O Livro De Merlin escrita por Yuri Nascimento


Capítulo 10
Restaurante em Marópolis


Notas iniciais do capítulo

Lumin finalmente chega a Marópolis, em um encantador porto da cidade, e as peças começam a se encaixar em seus devidos lugares para a batalha crucial contra o rei. Mais detalhes sobre o próximo passo dos heróis são revelados, mas uma nuvem negra ainda paira sobre o que será.



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Já conseguia ver os morros abarrotados de casinhas brancas e árvores multicores lá longe, um famoso atrativo naquele pequeno porto. A maioria já tinha acendido suas luzes, que refletidas no balançar das ondas da praia inundavam o ar com uma melancolia gostosa de sentir. Acima dos morros, erguia-se imponente o casarão de Bistrein, seu destino. O mar quebrava sobre as pedras encrostadas de corais e ostras, que se erguiam timidamente à medida que eles se aproximavam da costa. Nuvens imensas de sargaço dançavam abaixo do barco, fazendo parecer que ele navegava sobre um gramado muito lodoso. O som das ondas e a visão daquela espuma branca eram reconfortantes para ele, que crescera ouvindo sobre embarcações e pescaria. Garças planavam contra o vento perto do mastro principal da embarcação, e ele olhou para cima para vislumbrar algumas delas conversando na língua das garças, sobre um fundo azul celeste meio esverdeado que logo se tingiria em tons de magenta e alaranjado com os últimos raios daquele grande sol laranja, pronto a se esconder no oeste. Com os braços cruzados sobre a murada do pequeno barco, Lumin estava prestes a finalmente chegar a um dos três portos de Marópolis, no extremo nordeste de Pedragória.

Foi uma dura viagem de oito dias até então. Naquela mesma noite da fuga, depois de teletransportado o livro, disparara como um louco rumo ao ponto onde encontraria com Dromonrai. Vagou por muito tempo na noite escura e extremamente úmida, temendo encontrar outra vez um dos Silenciosos, sempre olhando por sobre os ombros. Falar com Dromonrai era só uma forma de despistar as dezenas de milícias que buscavam por ele agora e garantir que ele sairia dessa vivo, além de confirmar o sucesso desse passo.

Dromonrai era um verdadeiro armário: dois metros e quinze de altura, ombros largos e braços fortes. Vestia um sobretudo de couro preto até os joelhos, porém aberto nas laterais da perna até a cintura, para conferir mais mobilidade às pernas. Sob ele, uma túnica marrom com uma cota de malha por baixo. Um calção também de couro e duas espadas cruzadas em suas costas completavam a vestimenta. Uma franja caía-lhe sobre os olhos castanhos escuros, e suas sobrancelhas eram desarrumadas. O nariz era parrudo e os lábios eram grossos e passavam a impressão de estar sempre raivosos, mas não era bem verdade. Debaixo de toda aquela chuva, parecia bastante um cão São Bernardo depois do banho, com o cabelo longo cobrindo todo o rosto. Sua voz era grave, uma voz doce, que tranquilizava a quem ouvisse. Suas habilidades com a espada, no entanto, perturbavam a quem quisesse provar. Precisava agora levar o jovem Lumin em segurança até o Porto das Éguas, um pequeno porto não muito longe dali, onde ele seria levado até o ponto em que está agora. Naquela noite, dezenove guardas do rei e dois feiticeiros não voltariam nunca mais para suas casas devido às espadas de Dromonrai.

Lembrando de tudo aquilo, Lumin tentou ficar positivo e pensar que tudo ficaria bem. Madeline já estaria com o professor a essas alturas, e certamente que os outros saberiam da tempestade que os acometeu no meio da viagem, transformando o tranquilo passeio de cinco dias em uma perigosa jornada de oito. Ainda bem que nos abastecemos ao deixar o Rio da Baleia – pensava. As fortes ventanias e a chuva incessante que misteriosamente abateu-se sobre o Unicórnio Dourado levou a embarcação para muito longe da costa, mais do que gostariam, fazendo-os quase se perder. Tão logo a escuridão caiu sobre o mar, raios e trovões completaram o cenário mórbido. Uma tromba d’água levou os tripulantes à loucura, temendo pelo pior, mas tão inexplicável como veio, assim se foi a tempestade.

– Tivemos muita sorte, hem, jovem feiticeiro? – brincou Aer, o velho capitão do Unicórnio – Aposto que você teve parte nisso, querendo nos dar um susto.

– Claro que não, capitão – sorriu Lumin – eu não consigo sequer erguer um objeto, quem dirá conjurar uma tempestade! Acho que isso não é sequer possível.

– Nah, nah! Ainda estou para vê-lo nesses torneios que os feiticeiros riquinhos organizam pra duelar e se mostrar uns para os outros – falou com certo recalque, pois não gostava muito de feitiçaria. Apesar disso, sabia que Lumin estivera estudando magia, pois o vira lendo alguns manuais de mudança de ordem durante a viagem, e sua inclinação para a magia era um dos motivos das brigas constantes entre ele e o pai.

– Antes me afogaria no mar! – E os dois gargalharam enquanto Aer passava seu odre de rum para que Lumin desse uma golada – que desceu queimando tudo o que tinha no caminho até o estômago.

Aer era um velho amigo do pai de Lumin, e viu o garoto crescer brincando na praia. Vez ou outra, quando brigava com o pai, Lumin se escondia em uma das embarcações do velho capitão, e o velho descobria surpreso durante a manhã um menininho sujo acordando assustado em um dos seus barcos já pronto para sair. E assim os dois iam juntos numa aventura pra conversar e trocar experiência de vida. Era como um segundo pai. Não era difícil para o jovem conseguir transporte em qualquer embarcação que quisesse. Na realidade, era um convidado muito bem vindo, por seus conhecimentos sobre mapas, barcos, o mar e o tempo. O mar exercia um fascínio sobre ele, era como se fossem feitos da mesma matéria salgada, como se seus olhos fossem uma extensão daquele poder que era o oceano.

O sol já estava baixo, e o céu era um azul tímido e diminuto que inutilmente resistia à escuridão da noite quando o barco finalmente fez sua manobra e desceu sua âncora perto do cais. Os marinheiros trabalhavam a todo vapor, cantando e amarrando cordas, fechando e abrindo compartimentos, subindo barris de cerveja e assobiando para as jovenzinhas que vinham ver o novo barco no porto. Lumin passou seu manto azul sobre a cabeça, cobrindo também a bolsa com poucos pertences que trazia às costas. Desceu as escadas da proa a passos rápidos, encontrando Aer no convés.

– Tem certeza disso, homenzinho? – perguntou o capitão.

– Sim, Aer. É só um tempo, preciso refrescar a cabeça, sair de casa um pouco. Está tudo bem – Lumin deu o melhor sorriso que conseguiu, e o velho puxou ele para um abraço fedido a rum e três dias sem banho.

– Argh, Aer! Eu não sou mais uma criança, dá pra parar com isso?

– Haha. Um homem é sempre uma criança aos olhos do pai – falou, depois pensando melhor, incrementou – e do tio.

– Tenho sua confidência, não tenho? – inquiriu Lumin, querendo certificar-se de que ninguém, nem mesmo seus pais, saberiam do seu destino.

– Total e plena – e deu-lhe um tapa mais forte do que uma pessoa normal faria – só venho aqui outra vez daqui a cinco luas. Se cuida e manda notícias.

Lumin anuiu com a cabeça sorrindo, e então se precipitou escada abaixo nos mesmos passos rápidos de sempre. As luzes já estavam em todos os cantos. Alguns mercadores preparavam-se para voltar pra casa depois de um dia de trabalho, desarmando suas tendas, jogando fora a água de dentro de suas caixas de isopor e contando suas moedas de prata. Outros passavam correndo com trios de samburás amarrados em cada lado de um bastão que carregavam no ombro, vendendo a preços baixos o peixe que não venderam ao longo do dia. Enquanto umas tendas eram desarmadas, outras se erguiam, cheias de cores e luzes. Uns vendiam maçã do amor, outros amendoim, outros ofereciam tiro ao alvo. Lumin passou por um grupo de crianças barulhentas acocoradas que vestiam apenas uma túnica e se divertiam, gargalhando, com uma lata e um pobre caranguejo que rodopiava de um lado para o outro, tentando escapar dos pestinhas.

Casais andavam de mãos dadas pelo porto, pois (Lumin ouvira) hoje desembarcara ali uma companhia de circo, e todos vinham ver. Afastando-se da balbúrdia inicial, Lumin chegou às escadarias que davam acesso às ruas subindo o morro, saindo do porto. A cidade era linda, todas as paredes brancas, algumas com insetos luminescentes andando nelas, e as luzes amareladas acalentavam o coração, passando a sensação de conforto e aconchego. Era sua primeira visita àquele porto de Marópolis, e Lumin não imaginara que algo assim existisse. Passou por belos restaurantes, depois casas numa rua muito estreita e cheia de verde. O chão era feito de pedras redondas, e capim crescia nos cantos da rua, e então plantas cobrindo as paredes das casas. Como se tivessem brotado nas paredes de plantas, janelinhas redondas com uma luz amarelada vindo de dentro instigaram a curiosidade de Lumin. Gnomos petrificados davam as boas vindas a quem passava sob o portal que era a entrada das casas, e todas pareciam muito acolhedoras.

Depois de trinta minutos subindo e descendo escadarias e vielas retas e circulares, estreitas e mais estreitas ainda, Lumin se aproximava do lugar onde encontraria a pessoa que lhe daria mais instruções. Apesar de todos compartilharem informações no grupo, os pedaços mais atômicos eram conhecidos apenas por certos membros, e eles repassavam esses detalhes aos outros à medida que fosse necessário. Quanto menos soubessem do quadro geral, menos teriam a entregar caso algo desse errado. Quanto mais soubessem do seu próprio quadro, mais fácil seria fixarem na mente suas tarefas e executá-las sem confusão.

Chegou a uma grande praça, onde ficava a entrada para o casarão de Bistrein. Alguns postes baixos de tinta verde ressecada e enferrujada pela maresia estavam dispostos em círculos ao redor e no centro da praça, iluminando tudo com aquele amarelado típico de Marópolis. No centro da praça, um chafariz com uma estátua de um grande centauro de bronze soprava sua corneta gigantesca, mas dela saia água. O centauro tinha na outra mão um facão de duas lâminas, que ele segurava pelo punhal que ficava entre cada uma. Era chamado o protetor de Bistrein e guardião da cidade.

Lumin sentou-se no mármore marrom para olhar ao redor e esperar quem quer que viesse lhe buscar. O casarão era também branco, com um jardim magnífico na entrada, e uma alameda cobria grandes pilares que davam sustentação a um teto em mármore que levava do portão gradeado meticulosamente trabalhado até a entrada principal, lá no alto. Era como um túnel de mármore dentro de um túnel de árvores. O muro da propriedade era um pouco baixo, tinha um metro e meio, e acima dele mais um metro e meio de grade terminava em uma ponta em forma de seta, afiada. O casarão tinha um formato hexagonal, com seis torres redondas de grandes tijolos brancos ligados por um paredão liso que, visto de longe, era só um paredão preto com cinco fileiras amarelinhas horizontais brilhando: suas janelas.

Apesar de maravilhado com o pouco que vira da cidade, o garoto não podia disfarçar a preocupação que insistia em pintar-lhe o rosto para quem quisesse ver. Pensava em Madeline, se ela estaria bem, se ela... Se apenas soubesse, dizia para si mesmo em pensamento. Sentia-se culpado, responsável por ela, ao mesmo tempo em que tinha plena ciência de que seu comportamento só acalentava algo que não existia e que não poderia mais existir. Desculpe, Madeline. Mil vezes desculpe.

Pegou-se pensando em seu pai outra vez. No dia da fuga, saíra de casa antes do por do sol para não encontra-lo voltando para casa. Sua mãe também havia saído para a feira no porto. Durante a madrugada, voltou acompanhado de Dromonrai – que esperou do lado de fora – e reuniu algumas roupas numa bolsa às pressas sob os gritos e ameaças de seu velho pai e as lágrimas de sua mãe, insistindo para que falasse e tentando desfazer sua pouca bagagem.

– Eu não criei você para essas coisas, Lumin! Tenho certeza que é essa merda mágica que andam enfiando na sua cabeça naquela escola. Você não é mais uma criança, é quase um homem. Se cruzar aquela porta com essa bolsa nas costas, melhor não voltar! – gritava, com metade do rosto iluminado pelos clarões repentinos que de vez em quando cegavam a todos como o flash de uma câmera fotográfica.

Lumin só conseguia não chorar. Era impossível articular uma só palavra. Seu pai não entendia, e não entenderia. Ele não podia contar sobre o plano, e talvez nem contaria se pudesse. Eu já fugi tantas vezes, e sempre voltei. Espero não precisar voltar, mas, caso precise, ele não vai me renegar. Não pode perder o prazer de transformar minha vida no inferno todos os dias.

Sua relação com seu pai havia se tornado muito ruim nos últimos quatro anos. De repente, o garoto se viu rangendo os dentes e chorando de raiva pelas tentativas frustradas de escalar aquela parede de gelo, tudo após a morte de Ulisses, seu irmão mais velho. Ulisses morreu em alto mar, quando o navio do qual fazia parte esbarrou num grupo de piratas depois de perder o curso durante uma tempestade. As ondas brincavam com os dois montes de madeira como duas mãos azuis fingindo que vão virar dois copos com três dedos de um vinho fino, para então trazer o copo à orientação normal e fingir que vai virá-los outra vez. Os navios pareciam gritar, de tão alto que era o rangido da madeira sob os pés dos tripulantes.

O navio pirata era o Sorriso do Java – por ser este o último vislumbre de quem chega a fitar um Java – e seu capitão era um bruxo maléfico que, no passado, fora um feiticeiro de ordem três. O navio de Ulisses era um besouro indefeso preso nas teias de uma aranha. O capitão do Sorriso, conhecido por “infame joalheiro”, era um homem sádico e assustador. Subiu ao bojo de madeira no topo do mastro principal, de onde abriu um livro e, com uma voz estrondosa que parecia vir de todas as direções, conjurou entre gargalhadas um feitiço poderosíssimo que levantou sete trombas d’água. As trombas dançavam sobre a inconstância das ondas ao querer do bruxo, que balançava, quase caindo, como um maestro bêbado assistindo a ruína de um navio de camarote. Apontava uma das gigantescas cordas d’água que ligava o céu e o mar, e ela movia-se aonde quer que ele apontasse, passando por cima da proa do barco de Ulisses, depois a popa, comendo-o pouco a pouco a cada mordida. Seus demônios riam e gritavam no convés principal, de facões na mão erguidos lá no alto, e davam fortes tapas no peito cheio de cicatrizes.

Quando só restava madeira, pano, cordas e homens flutuando no oceano a frente deles, os homens do Sorriso do Java lançaram-se ao arco-e-flechas. Brincavam de acertar as pobres almas que pediam clemência desesperadamente. Alguns foram resgatados e mutilados, mas chegaram vivos à costa para contar história num barquinho que mal cabia seis pessoas, mas trazia dez, dentre os quais oito morreram no caminho. Um deles se matou pouco tempo depois. Nunca mais se viu o Sorriso do Java ou o Infame Joalheiro.

A criança de treze anos não entendia a reclusão do pai que sempre admirara tanto, e sempre fora tão terno com os dois irmãos. Teria ele feito algo de errado para merecer tamanha frieza? Também sentia a perda do irmão, mas cada tentativa de confortar seu pai resultava em um afastamento mais ríspido por parte deste, como se o empurrasse para longe. Até que cessou de tentar, esquecendo-se da criança adorável que era, do irmão e do pai que um dia conheceu. Após um ano de escoriações, Lumin decidiu que fecharia os olhos e o coração aos esforços de afastamento do pai, que parecia ter esquecido de que ainda tinha um filho vivo.

Por muito tempo quis vingar o irmão. Primeiro pensava em se tornar um grande navegante, para orgulhar seu pai e ter a proteção do irmão sempre por perto, sua memória sempre viva. Quis caçar o Infame Joalheiro, e bradava a quem quisesse ouvir que, um dia, reuniria uma tripulação tão forte e destemida que conseguiria prender e punir o pirata por seus crimes de longa data. As pessoas o olhavam com pena, uma criança tola que nada sabia do mundo. Mas tão logo percebeu que aquilo só lhe causaria mais dor, aliado a crescente repulsa de seu pai talvez pela semelhança entre os dois que só se acentuava com o passar do tempo, optou por estudar magia. Sabia que não poderia ser um feiticeiro, não um graduado como os outros, mas isso não o faria desistir do intento. Precisava mostrar a si mesmo que poderia ser o que quisesse, precisava mostrar ao pai que não se importava com o que ele pensaria dele. Precisava causar-lhe mais dor a fim de arrancar uma reação, qualquer que fosse.

Lumin acabou crescendo uma cópia do irmão, mas completamente diferente por dentro. Onde Ulisses era de riso fácil e bobo, Lumin era taciturno e cínico. Onde Ulisses era ingênuo, Lumin era calculista. Onde Ulisses falava pelos cotovelos e bebia até cair da mesa, Lumin estava sempre sóbrio e recluso, só falando quando convinha. Onde um tinha o corpo forte e uma namorada em cada ancoradouro, o outro era esguio e solitário. Onde um passou a vida conhecendo os mares e os portos, o outro dedicou-se a estudar na Academia Estadual de Argória, e lá fez amizades com caras ruins – que hoje não eram mais seus amigos, pois Lumin era outra pessoa – mas há dois anos atrás, o rapaz era um completo rebelde.

Quando o pai, passada a dor da perda, percebeu que ainda tinha alguém que precisava de si, o rapaz magricela de longos cabelos encaracolados já não o conhecia mais, e ele também não o reconhecia. Dai pra frente tudo foram atritos e sucessivas discussões sem sentido, que nunca diziam nada, apenas externavam a insatisfação mútua que crescera entre pai e filho ao longo dos anos.

Soltou todo o ar preso nos pulmões, esticando os braços na frente do corpo. Já começava a ficar cansado de esperar, quando um grande corcel negro pintou no fim da rua que dava para a praça. Sobre ele, uma pessoa de capuz negro acenava em sua direção. Franziu a testa na tentativa de enxergar melhor, mas a iluminação não favorecia. O estranho trotou até o centro da praça, onde Lumin agora estava de pé, e deslizou do cavalo num impulso só, correndo para um grande abraço.

– Regina! – exclamou Lumin, visivelmente surpreso.

– Ah, Lumin! Que surpresa boa! – respondeu a garota contente em vê-lo – achei Dianna viria em seu lugar. Arzan, sempre aprontando!

Lumin sorriu. Não sabia que ela estaria ali, pois Regina era uma estudante na EAACA, e supostamente estaria em Assunção agora.

– É, eu não imaginei que você estaria aqui! Não deveria estar em Assunção? Está de férias?

Ela olhou por baixo para um lado e para outro teatralmente, fingindo estar embaraçada. Era uma ótima atriz, e uma pessoa muito divertida.

– Bom, o professor Walter está cobrindo nossa retaguarda. Vim para casa de meu tio aqui, não tem ninguém ocupando no momento. É para onde nós vamos.

– Ótimo, porque eu já estou faminto! – respondeu Lumin.

– Bom, então você precisa provar carne de baleia amarela, é uma maravilha do mundo gastronômico! Vou te levar a um restaurante muito bom que tem aqui perto. Por minha conta.

Regina pulou de volta sobre o seu cavalo, e Lumin ficou esperando ela tomar uma direção, mas ela também parecia estar esperando que ele fizesse alguma coisa.

– Vai ficar aí? – perguntou.

– Não, estou esperando você dizer o caminho.

– Você vai mesmo andando? – ela perguntou levantando a sobrancelha esquerda, como se houvessem centenas de cavalos à espera de Lumin escolher um deles.

– Eu não tô vendo nenhum outro cavalo aqui... – Lumin ainda não entendia o que ela queria passar.

– Você vai na minha garupa, garoto. – ela falou sorrindo, e Lumin sorriu de volta em desistência, montando na parte traseira do cavalo.

Regina puxou as rédeas da montaria, dando um giro e voltando a galope pelo caminho de onde viera. Seu gosto por velocidade, velho conhecido de Lumin, o assustava exponencialmente agora que ele era o carona. Ela era uma estudante reconhecida de feitiçaria aplicada, e tinha acabado de passar nos exames de primeira ordem, algo como o sétimo de dez períodos de uma graduação no nosso mundo, e ensinava algumas disciplinas no tempo livre, ajudando os noviços. Tinha o rosto de uma boneca: as maçãs do rosto rosadas, os lábios bem delineados, os olhos castanhos penetrantes e os dentes perfeitamente alinhados e brancos.

Era um pouco mais alta que Lumin. Dezenove anos, os cabelos perfumados que se enrolavam para dentro como um pergaminho na altura do pescoço agora esvoaçavam na face de Lumin, que tinha os olhos semicerrados e agarrava vigorosamente à sua cintura, mais por medo que por qualquer outra coisa.

– Tá curtindo a viagem? – perguntou marota, bastante alto para que ele pudesse ouvir sobre o som do vento que cortava seus rostos.

– Terrivelmente! – respondeu Lumin.

As ruas por onde passavam estavam quase vazias, e a noite era de um azul etéreo salpicado de alaranjado vivo no topo dos postes de ferro, com seus mastros corroídos pela maresia e a alta salinidade do ar, como velas de tamanho grande demais. Em todos os pontos da cidade, gnomos e outras criaturinhas de pedra como sapos, dragões e anões, enfeitavam os inúmeros jardins, praças e piscinas artificiais ao longo do caminho.

Pararam de frente para um prédio de três andares com uma bela coleção de orquídeas na fachada do térreo, as paredes de vidro e uma vista deslumbrante do mar leste. Ficava no topo de um dos morros, e de lá era possível ver a cidade iluminada e os navios ancorados no porto. O primeiro piso e o último eram como grandes paralelepípedos do mesmo tamanho, enquanto que o do meio era consideravelmente menor, numa arquitetura engraçada de se ver. Na varanda do segundo e terceiro pisos, mesinhas de madeira escura borbulhavam de vozes, gente, e suas cadeiras altas da mesma madeira escura trabalhada à mão.

Garçons deslizavam habilmente com quatro grandes bandejas de pratos suculentos, duas em cada braço, na maioria das vezes frutos do mar como lagostas, caranguejos de Uruk (famosos por seu tamanho descomunal), ostras ao molho branco, camarão azul, um peixe frito com óleo e cebolas que custava os olhos da cara, mas fazia sentir-se no paraíso. Quando não, traziam vinhos caros e nem tão bons assim, mas que eram uma prova de resistência aos mais bravos, bem como cartão postal da cidade. Às vezes coquetéis de morando com Venenágua, uma bebida altamente alcoólica que fala por si só. Guarda-sóis decoravam as mesas, e um telhado verde encimava o último piso e a parte do primeiro que o segundo não cobria. Para completar o quadro, uma banda de Jazz fazia uma apresentação ao vivo no primeiro piso. Era um restaurante encantador, de fato.

– Pode descer, bonitão – brincou Regina, e Lumin prontamente atendeu, aliviado que a aventura tivesse terminado. Só esperava que ela não fosse ficar bêbada. Ela entregou as rédeas para o chofer, que se encarregava de guardar os animais dos clientes – Seu nome é Gato – informou apontando para o seu belo corcel com a cabeça, e ele sorriu concordando.

Regina puxou o laço que prendia seu manto na frente, tirando-o e dobrando-o por cima do braço esquerdo. Nem parecia o espectro de preto que apanhara Lumin minutos atrás. Agora, o que se via era uma jovem dama em toda a sua beleza: um vestido azul cobalto que acabava acima do joelho, com uma fita de cetim dando um laço na cintura. O decote em U não era vulgar, mas chamava a atenção. Uma bota de couro preta que ia até dois terços da canela e uma pequena jaqueta branca. Era como se tivesse se transformado em outra pessoa em questão de milissegundos.

Ofereceu o braço direito para que Lumin leva-se a para dentro, e ele estava espantado com a transformação dela.

– Feitiço novo? – perguntou brincalhão.

Ela sorriu para ele e os dois entraram no restaurante. O cheiro da comida era estonteante, e só agora Lumin reparara no quanto realmente estava faminto. Poderia comer um boi inteiro sozinho se lhe fosse oferecido. Alguns dos homens no salão pararam suas refeições e reuniões para dar uma breve espiada na mulher que acabava de entrar. Lumin se sentiu desconfortável com isso, mas Regina apenas ria e cochichava alguma coisa em seu ouvido sobre as comidas, os restaurantes e o vinho. Outra característica da jovem era sua facilidade de lidar – e manipular – os homens. Desde cedo seu comportamento diante da descoberta do que lhe fazia especial era altamente oportunista e conferiu-lhe uma posição de dominadora, sempre. Também lhe rendeu sérios problemas na escola em Assunção, é claro. Filha única de família abastada, Regina não conhecia muito bem limites, mas não era alguém irresponsável. Os dois subiram para o primeiro andar e ocuparam uma mesa na varanda, com vista para o mar.

– Agora que eu paro pra reparar – Lumin dizia depois de uma fungada discreta na sua camisa – acho muito errado você me trazer aqui toda bem vestida assim enquanto eu estou fedendo, salgado e tão sujo quanto um porco.

– Hahaha. Oh, falha minha – respondeu dando língua – Achei que seria cruel obrigar você a tomar um banho e se vestir devidamente quando estava visível que sua fome era tão grande. Na próxima não vou pegar leve.

Levitate! – falou Lumin, e o cardápio que jazia em cima da mesa deles instantaneamente se prostrou na vertical – Passare Paginae! – Agora as páginas corriam como se uma ventania folheasse o cardápio. Regina gargalhou com as mãos na frente da boca diante da brincadeira.

– Como você é bobão, Lumin! Passare Paginae? De onde inventou isso?

– Um feitiço muito antigo e difícil de executar, ensinado aos primeiros feiticeiros deste mundo.

– Mesmo? – Ela arregalou os olhos fingindo interesse enquanto apoiava o queixo sobre as mãos – Que tal esse: Cardapiae Semblantis! E o cardápio acertou a testa de Lumin, fazendo-o perder a concentração e derruba-lo no chão. O garçom riu quando veio anotar os pedidos e Lumin tinha uma mancha vermelha na testa. Pediram um suco de frutamarga com leite e uns petiscos pra colocar o papo em dia, e depois um prato principal avantajado o suficiente para alimentar seis pessoas – mais uma característica da encantadora Regina: ela não dispensava uma boa refeição.

Depois de comerem até se fartar, já estavam sonolentos sobre as mesas. As pessoas ao redor começavam a se despedir e partir, e a noite já ia alta agora.

– Bom, acho que agora está melhor para conversar, certo? – sugeriu Lumin.

Lumin! – Regina falou com uma voz surpresa, e Lumin corou um pouco enquanto tentava explicar que ela entendera errado, para diversão dela – Só estava brincando, bobo. Ah, Lumin, não seja tão recatado. Sim, a lua está linda, o vinho estava bom, a música também. – Ela tamborilou com os dedos sobre a mesa, olhando para o horizonte escuro na noite e bebendo mais um pouco do seu vinho.

– Você tem notícias de Madeline?

– Não, mas devemos ter em breve. Eu fui mandada aqui para ensinar algumas coisas a mais para você. Parece que você tem um papel muito curioso nessa história toda.

– Como assim?

– O Klien quer que você aprenda magia. Feitiços de verdade, não materializar trinta centímetros quadrados de chão sob o seu pé ou levitar cardápios – o tom dela fez Lumin se sentir um idiota pela brincadeira mais cedo, mas ela logo sorriu e tratou de ser gentil outra vez – Mas o Passare Paginae foi fantástico – e os dois sorriram.

– E deixa eu adivinhar, você não sabe por que eu preciso aprender magia, não é? – falou ele, já sabendo a resposta.

– Não, não sei. Mas desconfio que seja importante, Lumin. Eu recebi uma carta apenas ontem. Dianna e Jargo estão vindo para cá, encontrar conosco. Eles são dos melhores da organização, você deve saber. Fico me perguntando por que você, justamente você que não vem de uma família de feiticeiros, precisa aprender feitiçaria.

– Não faz sentido! – falou, depois corrigiu seu tom de voz quando um garçom passou perto da mesa, e falou mais baixo – não faz sentido. Você é uma feiticeira, Madeline é uma feiticeira. Dianna é uma feiticeira, e também o Jargo. O Dromonrai tem poderes, Zenir, tantos outros. O próprio Arzan deve ser o mais poderoso do Klien.

– Arzan é astuto, sabe agir na hora certa, sabe mover as peças e analisar o quadro geral. Ele sabe esperar. Não quer dizer que ele derrotaria qualquer um em um combate direto. Dromonrai, por exemplo, é quase invencível, mas não significa que ele possa fazer tudo sozinho. Seja lá qual for o papel que eles têm para você, eu preciso contribuir com alguma base, e é isso que nós vamos fazer até eles chegarem aqui.

Lumin ainda tentava digerir o que acabara de ouvir. Estava pensando em alguma tarefa mais simples, não... aprender feitiçaria. Não que não gostasse, muito pelo contrário, mas quando pensava na responsabilidade que tinha em mãos, ele e os demais, sentia-se não mais que um menino, perdido e inseguro.

– Lumin – Regina pegou uma de suas mãos – vai ficar tudo bem, certo? Sabe, aquele feitiço que você usou para teletransportar Madeline, foi fantástico e deu certo. Você tem algo especial, não é como os outros. Existe um potencial oculto no seu sangue, e nós precisamos fazer uso disso. Acredito que seja isso que Arzan quer.

– Sim, eu sei. Apesar de tudo – ele olhou para a mesa do outro lado do vão, onde uma mulher bebia alguma coisa sozinha, perdida em seus pensamentos – me preocupo com Madeline.

Regina esboçou uma expressão terna, sentindo-se simpática ao carinho que ele parecia ter por Madeline.

Os dois conversaram ainda por um bom tempo antes de rumarem para a casa do tio de Regina. Falaram de sonhos e expectativas, frustrações e esperanças. Muito em breve esperavam que Dianna e Jargo chegassem com notícias de Madeline e o que aguardava-os no caminho.


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Notas finais do capítulo

Wee! Mais um capítulo terminado. Recentemente eu tenho tido muitas ideias pra história, e por isso continuo escrevendo quando deveria estar... estudando, por exemplo. Mas bem, terá valido a pena se a história ficar boa :D Espero que isso esteja valendo a pena ser lido XD



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