Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 16
Capítulo XVI: Revelação




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Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

 

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

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Capítulo XVI

 

“Revelação”

 

A pista de pouso era relativamente isolada e inóspita, apesar de localizada a apenas alguns quilômetros de distância do Monte Fuji e da estância que até então servira de central de operações à equipe de investigação do Caso Kira. Era constituída apenas por uma tira de asfalto escondida em meio a uma área florestal, e naquele momento já recebia o avião a jato que levaria os integrantes da força-tarefa até seu novo posto na França. Estes chegavam ao local num pequeno comboio de carros pretos, guiados por motoristas da confiança de “R” através de uma estrada igualmente esquecida do mundo.

Os veículos foram estacionados junto à cabeceira da pista, seus ocupantes deixando-os sem muita pressa, apesar da situação em si exigir urgência. O agente Adams, como era de se supor, estava presente, e, calado e sisudo como de costume, passou a conduzir os policiais rumo ao interior da aeronave. Carregava a maleta-notebook numa das mãos, deixando claro que “R” voltaria a se comunicar com o grupo em breve.

O clima entre os investigadores era de quase total desconfiança. A alegação de que existia um traidor entre eles fizera com que mal pudessem trocar palavras entre si referentes ao próprio caso. Teria sido essa a intenção de “R” ao semear a suspeita entre eles? Fazer com que cada um deles acabasse trabalhando de modo mais individual para que a investigação desse um salto? Existiria mesmo alguém dentro do time agindo contra os demais, ou seria apenas uma mentira de “R” visando tal estratégia?

De qualquer modo, o capitão Matsuda aparentava ser aquele que melhor compreendera o recado, pois já era do conhecimento de seus colegas que ele utilizara as horas restantes no Japão para investigar algo por conta própria. Só não sabiam que o objetivo era descobrir a identidade do próprio “R”, informação que Touta agora possuía e que ainda tinha dificuldade em assimilar. Conseguiria carregar o fardo de tal revelação até o fim do caso, sem compartilhá-la com os outros? No fundo ele sabia que isso geraria apenas mais suspeitas e hostilidade em relação à sua pessoa.

De fato, isso já era demonstrado claramente pela postura dos demais agentes em relação ao japonês. Todos o olhavam de soslaio, desconfiados, temerosos. Até mesmo o próprio Hoshi não sabia mais se poderia contar realmente com seu superior. O mais incomodado dentre todos, Dennegan acabou por apressar seus passos na direção de Matsuda e, colocando-se ao lado dele conforme a equipe andava até o avião, disse-lhe quase sussurrando:

         Você deveria compartilhar com todos o progresso que faz sozinho no caso, capitão... Caso contrário, será inevitável que nós acabemos suspeitando que você está... fazendo vazar informações!

O marido de Sayu teve de se conter. Sua vontade era rebater o estadunidense com o argumento de que não era obrigado a contar nada a ninguém, inclusive pelo fato de poder ser ele o traidor. Porém não o fez. Não desejava criar ainda mais fissuras no grupo, e por isso se manteve calado, tentando dissipar sua raiva conforme se aproximava da entrada do jato. Venceu os poucos degraus da porta e, já dentro, acomodou-se numa das poltronas enfileiradas. Se “R” fosse mesmo a pessoa que deduzira ser – o que era praticamente certeza – esperava ao menos que tal personagem realmente soubesse o que fazia e não os levasse para uma enrascada... Afinal, tratando-se de Kira, as vidas de todos que tentassem pegá-lo sempre estariam em jogo.

 

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Fim de tarde em Paris, as flores nos canteiros de Montparnasse anunciando o princípio da primavera.

Por uma das calçadas do bairro, duas jovens estudantes de Direito caminham lado a lado. Justine e Paule. A primeira, apesar de todos os seus temores devido aos últimos acontecimentos e a ameaça que acarretavam para si, mantinha o rosto firme e fechado, os cabelos loiros soltos esvoaçando de leve devido ao vento. Em sua mente, revia todas as frases que diria à amiga logo que estivessem trancadas em seu quarto, decidia quais palavras causariam maior impacto em Delacroix – substituindo alguma quase a todo momento – e tentava prever quais seriam as possíveis reações dela, para assim já estar preparada. Nada poderia falhar. Caso não conseguisse lidar com ela... a solução final já estava programada.

Quanto à morena, era quem parecia verdadeiramente estar aterrorizada. Mal conseguia ocultar tal sentimento com a preocupada expressão em sua face. Um leve rubor cobria a mesma, denotando ansiedade, apreensão. De alguma maneira sabia que dentro de instantes sua vida nunca mais seria a mesma. Clare parecia ter algo para revelar-lhe, um segredo mortal, terrível. E mesmo sem ainda saber sua real natureza, já não parecia capaz de suportar o peso sobre seus ombros...

As duas amigas chegaram à frente do sobrado de Justine. Esta já se pôs a vencer os degraus rumo à porta de entrada. Paule parou, hesitou. Teve vontade de chorar. Que afinal estaria acontecendo? Teria realmente motivos para sentir-se tão mal junto à outra jovem? Porém, depois de a órfã se voltar para ela e abrir um sorriso pueril, recuperou parte de sua calma. Seguiu-a.

Cruzaram o vestíbulo. O velho François assistia a um programa na TV, como de costume, sentado de costas para as recém-chegadas.

         Cheguei, vovô! – a loira anunciou-se.

         Olá, chéri – respondeu a neta, serena. – Paule veio comigo. Nós vamos debater alguns textos para a prova de semana que vem.

         Mas Justine, você não ia copi... – oscilou Delacroix, confusa.

         Certo, certo, eu também queria copiar sua resenha do livro de Direito Civil para poder comparar às minhas anotações, porém precisa falar isso na frente de vovô? Não quero que ele pense que estou colando!

         Ora, ora, essa minha neta não muda – o idoso sorriu, divertindo-se. – Estudar em conjunto não é o mesmo que colar, querida. Eu também adotava esse método quando estava na universidade. Tornava-se bem mais fácil estudar a matéria para as provas. Bem, de qualquer forma, o jantar irá atrasar um pouco. Acabei cochilando à tarde e me atrasei para comprar as coisas no mercado. Espero que não esteja com muita fome. E Paule, se quiser nos fazer companhia...

         Merci – replicou a visitante, tentando disfarçar sua insegurança, ainda mais agora diante da clara mentira da amiga. – Fico agradecida, senhor, mas minha mãe já me aguarda em casa.

         Muito bem, espero que possa vir numa próxima vez. Fique à vontade.

         Com licença, vovô...

Dizendo isso, Justine dirigiu-se até a escada, já rumando para o andar superior. Paule a continuou acompanhando, um pouco trêmula. O que levara Clare a mentir para o avô daquela maneira? O que queria esconder dele? Teria algo a ver com a conversa que logo se desenrolaria? Quanto à outra moça, cada uma de suas ações eram cuidadosamente ponderadas por seu intelecto. Não podia deixar que Delacroix mencionasse que viera até ali para Justine copiar sua matéria, pois assim o avô descobriria que esta não fora à aula no dia anterior, e de imediato surgiria a suspeita a respeito de para onde ela então se encaminhara ao sair de casa pela manhã. Tinha de manter as duas histórias que criara para justificar sua ida ao museu desassociadas entre si.

Chegaram à porta do quarto de Clare. A fechadura foi destrancada com o uso da chave que a jovem sempre carregava consigo e, após um breve espirro devido aos efeitos da gripe, abriu caminho para que Paule também entrasse. As botas pisaram o assoalho do dormitório parcialmente iluminado pela claridade do crepúsculo, a lâmpada do local ainda sem necessidade de ser acesa. O computador e a TV estavam, como já era hábito, ligados, porém Masuku – visível apenas a Justine – parara de digitar os dados de criminosos no teclado. Certamente percebera a presença de uma estranha e não daria mais sinais de sua existência sem que a usuária do Death Note lhe desse consentimento. Esta, encarando o Shinigami por um momento, notou nele expressão de profunda surpresa. Ele não esperava mesmo uma atitude como aquela por parte da humana, algo que poderia botar tanto as coisas a perder.

Ela, no entanto, estava certa de que ainda se mantinha no pleno controle da situação, apesar de todas as adversidades.

Sentindo-se incomodada e desconfortável, braços abraçando o próprio tronco como se fosse acometida de frio, Paule sentou-se sobre a cama da amiga. Observou-a dar alguns passos pelo quarto com aparente tranqüilidade, retirar as botas, ficando apenas de meias, e colocar sua mochila e seus livros num canto próximo à escrivaninha. Delacroix estranhara e muito o fato dos aparelhos eletrônicos de Clare terem sido mantidos ligados enquanto ela estava fora e, certa de que a órfã era incapaz de cometer tais lapsos, concluiu que ela fizera aquilo de propósito, com algum intuito obscuro. Talvez logo o descobrisse...

Amedrontada e sem saber bem o que pensar, Paule ergueu o rosto, tendo receio até em fitar a colega nos olhos e, vendo-a se aproximar com semblante sério, ouviu a afirmação saída de seus lábios como uma espécie de intimação:

         Nós precisamos conversar!

 

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Um galpão subterrâneo. Na verdade não exatamente um galpão, mas algo como uma estrutura subterrânea composta de metal e concreto, escavada em meio à rocha, destinada a comportar considerável número de pessoas. Indivíduos que desejavam estar longe dos olhos do resto do mundo, pelo menos no tocante ao motivo de se reunirem ali embaixo...

Todos, que no total somavam algumas poucas centenas, trajavam capa e capuz brancos, estando enfileirados de modo quase perfeito diante de uma espécie de palanque natural, moldado pelas rochas e nelas incrustado, a alguns metros de altura acima do solo da caverna. Em tal saliência, iluminada por lâmpadas dispostas em vigas junto ao teto, havia um microfone alojado sobre um pedestal de madeira, e em cima deste, um homem de meia-idade vestido da mesma forma que os outros ali presentes, mas com o capuz da veste retraído – deixando à mostra seu semblante e os cabelos brancos – discursava à platéia devota da insana seita ali perpetuada, tendo às suas costas, junto à parede rochosa, pendurada uma bandeira negra retratando uma cruz diante de uma foice ensangüentada:

         Fiéis devotos do culto a Nosso Senhor Kira! Está próximo o momento de nosso guia mostrar toda sua glória! Os inimigos da bondade e da justiça estão sendo gradativamente eliminados pelo julgamento divino, e logo nosso mundo estará livre de todos os pecadores e maus! No entanto, urge que aqueles, como nós, que acreditam em Kira e em seus sagrados atos, cuidem para que nosso mestre não seja capturado ou morto pelas forças malignas contrárias à limpeza da Terra! Nosso contato infiltrado na equipe de investigações que caça Nosso Senhor Kira pelos quatro cantos do mundo nos informou que as autoridades localizaram-no em Paris, na França. Caso os inimigos da fé na verdadeira justiça ousem atacar o divino Kira, nós devemos nos mobilizar o quanto antes para protegê-lo e livrá-lo das garras de seus algozes! Aqueles que morrerem protegendo-o terão infinitas recompensas das mãos do senhor supremo dos julgamentos! Viva a justiça legítima! Viva Nosso Senhor Kira!

 

VIVA!!!

 

O grito em resposta dos fanáticos foi tão estrondoso que chegou a abalar a estrutura do reduto subterrâneo. Sim, todos eles estariam dispostos a morrer para proteger Kira. Era o mínimo que poderiam fazer para retribuir as ações punitivas deste contra aqueles julgados malignos. No momento certo agiriam. A missão divina daquele em que acreditavam não podia sob hipótese alguma ser interrompida.

 

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O clima de tensão e incerteza só crescia no quarto de Justine Clare. Paule continuava sentada sobre a beirada da cama, corpo e membros tremendo de leve, calafrios arrepiando cada poro de sua pele. Foi quando a amiga parou diante de si e, num gesto inesperado por parte da visitante, abaixou-se e tomou seus joelhos com as mãos, massageando-os como que para acalmá-la. Então procurou fitá-la nos olhos, apesar de Delacroix evitar a todo custo tal contato visual, mas acabou fazendo-a ceder. Assim, com as pupilas se encarando, nenhuma das duas garotas ousando sequer piscar, Justine indagou:

         Você se lembra das mortes em série de criminosos que vêm ocorrendo pelo mundo, certo?

         S-sim... – Paule replicou, estranhando um pouco o questionamento. – Isso é obra de Kira. Ele está assassinando meliantes em massa para, segundo seu próprio julgamento, livrar o mundo daqueles que desrespeitam as leis. Você sabe muito bem meu posicionamento a respeito disso, já lhe falei...

         E se eu lhe dissesse que sou Kira? O que faria?

O quê? Do que Justine estaria falando? Que brincadeira era aquela? Algum tipo de prova, de jogo? Estaria Clare duvidando da amizade de Paule e fazendo aquilo para testá-la? Fosse o que fosse, a situação a machucava muito. Por que ela agia assim, com que propósito? Por que torturá-la tanto assim? Seria justo, seria cabível?

         Do que está falando? – Delacroix compreendia cada vez menos o que ocorria. – Está me assustando, Justine!

         Você ouviu bem. E se eu lhe revelasse que sou a responsável por todas as mortes, que detenho o poder de Kira?

Poderia ser verdade? Paule continuava achando impossível, algo inconcebível, porém existiam sim evidências que colaboravam para essa insana conclusão. Justine sempre apoiara incondicionalmente as ações de Kira, e compartilhava com ele uma visão de justiça deveras similar. Além disso, a amiga tivera os pais assassinados de forma brutal quando tinha apenas três anos de idade, fato traumático que justificaria muito bem seu ímpeto em ver mortos quaisquer tipos de bandidos. Para completar, a neta de François era inteligente e perspicaz o suficiente para ter conseguido esconder um segredo assim até aquele momento, e o mistério envolvendo seus passos no dia anterior apenas contribuía para as suspeitas sobre sua pessoa. Delacroix ainda se recusava a crer, porém havia sim chances de sua fiel colega ser uma serial killer mundialmente procurada.

         Se isso fosse verdade, então qual seria o meio de você provocar tantas mortes? – rebateu Paule, olhos quase liberando lágrimas. – Existe arma ou método tão poderoso?

         Na realidade existe sim, minha cara...

Justine então caminhou até o canto do quarto no qual depositara seu material de estudo, notando no caminho um ligeiro sorriso no rosto de Masuku, o Shinigami estando ainda imóvel sobre a cadeira em frente à escrivaninha. A loira apanhou seu livro de Direito Penal, a capa levemente amassada, carregando-o em seguida até sua convidada. Esta, atônita, observou Clare estender o volume – o qual parecia mais fino do que quando o vira algum tempo antes – em sua direção, ordenando num tom venenoso:

         Toque.

Paule naturalmente hesitou. Medo e preocupação a dominavam. Não fazia idéia das conseqüências que aquele ato poderia ter. Justine insistiu, ainda mais séria e ríspida:

         Toque o livro.

Quase que movida por um impulso natural de se livrar logo daquele pesadelo, a morena esticou o braço direito e tateou a capa e o miolo do exemplar com a ponta dos dedos...

 

Aaaaaahhhhhh!!!

 

Logo em seguida saltando para trás, indo cair deitada de costas para o assoalho, e instintivamente arrastando o corpo na direção da porta, com o intuito de fugir. Diante de si, deparara-se de repente com uma horripilante figura alada, distorcida, infame, monstruosa. Masuku, com todos os bizarros detalhes de sua aparência, fazia-se visível a Delacroix. Ele nada fez a não ser rir.

         O que é essa coisa? – inquiriu Paule, esbaforida, olhos carregados de terror.

         Agora você acredita? – Justine, de pé, respondeu com outra pergunta.

E um macabro silêncio, unido a uma completa imobilidade, passaram a dominar o recinto por vários instantes.

 

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Death Note – Histórico:

 

Raito procura dissipar de vez as suspeitas a respeito de sua pessoa criando um conjunto de regras falsas para o Death Note, de modo que as mesmas tornem improvável seu uso anterior do caderno. Nesse ínterim, Misa recupera o caderno que fora enterrado e com ele suas memórias relativas a Kira.

 

“L”, porém, deseja testar as regras adicionais de Yagami para comprovar se são mesmo verdadeiras. Com isso, o plano de Kira volta a ser ameaçado, e tanto Raito quanto Misa correm o risco de serem pegos. Remu, que jurara proteger Amane a qualquer custo, vê-se então na obrigação de assassinar “L”, mesmo isso resultando em sua própria aniquilação. É dessa forma que Kira consegue eliminar tanto o detetive quanto o incômodo Shinigami, nada mais aparentemente obstruindo seu caminho rumo ao triunfo absoluto.

 

Raito, no entanto, não contava com o legado de “L”: Near e Mello.

 

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Paule levou vários instantes até conseguir voltar a articular palavras. Agora tremia como nunca antes em sua vida, sua pele estando coberta de suor e seus membros começando a ficar dormentes, assim como seu rosto. Estava à beira de um colapso nervoso. Teve de somar muita força de vontade para conseguir se dirigir novamente a Justine e à estranha criatura em sua frente:

         O que é essa coisa?

         Ele é um Shinigami, um deus da morte – explicou Clare como se fosse algo extremamente natural. – Foi através dele que adquiri o poder de Kira.

         Então é isso? Você tem exercido o papel de juiz de todos no mundo já há anos, e agora resolveu revelar isso a mim?

         Não cumpro minha missão há tanto tempo assim, Paule. Antes existia um outro Kira, no Japão. Mas ele foi suprimido pelas forças inimigas da justiça. Foi então que Masuku, este Shinigami, concedeu-me seu poder de eliminar humanos para que eu desse continuidade ao trabalho de Kira. Venho desempenhando essa função há semanas, não há anos.

Delacroix tinha medo de fazer mais indagações, principalmente devido ao sinistro brilho vermelho predominante tanto nos olhos do deus da morte quanto nos de Justine, a luz rubra sendo ressaltada pelo pôr-do-sol em andamento. Sentiu vontade de levantar-se do chão e fugir dali o mais rápido possível, deixando toda aquela loucura para trás com o intuito de preservar sua própria vida. Suas pernas, entretanto, não a obedeciam, tamanho era o temor que a dominara. Foi quando, numa atitude totalmente inesperada, Clare venceu os poucos passos de distância que a separavam da amiga... oferecendo-lhe uma das mãos para ajudá-la a se erguer.

A morena tornou a encarar a loira. Esta mantinha o semblante sério, seus lábios fixos num meio-sorriso denotando uma mistura de sobriedade e devaneio. A aura cor de sangue nas pupilas só se intensificava, enchendo o ambiente de um ar demoníaco. E, sem outra opção, Paule levantou seu braço direito... sendo puxada para cima pela outra moça.

Novamente de pé, Delacroix sentiu que não conseguiria manter-se naquela posição por muito tempo, devido ao nervosismo. Preferiu voltar a sentar-se em cima da cama, trôpega. Não sabia para onde olhar, pois tudo que ali via fazia seu coração pulsar pesadamente, desesperado. Manteve então a cabeça baixa, ouvindo Justine falar:

         Não preciso ter o dom de ler seus pensamentos para saber que deseja conhecer o método usado por Kira para matar criminosos...

         Tamanha covardia me assusta... – Paule murmurou, olhar preso ao chão. – As autoridades sempre se questionaram a respeito de Kira cometer seus assassinatos usando apenas a força da mente, ou se descobriu algum arrojado método científico... Mas agora creio que, independente do que eu diga, você irá me revelar o que é, não é mesmo?

Como resposta, Clare apenas voltou a estender o livro de Direito Penal, que ainda segurava, para a colega. Ela desta vez tomou o volume em suas mãos, abrindo-o com grande receio. E deparou-se, logo nas primeiras páginas, com uma série de nomes seguidos de anotações de diversa ordem. Identificou a maior parte delas como descrições de tempo e... de morte. Todas as pessoas ali listadas já haviam perecido, e lembrava-se claramente do óbito de muitas delas ter sido bastante divulgado pela mídia. Eliah Bantu, Ângelo Bertolucci, Rodolfo Vasquez... Porém sua atenção logo se centrou em um indivíduo em particular. Jean Moreau. O homem que assaltara o mercadinho no bairro e que acabara atropelado enquanto fugia. Então fora Justine a responsável por sua morte!

         U-um caderno que m-mata pessoas? – gaguejou Paule.

         Sim – assentiu Clare. – Death Note.

Delacroix não sabia como reagir. Tudo aquilo era julgado por si impossível de existir até minutos antes, e agora surgia palpável e ameaçador bem diante de seus olhos! Tinha de ser mesmo verdade. Infelizmente. Sua amiga era uma assassina, uma psicopata que aniquilava centenas de pessoas por semana com requintes de crueldade. Kira. Nas páginas com nomes, lia os detalhes de cada crime... Estrangulamento, queda fatal, esmagamento, carbonização, perda de órgãos vitais... Justine parecia ter se dedicado tanto àquilo... que Paule teve a sincera impressão de que ela tinha paixão por tirar vidas com tamanha variedade nos meios!

         Por que você está me contando tudo isso? – inquiriu a morena, chorosa.

         O medo afetou sua memória? Hoje mesmo você me disse que estava preocupada comigo, que precisávamos conversar, que queria me ajudar... Pois aqui estamos. Eu me abri com você. E agora desejo algo em troca!

Paule estremeceu. Masuku, que acompanhava calado o diálogo, apenas se limitou a sorrir. A órfã prosseguiu falando:

         O cerco contra mim está se fechando. Ontem tive de arriscar minha própria vida para eliminar um asqueroso meliante. O Maníaco do Louvre. Tive sucesso em minha tarefa, porém deixei rastros, pistas que podem em última instância acabar levando a mim. Já se anuncia que Kira está na França, por isso não tenho muito tempo. É necessário que eu elimine todas as suspeitas capazes de me incriminar.

         Então acredito que você queira meu auxílio para isso, correto?

         Correto, Paule. Por isso estou compartilhando meu segredo com você. Com a ajuda de mais uma pessoa, poderei apagar meus rastros mais facilmente. Haverá alguém para confirmar minhas versões dos fatos. Com sua contribuição, voltarei a ser apenas a aplicada estudante de Direito da Sorbonne...

         É isso? – sobressaltou-se Delacroix de repente, ficando de pé e quase gritando. – Você quer que eu me torne sua cúmplice? Que eu confirme suas mentiras e acoberte seus crimes?

         Paule, eu...

         Madame Guilhotina!

Justine franziu as sobrancelhas, certa de que não ouvira bem. O Shinigami riu, incapaz de resistir. Parecia que a visitante subitamente desenvolvera um forte ímpeto de resistência! A loira indagou, punhos fechados devido à irritação:

         O que disse?

         Madame Guilhotina! – repetiu Delacroix em alto e bom som. – Você é a Madame Guilhotina, Justine! Não passa de uma assassina fria e impiedosa, uma louca que mata pessoas por capricho, achando que está tornando o mundo um lugar melhor! Não é melhor que um deus da morte!

         Paule, tem noção do que fala? Eu aniquilo os vermes que deterioram nossa sociedade dia e noite, os seres asquerosos que arruínam a vida dos inocentes sem pensar duas vezes! Um deles é o Maníaco do Louvre. Você sabe quem ele era, Paule? Pasquale, nosso professor na universidade! Aos olhos das pessoas, um acadêmico de renome comprometido com os mais belos ideais, mas, na calada da noite, apenas um velho sensual e doentio que participa de seitas satanistas e trucida garotas virgens! Esse é o tipo de indivíduo que encontra seu fim através de minhas ações!

         Pare, pare... – pediu Paule, tapando os ouvidos com as mãos. – Você está mentindo!

         Mentindo? Não foi você quem arriscou a própria vida para pegar aquele maldito, caindo nas mãos de ocultistas e quase sendo oferecida em sacrifício! Eu represento o punho de Deus neste planeta, para fazer cumprir seus julgamentos!

         Você não foi a única... Ao longo dos séculos muitos já torturaram e queimaram pessoas para fazer valer a justiça de seu deus, Justine!

Foi a gota d’água para a neta de François. Foi sua vez de explodir com a amiga que esperara poder ter se tornado sua aliada:

         Se coloca as coisas assim, então não haverá outra opção... Ou você colabora comigo... Ou será morta, Paule Delacroix.

A morena respirou fundo e, muito mais lívida e corajosa do que antes, fixou seus olhos nos de Clare, afirmando:

         Eu já esperava por isto. Não entendo como você tomou esse caminho, Justine. Seu avô... Ele ficará tão decepcionado quando descobrir. Talvez nem resista ao choque. Ainda mais por eu não duvidar que você também o mate caso ele ameace seu estimado plano...

         Cale a boca, Paule! Você não compreende nada!

         Talvez eu não compreenda mesmo. Tampouco entendo o funcionamento desse seu caderno da morte, desconheço suas regras. Mesmo assim, é melhor que então você se apresse em usá-lo para me assassinar, pois, saindo daqui, vou contar tudo que sei ao primeiro policial que eu encontrar na rua!

         Faça como quiser.

Paule soltou o caderno, logo depois deixando o quarto correndo, pisando forte, soluçando e engolindo lágrimas. Desceu as escadas rapidamente, fitando apenas a porta de saída logo abaixo. François não a viu sair, pois já estava na cozinha preparando o jantar. Também ignorou o som dos passos e da maçaneta sendo aberta devido ao CD de Luciano Pavarotti que ouvia num modesto aparelho de som. Adorava ópera. A letra da música tocada naquele momento, Volare, contrastava, e de certa forma também combinava, tristemente com o que estava prestes a acontecer:

 

Penso que um sonho assim nunca mais volte

Eu pintei as mãos e o rosto de azul

Então de repente eu estava sendo raptado pelo vento

E comecei a voar pelo céu infinito

 

No quarto, Justine apanhou o Death Note caído no assoalho e tomou o lugar de Masuku na cadeira diante da escrivaninha, abrindo-o sobre ela. Folheou-o até encontrar uma página em branco. De um de seus bolsos, tomou a caneta-tinteiro. E, sem um pingo de remorso ou piedade, sem considerar nada referente à sua amizade com Paule até então, começou a escrever, em letras grandes, vistosas, como se desejasse que alguém, caso no futuro viesse a examinar o caderno, constatasse que aquela morte fora por ela preparada com gosto. Algo merecido.

 

Voar, oh, oh!

Cantar, oh, oh, oh, oh!

Num azul, pintado de azul

Feliz de estar lá

E voei, voei mais feliz do que o sol e ainda mais

Enquanto o mundo desapareceu lentamente até lá

Uma música doce tocava somente para mim

 

Do lado de fora do sobrado, o céu escurecia, as lâmpadas dos postes já tendo sido acesas. Poucas pessoas transitavam pela rua naquele momento. Delacroix olhou aturdida ao redor. Tinha de encontrar um homem da lei, alguém para quem pudesse denunciar a vil Justine e todos os seus crimes! Um carro passou em baixa velocidade, depois um ônibus... E a jovem lembrou-se mais uma vez de Jean Moreau. Clare não podia permanecer livre para fazer mais vítimas! Para seu alívio, logo encontrou um policial, a poucos metros de distância, comendo sossegado um cachorro-quente junto a uma barraquinha numa esquina. Paule pôs-se a correr até ele, sabendo que aqueles seriam seus últimos instantes de vida. Ao menos faria algo bom deles.

 

Voar, oh, oh!

Cantar, oh, oh, oh, oh!

Num azul, pintado de azul

Feliz de estar lá

Num azul, pintado de azul

Feliz de estar lá

 

No alto de seu quarto, Death Note aberto sobre o móvel, Justine seguia escrevendo...

 

Na rua, a decidida jovem gritou para o oficial:

         Senhor, me escute! Eu sei quem é Kira!

Assustado pelo teor da exclamação, o policial voltou-se de imediato para a garota, sua boca suja de molho...

E então Paule não pôde falar mais nada.

A dor em sua cabeça foi súbita e avassaladora, como se mil agulhas perfurassem seu cérebro por dentro. Não sentia mais seu corpo, não podia mais executar movimentos, abrir os olhos, nem ao menos piscar... Não conseguiu sequer gemer por conta de tão potente sofrimento. Com os olhos bem abertos, mirando o céu, caiu de joelhos, incapaz de mais nada fazer... E uma lágrima solitária escorreu por sua face dormente, indo encontrar seu fim no concreto da calçada...

Emitindo sons guturais e tendo violentos espasmos, Paule Delacroix faleceu nos braços do policial, que agora clamava desesperado por ajuda. Curiosos logo se aglomeraram, formando uma roda em torno do cadáver da estudante. Já era tarde demais...

 

Uma música doce tocava somente para mim

 

Da janela de seu quarto, Justine observava tudo que acontecia no exterior com um sorriso triunfante nos lábios. Seu segredo estava seguro. Em seguida olhou de relance para o caderno que mantinha aberto num de seus braços, o recém-escrito texto tomando quase toda uma página:

 

Paule Delacroix. Devido a momentos de alto stress e nervosismo, sofre um letal acidente vascular-cerebral.

 

Algo que sem dúvidas seria confirmado pela autópsia do corpo. Tornaria-se impossível não afirmar ter sido uma morte natural.

Rindo, Clare então se recolheu para o interior de sua fortaleza... Fechando as cortinas. A cena na rua já começava a ficar deprimente...

 

- - - - - - - -

 

O inconformismo me domina

A indignação me impele

Este mundo está caótico

O mal domina livremente

 

Liguei hoje a TV

Mais um maníaco solto

Pena das vítimas que fará

Raiva do sistema que o favoreceu

 

Madame Guilhotina, faça justiça!

Reestruture este mundo de ponta-cabeça

Puna quem mereça, Madame Guilhotina

Sua justa lâmina está sedenta!

 

Madame Guilhotina, você me ouve?

Meu clamor impele seu mecanismo

Puna a todos, Madame Guilhotina!

O mundo lhe está pedindo socorro

 

- - - - - - - -

 

Prévia:

 

Ontem ocorreu algo muito interessante em Montparnasse... Creio que deveríamos investigar...

 

Hum... Parece que conforme nos aprofundamos nos acontecimentos recentes desse bairro, mais as coisas se encaixam...

 

Kira pode ser uma dessas três pessoas!

 

Próximo capítulo: Brecha


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