Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 14
Capítulo XIV: Desconfiança




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Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

Crise no sistema democrático

Onde está a justiça?

 

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

Assassinos à solta depois de julgados

Quem punirá seus crimes?

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

Porque em terra de justiça cega

Quem tem um caderno é rei!

 

Hey, hey, francesinha

Seja o juiz, seja o Kira!

 

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Capítulo XIV

 

“Desconfiança”

 

A tempestade se abatia sobre Paris, incessante.

Pelas ruas quase vazias e repletas de poças d’água, uma figura feminina, encolhida, corria o mais rápido que podia pelas calçadas, desafiando a força da natureza. Encharcada pela chuva e já espirrando devido à fragilidade de seu organismo diante dos anteriores maus-tratos e agora do clima adverso, Justine atravessava a cidade rumando de volta a Montparnasse. Procurava não pensar em nada durante o trajeto, nem nos cadáveres dos membros do culto ou nas impressões digitais que deixara no cativeiro – as quais poderiam acabar comprometendo-a – e tampouco na desculpa que teria de fornecer ao avô para explicar sua prolongada ausência. Seu único objetivo então era regressar ao lar sem demais contratempos. Sua vida já passara por imprevistos demais nas últimas horas.

 

No vestíbulo do sobrado, François, mantendo a porta semi-aberta e já acostumado ao ruído interminável causado pela chuva que caía – apesar do mesmo não conseguir tranqüilizá-lo – andava de um lado para o outro ainda aguardando o retorno de sua neta. Cada vez mais aflito, pensava em contatar as autoridades, imaginando que a única pessoa que lhe restara, sua doce e bela Justine, estivesse em apuros. Cabisbaixo, procurava afastar os pensamentos acerca do pior, apesar de ser difícil tarefa. Já havia perdido sua amada filha de forma trágica, mas conseguira superar tal angústia quando acreditara não possuir mais forças para continuar. Agora o espectro da morte tornava a rondar sua existência, ameaçando privar-lhe daquela que era sua única fonte de alegria, a jóia radiante que dava sentido à sua conturbada vida. Caso algo grave acontecesse a ela, não sabia se conseguiria superar. Certamente seria também seu fim...

Até que a porta de entrada foi empurrada de súbito, com força, chegando a bater na parede. O inesperado baque perturbou o coração do idoso, que, voltando-se para o som, demorou alguns instantes até perceber exatamente o que acontecia. Eis que havia surgido da rua um vulto desalinhado, os cabelos, roupas e bolsa ensopados. Adentrou a casa a passos trôpegos, demonstrando imensos cansaço e fraqueza. Soluçava. Sentindo uma mistura de alívio e desespero, François apressou-se em amparar a recém-chegada, evitando que ela desabasse de exaustão ali mesmo sobre o assoalho. Justine, pobre Justine! Abraçou-a com intensidade, não se importando em molhar suas vestes. Além da água da chuva, as lágrimas da jovem também passaram a banhar o preocupado avô.

         C-chéri... – ele balbuciou, quase sem palavras. – O que houve com você? Eu até já ia chamar a polícia para procurá-la!

         Um assalto, vovô... – ela revelou, esforçando-se para falar em meio ao choro. – Um bandido me abordou... e tentou me violentar! Eu corri, corri como nunca... Continuei correndo sem rumo! Lembrei-me de papai e mamãe, vovô... Não queria morrer também!

         Acalme-se, querida... Agora está tudo bem. Tudo bem.

O senhor passou a massagear as costas da garota com as mãos, como sempre fizera para acalmá-la, desde quando era pequena. Clare, por sua vez, encostou sua cabeça junto à dele, ainda muito nervosa. Aos poucos seu corpo deixou de tremer, parecendo relaxar devido ao carinho de François... E, sem que este percebesse, a neta, tendo o queixo apoiado em seu ombro esquerdo enquanto ainda forjava alguns soluços, abriu um imenso sorriso de satisfação.

 

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Ele observava os corpos sendo fechados dentro dos sacos pretos. Cena mórbida, principalmente considerando-se o morto com a cabeça tingida de sangue, porém já estava acostumado. Doze anos trabalhando como inspetor da polícia de Paris habituava qualquer homem às mais fortes visões.

Legistas e outros peritos averiguavam o local. Tudo estava coberto de impressões digitais – os membros do provável culto não haviam tido a preocupação de resguardar as mãos – sem contar a cadeira junto à qual se via fragmentos de cordas, levando a crer que alguém estivera amarrado a ela. Seria difícil reconstituir o que acontecera ali, porém Junot confiava na capacidade de seus colegas. Chegariam eles à mesma conclusão que despontava em sua mente? A teoria tomava forma cada vez mais e, para dar mais crédito a ela, fez questão de perguntar a um dos especialistas que por ali transitavam, procurando confirmar uma informação cogitada poucos minutos antes:

         Então os três morreram de infarto?

         Tudo leva a crer que sim, inspetor – respondeu o rapaz em questão, olhos se alternando entre os cadáveres empacotados e as várias evidências pela sala apontando atos criminosos. – Todos ao mesmo tempo, eu suponho. Eles participavam de algum tipo de seita demoníaca. Averiguaremos o sangue dentro dos jarros na lareira através de exames de DNA para descobrir a quem pertence. Tenho o forte palpite de que esses desgraçados são os responsáveis pelas mortes próximas ao Louvre.

         Interessante... Muito interessante!

Em seguida Junot apanhou uma embalagem de chiclete de um de seus bolsos, retirou de dentro dela a goma e atirou-a dentro da boca. Desde que decidira parar de fumar devido à insistência da irmã, o hábito de mascar doces como aquele vinha substituindo bem os cigarros. O problema é que acabava continuando a gastar boa parte de seu dinheiro com aquilo...

Ainda chovia forte. Deu uma última olhada ao redor, sua visão detendo-se por alguns segundos nos equipamentos de química estilhaçados, e por fim levou a mão direita ao celular, que repousava num outro bolso de sua calça. Pegou-o, abriu-o e, consultando a lista de contatos, selecionou aquele para o qual acreditou finalmente poder ligar. Tinha certo receio em fazê-lo, porém todas as circunstâncias colaboravam com a suspeita de que aquele era o melhor momento.

         Alô? – uma voz disforme, inidentificável, manifestou-se do outro lado da comunicação.

         Alô, “R”? – sorriu o inspetor, convicto. – Estou diante da cena de um suposto crime que pode acabar lhe interessando.

Houve silêncio por parte da misteriosa pessoa contatada por Junot. Encontrava-se disposta a ouvir com detalhes o que ele tinha a dizer.

 

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Justine apenas moveu-se da poltrona na sala de estar minutos depois de ter se certificado que o avô subira para dormir. Após a chegada da jovem, haviam permanecido horas conversando, ele tentando ao máximo tranqüilizá-la e livrá-la do suposto impacto causado pela tentativa de assalto. Fora custoso a Clare encenar um teatro como aquele com o cansaço que sentia, sendo que agora faltava pouco para o nascer do sol e ela ainda pretendia ir à aula aquele dia para não levantar mais suspeitas. Além disso, tivera trabalho em convencer François a não registrar ocorrência quanto ao que ocorrera, alegando tanto que o bandido estava mascarado – assim inidentificável – e que tinha medo de represálias caso assim procedesse. Felizmente parecera ter assim persuadido-o a manter as coisas como estavam, e ela sentiu-se então pronta para tratar de seus demais assuntos pendentes...

A firmeza contida em seus passos ao vencer os degraus da escada rumo ao andar superior do sobrado demonstravam a gravidade da conversa que Justine esperava ter dentro de poucos instantes. Tinha contas a acertar com um certo deus da morte...

Ela girou a maçaneta impacientemente, empurrando a porta com uma das mãos assim que liberada. Não viu ninguém no interior do recinto num primeiro momento, apesar da TV e do computador se conservarem ligados. Estaria Masuku fugindo da briga? Talvez fosse possível. Caminhando até sua cama suspirando, apanhou de imediato os livros da universidade que deixara sobre ela. Depois de vistoriá-los com pressa e certa angústia, finalmente se acalmou ao abrir o volume de Direito Penal e deparar-se em seu miolo com inúmeras folhas de caderno em branco. O verdadeiro Death Note estava ali e, como previra, as capas haviam sido realmente trocadas.

Apesar de revoltada com a ação executada pelo Shinigami sem tê-la consultado previamente – a qual, apesar de ter preservado seu segredo, botara sua vida em imenso risco – Clare decidiu que manteria o artefato com o revestimento falso. Seria um ótimo disfarce, e assim ela poderia continuar carregando-o consigo aonde quer que fosse sem muitas preocupações. Levantou-se, colocou o Death Note em cima da escrivaninha e sentou-se na cadeira diante da mesma. Alongou-se, sonolenta, ignorando o arquivo de texto com os registros de criminosos por enquanto. Apanhando o controle remoto do televisor, desligou-o sem dar atenção ao que era transmitido. Bufou. Não podia esperar mais.

         Masuku! – ela chamou, certa de que o suposto aliado se encontrava em algum canto daquele quarto.

Nenhuma resposta. Justine voltou a suspirar, cada vez mais enfadada. Cruzou os braços e impeliu as botas, fazendo a cadeira girar sobre o eixo junto com seu corpo. Após três ou quatro voltas, deteve o móvel segurando sua base com as mãos, exclamando novamente:

         Masuku!

E eis que as grandes asas da criatura se moveram perto da janela do cômodo. Ela revelou-se com certa imponência, porém sem pronunciar qualquer palavra, aguardando que a estudante iniciasse o diálogo, por mais ríspido que fosse. Foi tentando ponderar sua raiva, tarefa que lhe era bastante difícil, que indagou ao deus da morte:

         O que tinha na cabeça ao agir como agiu sem me consultar?

O Shinigami não respondeu, limitando-se a caminhar calado e um tanto desengonçado pelo quarto na direção da cama, sobre a qual se sentou. Justine insistiu, sobrancelhas franzidas:

         Responda-me, Masuku! Não acha que me deve alguns esclarecimentos? Você trocou a capa do Death Note sem que eu soubesse, isso poderia ter custado minha vida!

         Mas não custou, custou? – o ser alado retrucou, cínico. – Você estava correndo risco demais carregando o caderno para cima e para baixo sem tomar qualquer medida para ao menos disfarçá-lo. Meu truque evitou que seus inimigos descobrissem a verdade por trás de Kira. Além disso, incluí folhas do verdadeiro caderno no interior do livro, como bem viu, para que você as utilizasse. Mesmo que não admita, esteve mais segura do meu modo do que do seu, Justine.

         Não podia ter feito isso sem ter me informado! – Clare irritava-se cada vez mais, cerrando os punhos e falando quase aos gritos. – Somos aliados nesta guerra, e aliados não fazem as coisas às escondidas um do outro! Afinal, de que lado você está, Masuku?

         Estou do seu lado, garota! – o Shinigami de súbito se ergueu da cama, encarando a jovem com o brilho vermelho em seus olhos mais intenso do que nunca, fornecendo aspecto ainda mais aterrador à escuridão circundante. – Eu luto pela verdadeira justiça assim como você! Desejo ver aqueles que semeiam o mal neste mundo apodrecendo embaixo da terra tanto quanto você! Assim, se eu agir sem o seu consentimento, por saber que sua teimosia acabaria por inutilizar meus avisos, saiba que é somente para seu bem e o sucesso de nossa causa! Sempre!

Justine se aquietou diante da exaltada resposta de Masuku, o qual, pela primeira vez em sua presença, demonstrava ter perdido a paciência. Ela permaneceu fitando as brilhantes órbitas rubras no rosto do deus da morte durante alguns instantes, até finalmente tornar a se manifestar, um pouco temerosa:

         Pode até ter agido mesmo com a melhor das intenções... Mas não confio mais em você como antes... apesar de ter me salvado da maldita seita ao me libertar das amarras!

         Amarras? – riu ele, irônico. – Mas eu só a ajudei com a troca de capas. Não fiz nada além disso!

         Então... quem me soltou?

Súbito, um diferente bater de asas, que não pertencia a Masuku, invadiu o interior do recinto. E, através da janela aberta, surgiu de forma igualmente repentina uma figura semelhante ao Shinigami, tão aterradora quanto este em aspecto, porém possuindo suas diferenças. A cabeça ligeiramente oval e pálida como giz era dotada de contornos um tanto delicados, remetendo a uma mulher ou no mínimo um homem de ares femininos. Os cabelos eram curtos e cinzentos, ligeiramente arrepiados, mas que mesmo assim compunham um todo que parecia mais alinhado do que muitos penteados finos. O corpo seminu, coberto por resquícios de uma roupa que parecia ter sido queimada, era magro, com poucas curvas na região do abdômen e quadris, pele tão branca quanto a do rosto. Os membros, ligeiramente proporcionais, as unhas das mãos e pés na cor negra. Já as asas, um pouco menores que a do outro deus da morte – pois ficava evidente que a criatura recém-chegada também era um – apresentavam-se pontudas e finas, revestidas por algo como plumas alvas e suas extremidades possuindo protuberâncias semelhantes a espinhos. Foi com uma voz em tom de superioridade que o sinistro personagem afirmou, pousando em cima do assoalho do quarto:

         Fui eu!

Clare ficou temporariamente sem palavras. Um novo Shinigami? Seria conhecido de Masuku? Em caso afirmativo, por que este nunca o mencionara a ela? Estariam os dois conspirando contra Justine? Perguntas e mais perguntas explodiam na mente da humana, a pólvora da incerteza tenso sido incendiada pelo fogo da surpresa.

         Eu a salvei das cordas no esconderijo dos adoradores de Jealous – tornou a falar o desconhecido. – Meu nome é Nise.

         M-mas... eu só poderia vê-lo se tocasse em seu Death Note, não? – desejou confirmar a moça, confusa.

         E você tocou – sorriu Masuku. – Na verdade, você acabou sentando nele.

A loira então se levantou da cadeira, constatando que, sem perceber, acabara acomodando-se bem em cima de um outro caderno negro que ali fora de alguma forma deixado. E ela concluiu que ele havia sido na realidade “plantado” quando o Shinigami de terno se aproximou e, apanhando-o, colocou-o de volta no suporte feito de elásticos em sua cintura, o local onde estivera antes.

         Acho que ele acabou caindo quando sentei aí... – afirmou o primeiro deus da morte, rindo.

Justine tinha certeza de que Masuku havia planejado aquele encontro com antecedência e deixara o segundo Death Note na cadeira de propósito, sabendo que ela de qualquer modo acabaria tocando-o, porém manteve-se calada a respeito. Se era intenção dele que a jovem tivesse contato com o misterioso Nise, então ela poderia aproveitar tranqüilamente a oportunidade para descobrir mais a respeito daqueles intrigantes seres. Voltou a alojar-se no assento, endireitou-se nele e, séria, perguntou ao segundo Shinigami:

         Então foi você quem entregou seu caderno a Masuku para que ele pudesse ceder o dele a mim, correto?

         Sim – Nise replicou secamente.

         E por conta disso fica agora me observando e seguindo... – a outra criatura disse com aparente incômodo. – É como se quisesse supervisionar que uso farei dele!

         Você sabe bem que não é apenas isso! – as palavras do recém-chegado foram um tanto duras.

Em seguida este se voltou para Clare. Ciente do clima de desconfiança e desconforto que aos poucos dominava o ambiente, tentou lançar sobre a universitária o olhar mais simpático possível enquanto se pronunciava:

         Deve estar cheia de indagações e receios neste momento, entretanto não há motivos para tal. Com o intuito de que tenha ciência disso e se livre do medo, estou aqui para esclarecer suas dúvidas. Queremos ajudá-la em sua missão, Justine. Basta que permita isso.

A francesa baixou os olhos. Era uma proposta no mínimo interessante e também inesperada. Tiraria o máximo de proveito dela.

 

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Death Note – Histórico:

 

 A pessoa por trás da alcunha de “Segundo Kira” é na verdade a modelo japonesa Misa Amane, que recebe o Death Note pertencente a um Shinigami que morrera para salvá-la e passa a ser protegida por um outro deus da morte, de nome Remu.

 

Após sucessivas trocas de mensagens pela TV com a equipe de investigações, que se passa pelo verdadeiro Kira, Misa, graças ao poder do “Olho de Shinigami” obtido em troca de metade de sua expectativa de vida restante, descobre que Raito Yagami é Kira, aproximando-se dele.

 

O rapaz, ao mesmo tempo em que tem seu comportamento e atitudes observados atentamente por “L”, procura usar Misa para seus próprios interesses, pedindo que ela elimine o detetive. No entanto, antes que a dupla possa agir, Amane é presa como suspeita de ser o Segundo Kira, e o cerco a Raito se fecha.

 

Praticamente sem opções para alegar inocência, Kira é obrigado então a tomar uma medida drástica com o intuito de ganhar novo álibi...

 

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O capitão Matsuda acordou com o incômodo som do despertador digital. Desligou o pequeno aparelho pronunciando resmungos incompreensíveis, sonolento, e já ia se virar para o outro lado da cama com o propósito de dar “bom dia” à esposa Sayu, quando se lembrou de que não dormira em casa, e sim num dos dormitórios da estância que servia de central de operações ao Caso Kira. Dividia o cômodo com Hideo Hoshi, o qual havia se levantado poucos minutos antes e já se trocava.

Algumas horas antes, “R” enviara uma mensagem de texto aos celulares de todos do time de investigações convocando-os para uma reunião emergencial que teria início logo que o sol nascesse. Como os primeiros raios do astro-rei já iluminavam as encostas geladas do Monte Fuji, a mesma então teria início em breve. Apesar de ter dormido pouco e ainda sentir-se cansado, Touta resolveu se arrumar o mais rápido possível e partir para o encontro do grupo.

         Será que “R” nos dará algum anúncio importante? – Hideo perguntou ao superior enquanto colocava uma camisa.

         Para ter nos acordado tão cedo depois de um dia estafante de trabalho, espero no mínimo que sim... – Matsuda murmurou em resposta, esfregando o rosto.

 

Pouco depois, a dupla de japoneses se dirigia até a construção principal do local, outros integrantes da equipe também a adentrando naquele momento, semblantes igualmente remetendo a sono. Ao ganharem o primeiro corredor, depois de retirarem os sapatos, depararam-se com a senhora Akaike, que, sorridente, retornava da sala de investigações com uma bandeja contendo algumas xícaras de café. Conforme passavam por ela, os recém-chegados as apanharam e, sorvendo goles da bebida quente – que logrou animá-los um pouco – adentraram o recinto onde vários dos colegas já estavam sentados.

Os ainda de pé se acomodaram atrás de suas respectivas mesas, vários bocejos sendo ouvidos numa seqüência que parecia interminável. Ela encerrou-se, no entanto, quando instantes depois o agente Adams ganhou de súbito o lugar, trazendo como sempre a maleta-notebook numa das mãos. Depositou-a em cima do móvel que antes servia de local de trabalho a Near, abrindo-a diante dos policiais ao mesmo tempo em que um profundo silêncio dominava o ambiente, todas as atenções se focando na tela do computador. Este, após ligado, passou quase de imediato a retratar a letra “R” estilizada em preto num fundo branco, a voz distorcida do misterioso detetive fazendo-se ouvir alta o suficiente por todos:

         Bom dia.

Ao contrário do que seria convencional, ninguém retribuiu a saudação. O cansaço privava-os da simpatia. Ignorando a aparente falta de educação, o líder das investigações prosseguiu:

         Vocês devem estar se perguntando a respeito do motivo desta convocação tão abrupta, a julgar por suas faces exaustas e um tanto irritadas. Durante esta madrugada cheguei a uma importante conclusão sobre o caso, e creio que preciso informá-la a todos o mais breve possível.

“R” efetuou uma pausa, os instantes seguintes, ausentes de som, contribuindo para o ansioso clima de suspense que se instaurava nas mentes e corações dos membros da equipe. E foi com rostos atônitos que estes ouviram a inesperada afirmação, a qual bastou para despertá-los de vez:

         Kira não está no Japão.

Foram mesmo pegos de surpresa, apesar da análise de possíveis detentores do Death Note no arquipélago nipônico não ter gerado quaisquer frutos desde que fora iniciada. Alguns policiais baixaram os olhos, como que se sentindo superados pelo intelecto de “R”. Outros continuaram fitando o laptop, boquiabertos ou simplesmente sérios. Já os demais pareciam não concordar com a hipótese, entre eles Dennegan, que socou sua mesa de forma violenta. O detetive passou a fornecer as devidas explicações:

         É preciso que saibam que não são meus únicos aliados nesta empreitada. Possuo contatos em praticamente todas as forças policiais do planeta. Esses oficiais colaboram comigo devido a generosos acréscimos em seus saldos bancários mensais ou pela pura e simples sede de justiça. O inspetor Charles Junot, da polícia de Paris, enquadra-se em ambas as situações. Horas atrás, ele me telefonou para contar sobre uma pitoresca ocorrência nos subúrbios da cidade. Três membros de uma seita ocultista, a qual, presumo, adora Kira, foram encontrados mortos dentro de uma casa. Todos eles, entre os quais um acadêmico famoso e seu filho, além de suspeitos de cometerem crimes bárbaros nas imediações do Museu do Louvre, estuprando e assassinando moças de faixa etária entre vinte e vinte e cinco anos, padeceram quase os três ao mesmo tempo de parada cardíaca e não tiveram seus nomes e rostos divulgados em lugar algum como meliantes. Sabemos o que isso pode significar, não?

Todos se entreolharam, expressões faciais unindo confusão e entendimento. Coube a Boruanda apresentar um ponto contrário à teoria de “R”:

         Devemos levar em conta, porém, que em cultos desse tipo é comum o uso de drogas e substâncias alucinógenas que podem levar aqueles que as consomem ao infarto. Não poderíamos estar diante de um caso assim?

         É sim possível, mas não devemos ignorar esse acontecimento – respondeu o detetive. – Pode se tratar da pista que tanto aguardamos. Nada me convence de que Kira não tem relação com o óbito desses três franceses. E creio que o assassino esteve na presença deles quando os executou. Junot me informou que há indícios de que alguém que vinha sendo mantido como prisioneiro pelos ocultistas, provavelmente para posterior estupro e assassinato, fugiu pouco antes ou ao mesmo tempo em que os algozes caíram sem vida. Penso que talvez Kira, como bom justiceiro que acredita ser, pode até ter feito a si mesmo de isca para ser capturado pelos criminosos e então eliminá-los.

         E como as vítimas do grupo foram somente mulheres... – oscilou Krammer.

         É provável que Kira seja uma mulher entre vinte e vinte e cinco anos de idade, francesa, talvez parisiense – “R” completou o raciocínio.

Era incrível. Um mero evento inesperado restringira o escopo de suspeitos de serem Kira de forma quase inacreditável! Aquela parecia mesmo ser uma oportunidade de ouro para que capturassem o serial killer em pouquíssimo tempo. Depois de um período nebuloso das investigações, a luz da verdade finalmente vinha fazer brilhar o caminho para os agentes da justiça, dando-lhes novo e reconfortante incentivo. No entanto, havia aqueles que não concordavam com a repentina conclusão. O primeiro a se manifestar foi Yahudain:

         Não podemos abandonar a hipótese de Kira estar no Japão tão facilmente! Afinal, a morte de Tuomo Sanbashi foi a única que conseguimos definir como tendo sido ocasionada por alguém que estaria aqui! Além disso, considerando-se a teoria de que existe mais de um Kira, um deles ainda pode se encontrar neste país!

         Compartilho da opinião do falecido “L” de que, se existe mais de um Kira, aquele que assassinou Sanbashi serviu apenas de arauto ao principal, e não agirá novamente – posicionou-se “R”. – Além disso, não podemos ter certeza se Sanbashi realmente foi vítima do Death Note ou se simplesmente enfartou devido à sua saúde precária. A pista na França mostra-se bem mais concreta.

         Mas não é só isso! – exclamou Hoshi, levantando-se de sua cadeira. – Aquele tal Shinigami chamado Ryukuu foi visto pelo capitão Matsuda do lado de fora desta casa na noite em que Optimus-san morreu! Ele pode ter alguma relação com Kira, isso se não houver sido ele quem assassinou Optimus!

         Shinigamis podem se deslocar rapidamente de um local para o outro – afirmou o detetive invisível, irredutível. – Se esse Ryukuu possui mesmo parte nisto tudo, ele não precisaria estar necessariamente permanecendo no Japão para voar até aqui e matar “L”, tampouco algum humano que tenha se tornado seu protegido teria de viver aqui para pedir isso. Além do mais, estamos trabalhando com a teoria de que Raito Yagami, o primeiro Kira, ou alguém antes a ele associado, retornou a este mundo como um deus da morte e cedeu um Death Note a outra pessoa para que esta se tornasse o novo Kira. Considerando isso, faria sentido pensar que Raito, ou seja lá quem for, entregaria o caderno a um humano fora do Japão, país no qual anteriormente estivera Kira e onde ocorreram as investigações para capturá-lo, visando confundir as autoridades e ganhar tempo, fazendo com que o novo assassino permanecesse incapaz de ser localizado pelo maior período possível e desse modo conseguisse matar um grande número de criminosos sem ser descoberto, como de fato aconteceu. Mas agora esse Kira parece ter cometido um erro, deixando rastros, e eles apontam para a França.

         Pode ser exatamente ao contrário! – discordou Ackerman. – O Shinigami que veio a este mundo deve ter acreditado que acharíamos óbvio ele ceder o caderno a alguém fora do Japão e por esse motivo entregou-o a alguém justamente aqui, tentando nos enganar! Creio que estávamos na pista certa investigando este país, não deveríamos nos desviar!

         Acreditem, Kira não está aqui. Devemos transferir esta central para a França o quanto antes, ou acabaremos perdendo a chance de capturá-lo.

         Chega! – bradou Dennegan, levantando-se furioso e caminhando na direção do computador, como se pensasse poder intimidar “R” dessa forma. – Você chega do nada, assume o caso sem que possamos questioná-lo, e agora toma uma decisão dessa importância ignorando as vozes discordantes? Nós não confiamos em você, e nem nesse seu plano fadado ao fiasco!

Não houve resposta imediata por parte do líder da equipe. O silêncio voltou a se instalar na sala, os colegas de Mark olhando assustados para ele, o notebook e Adams. Este se manteve quieto e imóvel, sem nem ao menos sofrer alteração em seu semblante. Aqueles que apoiavam a postura de “R”, entre os quais Matsuda, desejaram internamente que o braço-direito do detetive desferisse um soco contra o irritante agente, mas preferiram aguardar a reação do próprio ofendido. Ele finalmente falou, após poucos minutos:

         Muito bem.

Ernest em seguida, num gesto quase robótico, estendeu uma das mãos abertas para Dennegan, como se esperando que ele lhe entregasse algo.

         Devolva seu distintivo falso – cobrou “R”.

Mark então hesitou. Alternou as pupilas trêmulas entre a tela do computador e os impenetráveis óculos escuros de Adams várias vezes. Abriu a boca para retrucar, porém não saiu voz. Depois fitou a compatriota Krammer, que apoiava a decisão de se transferirem para a França, e o rosto duro e sério da policial serviu para que o investigador descontente ficasse ainda mais intimidado. Por fim disse, suando frio:

         E-eu não desejo deixar o time...

         Então terá de concordar com o que eu julgar melhor para o caso – “R” replicou firmemente através do laptop. – Se não confia em mim, não o culpo, já que as circunstâncias desfavorecem uma relação mais próxima entre vocês e eu, mas precisam compreender minha situação, ainda mais com o que vem acontecendo há alguns dias...

         Do que está falando? – inquiriu Souza, olhos arregalados.

         Um de vocês irá nos trair.

A estupefação foi geral. Aqueles de pé tornaram a se sentar, fulminados pela preocupante revelação. Alguém iria traí-los? Como assim? Seria aquilo verdade ou apenas uma mentira para semear a desconfiança entre eles e assim aumentar o poder de ação de “R”? Caso existisse mesmo ali uma pessoa agindo contra o grupo, como inclusive fora cogitado antes, qual deles seria?

         Fala mesmo em um traidor? – indagou Rivera, braços cruzados.

         É o que tudo indica – respondeu o detetive. – Alguém da central tem enviado compilações dos dados do primeiro Caso Kira e da investigação atual para um e-mail não-autorizado. Não sei se faz isso para ganho pessoal, investigar por conta própria ou reportar nossos passos às autoridades de algum país ou organização internacional, porém teve o cuidado de impedir de todas as formas que eu e o agente Adams descobríssemos sua identidade. Tomamos providências para que essas informações não voltem a vazar, mas saibam que há alguém em meio a vocês colaborando contra nós. Talvez seja um aliado direto de Kira, e nós só descobriremos quem é quando estivermos bem próximos de capturá-lo.

Verdade ou não, tal afirmação mudara por completo o clima entre os policiais. Os olhares que trocavam entre si estavam agora carregados de suspeita e receio, e a partir de então qualquer ação mínima por parte de qualquer um deles seria analisada de forma a indicar se era o traidor ou não. Isso poderia prejudicar o andamento das investigações, atravancando as atitudes que tomassem, mas seria a postura mais prudente a assumir. Às vezes a dúvida era a melhor maneira de nortear uma situação perigosa como aquela.

         Quando partiremos para a França? – perguntou Matsuda.

         Dentro das próximas vinte e quatro horas – “R” não queria perder tempo. – Sei que você e o senhor Hoshi possuem vínculos neste país e que vêm mantendo contato com suas famílias, mas acredito que conseguirão se despedir e resolver suas pendências o mais breve possível. Não se preocupem quanto aos gastos da viagem e da hospedagem em Paris, pois todos serão devidamente custeados por mim. Nossa nova central será instalada num hotel da cidade, e trabalharemos em parceria com o inspetor Junot. Ao chegarmos, a investigação da morte dos três ocultistas será prioritária. Na melhor das previsões, acredito que prenderemos Kira em uma semana.

         E na pior? – indagou Moshe.

         Um mês.

         Nós o conheceremos pessoalmente na França? – Touta não pôde deixar de perguntar.

A réplica levou alguns segundos até ser pronunciada:

         Não. Ainda não.

Por fim, o incógnito e intrigante detetive disse:

         Estejam preparados para viajar. Chegaremos ao fim deste caso com a detenção de Kira e um completo esclarecimento dos pontos ainda vagos em nossas teorias, podem ter certeza. Se continuarmos a tomar as devidas precauções, todos nós conseguiremos saborear o triunfo do dever cumprido e desfrutar do equilíbrio da verdadeira justiça vivos e sãos. A não ser, é claro, aquele que nos trairá.

Houve mais um momento de apreensão, o ar do recinto muito mais pesado e tenso do que quando a reunião começara, até que “R” se despediu:

         Tenham um bom dia.

E, calados, todos os membros da equipe viram o notebook se desligar e em seguida ser fechado por Adams.

 

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O inconformismo me domina

A indignação me impele

Este mundo está caótico

O mal domina livremente

 

Liguei hoje a TV

Mais um maníaco solto

Pena das vítimas que fará

Raiva do sistema que o favoreceu

 

Madame Guilhotina, faça justiça!

Reestruture este mundo de ponta-cabeça

Puna quem mereça, Madame Guilhotina

Sua justa lâmina está sedenta!

 

Madame Guilhotina, você me ouve?

Meu clamor impele seu mecanismo

Puna a todos, Madame Guilhotina!

O mundo lhe está pedindo socorro

 

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Prévia:

 

Esses Shinigamis... Por que parecem esconder tanto de mim?

 

As pessoas... Elas me olham com apreensão, com suspeita! Será que acreditam que tenho algo a ver com a morte de Pasquale?

 

Será que suspeitam que sou Kira?

 

Próximo capítulo: Cerco


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