para os lados na tentativa de reconhecer o lugar, mas não obteve êxito. E se eu não acordar a tempo da escola? E se eu não puder vê-la hoje? Ir a escola resumia-se a passar tempo ao lado dela. Começou a se questionar sobre a possibilidade de um coma. Então é assim que é entrar em coma? Ou... Só então lhe ocorreu a possibilidade de estar morto, e então toda a razão se esvaiu outra vez.

Apenas correu. Correu como se sua vida dependesse disso, para todos os lados e para lado nenhum em especial. Correu como se ela estivesse no fim do caminho, ou sua mãe, ou até a professora de português que ele azucrinava e desgostava tanto e de todo o coração. Se encontrasse Marina sentada no fim do caminho, abraçá-la-ia como se fosse feita de ouro, ignorando que ela deixou o pobre irmão ser jogado da janela por um cosplay de Nazgûl num bosque esquisito com um gato vegetariano. Seus pulmões estavam às vésperas de uma parada respiratória quando, depois de uma curva à esquerda, emparelhou com outro corpo nas sombras correndo na mesma direção. Não conseguiu ver quem era, mas viu que era pequeno, estava tão assustado quanto ele, e era humano. Não vou perde-lo!

Como um leão à caça de um veado, Luan reuniu toda a sua força e instinto animal naquela caçada, pulando sobre os troncos caídos ao chão com maior destreza, franzindo o nariz e respirando com mais ferocidade, saltando mais alto e mais destemido, traçando uma rota até chegar perto da sua presa. O que eu estou fazendo? Perguntou a si mesmo numa rompante de racionalidade que logo se foi, e ele só precisava continuar correndo. Estava agora a sete metros. Cinco metros. Três. Dois... Quando estendeu o braço, o pequeno maltrapilho se sobressaltou olhando na outra direção, e então se afastou dele num pulo só, virando à direita. E dai o impacto violento.

Luan esbarrou com toda a força contra um corpo, girando duas vezes antes de cair de costas no chão outra vez. Sentia o sangue na boca agora.

– Cacete, será que eu vou precisar morrer antes de acordar? – praguejou esmurrando o chão fofo, só então percebendo que, fosse onde fosse, morrer não era uma boa ideia, e era melhor não dar nenhuma sugestão desse naipe.

Tão logo as palavras saíram, ele se arrependeu delas, com medo que seu perseguidor fosse outro homem de preto. Ao olhar para frente, o que viu foi ao mesmo tempo inusitado e belo. Sentada à frente de si estava uma garota mais ou menos da sua idade, com a mão direta esfregando a testa protuberante, os cabelos extremamente lisos e luminosos de cor laranja e as orelhas muito vermelhas saindo pelos cantos. Ela trajava com um vestido verde de mangas marrons que iam até os punhos, uma pequena bolsa de couro do lado esquerdo do corpo e outra amarrada à cintura. Tinha ainda uma bolsa de costas, retangular, muito grande e aparentemente pesada. O vestido era curto, as meias eram longas e marrons, e ela estava sentada desajeitadamente sobre as pernas dobradas, dando a Luan uma visão privilegiada que ele provavelmente não deveria ter. Não conseguiu evitar corar, e quando ela tirou a mão da frente do rosto e percebeu para onde ele estava olhando, as duas reações não podiam ter sido mais sincronizadas!

– É você! – gritou ele, apontando para a estranha.

– Pervertido! – gritou ela ao mesmo tempo, de modo que um não ouviu o outro, e uma pedra acertou o ombro esquerdo do garoto. Acertaria o nariz, não fossem os reflexos rápidos de Luan.

Ai! Ele gritou. Não era o seu dia de sorte, definitivamente.

– Enlouqueceu? – falou enquanto levava a mão ao ombro. A garota não pareceu reparar, olhando de um lado para outro, provavelmente à procura do terceiro elemento. – você também tá caçando ele? – Luan não conseguia explicar, mas se sentiu instantaneamente simpático com ela.

– Não estou caçando ninguém. E por sua culpa eu perdi aquele ladrãozinho! – respondeu irritada.

Ainda com a mão no ombro machucado, ele contemplou um pouco mais as feições dela. Tinha a pele bronzeada, com sardas iguais as da mãe e Marina, porém em número muito superior, por todo o rosto abaixo dos olhos. Os olhos, por sua vez, eram de um amarelo ocre alaranjado, vivos, espertos. Tinha as sobrancelhas e os cílios igualmente alaranjados. Seu rosto era muito bonito, é verdade. Tinha algo de selvagem naquela menina.

Ela expirou decepcionada em aceitação. Perdi-o. Olhou para Luan de volta, que continuava olhando para ela, mas tentou disfarçar por um momento só para voltar os olhos aos dela outra vez.

– É você a garota do bosque. Como eu faço pra acordar?

– Acordar? Você parece perfeitamente acordado pra mim. Acordado até demais. – disse adquirindo uma coloração rosa. Luan também corou, mas não se deixou intimidar.

– Escuta, eu preciso voltar pra o lugar de onde vim. Eu estava dormindo, tranquilamente, dai um maluco de capa preta me acordou, me...

– Shush! – Ela avançou sobre as folhas como um lagarto e se aproximou de um impulso só, jogando a mão sobre os lábios de Luan. Vasculhava atentamente de todos os lados com rapidez, como um fugitivo que se esconde do perseguidor que está perto. De uma distância tão curta, Luan sentia sua respiração quente e pesada, e seu cheiro era reconfortante.

– Eu vou embora. Desculpe pela pedra – Ela estendeu a mão sobre o ombro de Luan e sussurrou algo que ele não entendia, mas que fez a dor desaparecer imediatamente. Ele ficou espantado, mas não teve tempo de agradecer. A garota já se levantara e estava deslizando silenciosamente sobre as folhas para fora do alcance de seus olhos.

– Ei, espere aí! – gritou, tentando levantar pra alcança-la, mas um clarão o cegou por alguns instantes. Quando olhou pra trás, lá estava o cavaleiro negro outra vez, porém montado num demônio negro que Luan nunca havia posto os olhos antes. A criatura era indizivelmente feia, medonha, feroz, e avançava para cima dele com a rapidez de um raio. Não houve tempo de correr, pedir ajuda, ou sequer esquivar. Os olhos vermelhos do cavaleiro espectral pareciam sorrir enquanto sua montaria avançava, e quando a boca do monstro abriu-se sobre a sua cabeça, Luan soube que era o fim. Sentiu as mandíbulas apertarem contra seu rosto, e então tudo ficou úmido. Acordou se debatendo violentamente na cama, os lençóis molhados de suor e, bom, acontece nas melhores famílias, ele tinha mijado na cama.



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Notas finais do capítulo

Terceiro capítulo pronto! Como eu passei dois fins de semana do primeiro até o segundo, os capítulos dois e três para compensar o atraso. :D Reviews são muito bem vindos! o/



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