Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 4
Remorso/Parte II


Notas iniciais do capítulo

A pedidos farei capitulo menores, por isso apaguei todos os que vieram depois para cortar estes que ficaram tragicamente grandes e colocá-los em um tamanho aceitável... estarei repostando os mais atuais em breve... boa leitura ^^



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Foi o tempo de Kem puxar a espada e atacar o primeiro que ameaçou decepar sua cabeça. Mas verificou a pura e dura realidade. Por mais que cortasse aquela coisa, mais rápido ela se regenerava, e mais forte ficava. A espada só o defendia dos ataques das cimitarras. Grande coisa. Ia acabar morto, estraçalhado por aquelas coisas. Será que comiam carne humana?

Alyson já tinha vários corpos aos seus pés quando percebeu o problema de Kem. Também, ele era o único que estava a vista. Todos os outros estavam longe demais para serem distinguidos do lugar em que ela estava. Fitou o jovem por um longo momento enquanto evitava outro golpe. Tateou o interior do bolso do casaco que usava. Seus dedos tocaram algo como uma corrente. Ela puxou. Era uma corrente fina, de prata, com um pingente, do mesmo material, em forma de um gato. Imediatamente deu um grito: -Kem! Pega! -E atirou o cordão para ele. No mesmo instante os avantesmas que estavam ao redor dele se afastaram. Foi ai que Kem percebeu... Que a única coisa que eles temiam, e que poderia matá-los... Era a prata. Reconhecia aquele cordão. Foi o presente que ele deu para Alyson no seu aniversário de dezessete anos. Cloe tinha razão. Ele era, realmente, muito burro. Sorriu para a garota em retribuição e sentiu o sangue gelar quando um avantesma chegou atrás dela... E foi recebido com um soco no meio da cara. Ela estava mais atenta do que parecia. Kem deixou escapar um suspiro de alivio, e amarrou a corrente no punho, distribuindo socos eficazes para todos os lados.

Agora a jovem estava preocupada com os outros. Uma grande explosão abriu caminho para o seu lado esquerdo. Um susto tremendo, aliás. Devia ter sido Crós. As meninas deviam estar com ele, ela viu quando a tropa atacou e crós as puxou para trás de si. Droga. Desconcentrou-se pensando nisso, e logo outro avantesma fez um movimento com a cimitarra. Ela virou-se bem a tempo de ver uma mão prateada com grandes garras atravessar o peito da coisa, fazendo-a largar a cimitarra e despencar no chão. Qual não foi a surpresa de Alyson ao ver que a dona da mão era Cloe... Agora com duas orelhas pontudas de lobo e uma pequena cauda. E, para completar, um cordão pendurado no pescoço, com uma lua crescente e azulada como pingente.

–Como é que você...

–Não faz pergunta difícil agora não. -Retrucou Cloe, mostrando as mãos, cobertas por uma luva de prata. -Gostou da luva? Peguei no arsenal do Francis, acho que ele não vai se importar...

–E a Sacha?

–Já pedi para não fazer perguntas difíceis. Mas deve estar com o Crós.

–Bom saber. -Alegou Alyson, cortando a cabeça de um espectro, enquanto Cloe transpassava outro com suas garras (e a ajuda da luva de prata, claro).

Cloe olhou ao redor: -E o Kem?

–Também não posso responder perguntas difíceis agora. -Zombou a garota, completando: -Deve estar por ai, socando algum avantesma desprevenido...-Ela não terminou de falar. Algo bateu em sua cabeça com muita força, fazendo com que ela desmaia-se. A parte detrás de uma cimitarra, na realidade. Cloe amparou-a na queda, vendo suas próprias mãos sujas de sangue. Com certeza não era o sangue dos avantesmas que ela tinha matado, visto que este era vermelho vivo, e o das criaturas era preto como carvão.

–Droga. -Xingou Cloe, olhando ao redor, procurando ajuda. Procurando por Kem. Já não havia tantos avantesmas, mas os que restavam formavam um circulo em volta delas, enquanto os outros cercavam os amigos delas, o que dificultava a visão. O circulo foi se fechando, mas as coisas não atacavam. Esperavam as ordens de um mundo distante, para acabar com a raça daquelas duas. Uma ordem, talvez, de Haradja.

Cloe engoliu em seco. Não havia como sair dali. Se soltasse Alyson para atacar, matariam ela. Se ficasse ali parada, matariam as duas. Fechou os olhos, para pensar ou para não ver a cimitarra degolando-a, quem pode saber? Pois um avantesma ousou se rebelar contra as ordens, e levantou a arma para começar a chacina. A jovem ouviu um baque surdo e abriu os olhos, para ver o estrago que o seu salvador fez com um simples gancho de direita. Os outros seres que estavam ao redor tiveram o mesmo destino. Kem parou de pé na frente dela finalmente, transpirando, o rosto transbordando preocupação: -Você está bem? -E, agachando-se ao lado do corpo inconsciente de Alyson: -Ela está bem?

–Não sei, acertaram ela... Está sangrando. E muito.

A jovem voltou a si aos poucos e olhou de um para o outro, franzindo o cenho. -O que houve?

–Algum avantesma idiota acertou você. -Explicou Cloe. -Na cabeça.

–Percebe-se. -Retrucou, sentando-se com a ajuda dos dois e alegando: -Agora eu sei o que os gongos sentem quando batem neles.

–Você está bem?

–Estou, Kem, estou. A minha cabeça que está doendo e sem contar que estou vendo tudo girar, mas vou sobreviver.

Um outro estrondo abalou o lugar. Os últimos avantesmas foram destruídos por Francis e por Crós. Onde estaria Sacha?

A jovem gatinha, apoiada por Kem e Cloe, conseguiu se levantar. Seus olhos passaram pelo campo. Os corpos dos seres mortos estavam se desfazendo em uma poeira negra e agourenta. Ela avistou Francis e Crós mais a frente, curvados sobre o que parecia ser um fosso muito fundo. Sem entender, caminhou até lá, seguida de perto pelos outros dois amigos, que estavam atentos para o caso dela desmaiar outra vez.

O fosso era obra de uma das explosões de Crós. Este passava a mão pelos cabelos, agora soltos e bagunçados, e fitava o buraco. Francis buscava uma atitude impassível, mas de vez em quando fazia uma careta, que poderia ser tomada como sorriso por quem estivesse prestando atenção.

–O que houve? -Perguntou Cloe, quando os três se juntaram a eles. Alyson se aproximou do fosso, curiosa.

–Ela caiu. -Foi a resposta de Crós. Francis desistiu de segurar o riso e se afastou, por educação. Sacha estava dentro do fosso, coberta de lama, e completamente despenteada, fitando os outros com cara de poucos amigos. Os cabelos estavam mais escuros que o normal, asas de águia pequenas e delicadas saiam das suas costas e tinha uma cauda empenada típica daquela ave. Um cordão vermelho, em forma de flor de lotos, adornava seu pescoço, a retina dos seus olhos parecia ter aumentado, lembrando as de um falcão. Uma tiara de penas vermelho-fogo cintilavam em sua testa.

–Você também? -Retrucou Alyson, lá de cima.

Sacha afirmou com a cabeça levemente e choramingou. -Sou a metade de um passarinho ambulante!

–Tecnicamente, você é metade águia. -Gritou de volta Cloe, segurando o riso.

–Podem me tirar daqui?

Alyson olhou para Cloe. -Vou fingir que não ouvi isso.

–Idem.

–Vocês vão ficar ai batendo papo ou vão me ajudar?

–Sacha, sua besta cúbica, você tem asas. Use-as! -Explodiu Alyson, já começando a perder o resto de paciência que ainda tinha.

–Ora, não precisa ser tão grossa.

–Não estou sendo grossa. Você ainda não teve a oportunidade de me ver assim, ouviu? Agora sobe logo.

Sacha fez cara de contrariada e subiu como um raio. Chegando lá em cima, se transformou novamente em humana. -Sinistras aquelas coisas, não?

–Sinistras é apelido. -Comentou Alyson passando a mão pelo machucado recente e descobrindo, com amargura, que continuava a sangrar.

–Acho melhor ficarmos um pouco mais por aqui. Este corte está feio, Ly, e mesmo que eu consiga curar com magia você vai precisar de um pouco de repouso, antes de partirmos para a Inglaterra. -Optou Crós.

Alyson franziu as sobrancelhas. “Até tu, Brutos?”. -Mas você não estava com pressa?

–A sua saúde é o foco agora. Se for voar nestas condições isso pode evoluir para algo mais grave. As armas avantesmaris são terrivelmente tóxicas. E creio que vamos chegar encima da hora mesmo.

–Encima da hora para quê? -Questionou Kem.

–Para a prova de recrutamento da Equipe Black.

–Perdão, mas... Eu não entendi. -Alegou Alyson.

–Está ficando surda? -Perguntou Sacha. -Até eu entendi.

Ela percebeu o toque de zombaria na voz de Sacha e se defendeu. -Tem que dar um desconto, gente, eu acabei de levar uma pancada na cabeça, minhas faculdades mentais ainda estão meio embaralhadas.

–A Equipe Black estará fazendo uma prova amanhã para o recrutamento de mais guerreiros. -Crós parou, vendo a cara de Francis, que se juntava ao grupo. -Precisamos de ajuda, oras.

–A Iris, pedindo ajuda... Recrutando guerreiros por meio de uma prova? -Questionou Francis, pausadamente.

–Foi ideia dela... Eu acho.

–Da Iris?!

Crós respondeu afirmativamente com a cabeça, e Francis deu de ombros, comentando: -Eu sumo por cinco anos e as coisas ficam de pernas para o ar.

–Suponho que nós três não precisaremos fazer a prova para acompanhar a Alyson, certo?

–Suposição errada, Kem. Vocês terão que passar pela prova como todos os outros, mesmo sua amiga já sendo um membro honorário da Equipe.

–Eu sou, é? -Questionou a garota, passando as mãos pelos cabelos, como quem diz “não pode estar falando sério”.

–Digamos que sim. Mas não se preocupem com isso, a julgar pelas suas performances no campo de batalha, eu acredito que vão se dar bem.

–Sério? -Perguntou Cloe, vendo isso como um elogio.

–Tenho fé nisso, pelo menos. -Confessou o feiticeiro, fazendo os três trocarem olhares apreensivos entre si. Alyson olhou para eles de forma zangada e virou-se para Crós: -Suponho que eu possa dar um apoio, digamos... Moral, nessa prova.

–É... Não.

–Então eu vou ter que ver as minhas amigas e o meu namorado...

–Namorado, é? -Questionou Crós. A mesma pergunta passou pela cabeça de Kem, com uma leve esperança. Cloe fez uma cara de surpresa, Francis sentiu uma pontada de decepção e Sacha, que não estava prestando atenção na conversa, pensou em: “o que?”.

–...amigo...-Ela corrigiu, antes que o estrago piora-se, continuando: -...se matando para passar numa prova...de braços cruzados?

–É bem por ai.

–Veremos. -Ela retrucou, com tom de desafio.

–Enfim. -Continuou Crós, sustentando o olhar. - Essa prova será amanhã. E eu preciso estar presente, pois vou coordená-la. Junto com Iris, claro.

–Quem é Iris, afinal? -Questionou Cloe.

–É a atual líder da Equipe Black. -Objetou Francis, levantando o braço. Hunter despencou das alturas e planou para pousar na mão estendida.

–Agora vem, fedelha, vou fazer um feitiço para curar esse ferimento, antes que você acabe indo parar no hospital por perda de sangue.

T ZT ZT ZT

–Uma palavra com dez letras, que começa com I, e a sétima letra também é I.

–Impossível.

–Valeu, Mitaray! -Agradeceu Hiei, completando a palavra cruzada que estava preenchendo e mudando de página.

–Eu estava falando de você.

–Não sou tão insuportável assim. -Se defendeu o rapaz, lançando um sorriso zombeteiro ao amigo.

–É porque nunca experimentou ficar sozinho consigo mesmo. -Rebateu calmamente Mitaray, encostando a cabeça na janela e olhando para fora. Uma floresta desfilava em alta velocidade pelos seus olhos.

Os dois estavam num trem expresso, indo direto de Vadolfer para Farem, onde se localizava a Sede Black. Estavam em uma cabine vazia, Um em cada banco... O resultado era que ficavam se encarando o começo da viagem, até Mitaray abrir um livro (intitulado “Dragom, o Reino dos Dragões”), e Hiei puxar da bolsa uma revistinha estilo Coquetel.

Eram quatro horas da tarde, e uma nuvem densa e escura cobriu o sol. Um vento gelado começou a soprar, fazendo com que Mitaray fechasse completamente sua janela. Hiei fez o mesmo. Um trovão ribombou ao longe. Mas nuvens se juntaram, tapando completamente o sol. Raios apareciam ao longe, e logo uma chuva forte desabou sobre quase toda Diamante. Mitaray cravou os olhos no amigo, que abaixou imediatamente a revista. Gritos estrondosos e assustadores ecoaram pela tempestade.

–Silfos da tempestade. -Murmurou Mitaray.

–Estranho. O céu estava azul, sem uma nuvem... E, do nada, uma tempestade sinistra cai. -Comentou Hiei.

–Isso não é bom. Tempestades repentinas são sinais de mau agouro. Ainda mais com essa quantidade de silfos. Pode sentir? Na alma da tempestade há dor, há sofrimento... Perdição.

–Seres está chorando. Por que será?

–Não sei dizer. Mas para uma Deusa chorar, o motivo tem que ser muito sério. -Disse Mitaray, e outro grito lacerante veio da tempestade, junto com outro trovão. A deusa da água, Seres, chorava e lamentava e ninguém, alem dos outros deuses, imaginava o porquê.

–Uma expressão que começa com N. -Pediu Hiei, para amenizar o clima, abrindo outro sorriso... Desta vez amargo. Uma vez que Seres chorava, Diamante inteira sentia a sua dor.

–Não enche! -Respondeu Mitaray, reabrindo o livro.

T ZT ZT ZT

–Ai!

Alyson deu um berro, e se contorceu mais uma vez.

–Você pode ficar quietinha por um minuto! -Pediu Crós, enquanto abaixava a cabeça da garota pela décima vez seguida.

Eles estavam no hidroavião, tentando dar um jeito no machucado que se abria na cabeça da garota. Sacha e Cloe tinham saído para comprar umas lembranças da cidade. Kem estava sentado confortavelmente no banco, observando as tentativas de cura do feiticeiro. Crós havia mandado Alyson sentar num banco e abaixar a cabeça, E tinha entrado no vão entre as costas desse banco e o detrás. Tinha pegado no bolso uma erva que disse se chamar Alancia, e um tempo depois colocou por cima do ferimento. E começou a dizer um feitiço, algo como:

Osso quebrado, ordeno que se junte;

Veia torcida, ordeno que se desenrole;

Ferida aberta, ordeno que se feche;

Dor insuportável, ordeno que acabe;

Corpo cansado, ordeno que se cure.

Infelizmente, toda vez que ele chegava na segunda frase a jovem sentia dor e se mexia, quebrando a concentração do mago e fazendo ele repetir tudo outra vez.

–Seu insensível, isso dói, ta? Já viu o tamanho do rombo que aquele desgraçado me fez?

–Estou tentando te ajudar.

–Poderia deixar eu me curar sozinha. Tenho uma recuperação física muito rápida e defesas muito fortes...

–Uma ajuda a mais não vai fazer mal algum. E acha que essa defesa pessoal é muito boa? Conheci gente igual a você que pegou uma infecção séria por causa de avantesmas e sabe onde estão? Sete palmos abaixo da terra. Não quer morrer de novo, quer?

–Não, obrigada, uma flechada no coração já é suficiente. -Replicou Alyson, parando de se mover por alguns segundos. Logo outro grito de dor e nova interrupção forçaram Crós a parar. Uma onda de indignação passou pelo seu rosto descoberto.

–Pode parar de se mexer? -questionou ele, sem a mínima paciência.

–Não posso evitar. São atos-reflexos. -Desculpou-se ela.

–Eu adoraria te ajudar. Mesmo, mas se continuar se contorcendo eu nunca vou chegar ao final do feitiço. Capite? Tente relaxar!

Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça outra vez. De repente, aquela voz suave entrou no seu pensamento, novamente. E começou a falar:

“Já se resolveu?”.

“Estou confusa. Ele mentiu para mim. Pode me entender?”.

“Humanos mentem”.

“Mas ele errou. E feio, dessa vez”.

“Humanos erram”.

“Quero perdoar, mas ao mesmo tempo não quero. Ele parece perfeito para mim às vezes, e em outras parece não ter nada a ver.”

“Humanos são imperfeitos”.

“Sei disso”.

“Mas esquece”.

“Você tem razão. Posso te chamar de você?”.

“Pode me chamar do que quiser, por enquanto”.

“O que eu devo fazer? Estou tão confusa”.

“O que achar certo”.

“Não sei”.

“Pense”.

“Acho que ele é o certo”.

“Você está no caminho correto... O caminho do seu coração”.

“E se ele não for o certo?”.

“Saberá o que fazer. Mas quando os humanos aprendem a olhar para dentro de si mesmos, quando ouvem seu coração, aprendem a seguir seu caminho, a evoluir, a ter o poder de mudar seu destino. Enquanto seguir esse caminho, nada, nem ninguém, poderá o impedir”.

“Um dia vou chegar a esse nível?”.

“Um dia”.

“Estou preocupada. Não sei porque. Talvez seja o fato de eu ter que deter uma imortal. Ela é uma assassina. Tem sangue frio, poder, vida eterna. Tem muitas coisas que eu não tenho. Como posso vencer se sou tão inferior?”.

“Comece se perguntando o que você tem que ela não pode ter. Mas não é isso o que você procura”.

“Como assim?”.

“Não é com isso que você está preocupada”.

“Eu não sei. Ainda a pouco eu pensei ter ouvido um barulho de chuva, de berros horríveis, por dentro de uma tempestade. E uma tristeza muito grande tomou conta de mim”.

“Crós também pode sentir. Fique do lado dele. Ele entende o porquê, pois nasceu em Diamante, e Diamante é parte dele. Quando Diamante ou seus Deuses sofrem, os fiéis a eles podem sentir”.

“O que está havendo?”.

“A Deusa da água está chorando”.

A voz calou-se, e Alyson entendeu que ela tinha se recolhido às profundezas de sua mente. Um último conselho passou como um lampejo em sua mente.

“Pode abrir os olhos. O feiticeiro terminou a magia agora”.

Ela reabriu os olhos, e sentiu como se tivesse dormido uma noite inteira. Sua cabeça não doía mais. Não havia mais sangue... Não havia mais nada. Ela passou a mão delicadamente pela cabeça, e Crós disse o que ela se recusava a acreditar: -Não há mais ferimento. Ele sumiu... Completamente.

Kem tentava esconder a surpresa, mas não era muito eficiente nisso. A garota virou-se imediatamente, abrindo um sorriso radiante e deu um beijo na testa do mago. Esse ficou meio pasmo por alguns momentos, depois deixando um sorriso cintilar pelo seu rosto. Passou sua mão pelos cabelos dela, bagunçando-os mais ainda.

–Você vai me ensinar, não é?

–O quê?

–Esse feitiço. Por favor. -Pediu Alyson, piscando os olhos com carinha de anjo.

–É muito complicado...

–Eu me esforço. Crós, por favor...

Ele pareceu pensar por um minuto. -Bom, levando em consideração que você é atrapalhada e que vive se machucando... Está bem.

–Sério? -Perguntaram Alyson e Kem juntos. Ela com admiração, ele chocado.

–Sério. E caso consiga utilizá-lo com perfeição, eu ensino os outros. Você vai ser, como eu posso dizer? Minha aprendiz.

–Jura? -Ela questionou, enquanto Kem sussurrava para si mesmo: -Socorro.

–Juro. Palavra de feiticeiro. Afinal, Iris sempre me disse para procurar uma cobaia para eu ensinar.

–O que você quer dizer com cobaia? -Gaguejou a jovem.

–Foi uma aposta que os outros integrantes da Equipe fizeram em mim. Aparentemente era o grupo que achava que o meu primeiro aprendiz ia se transformar em uma pessoa poderosa e importante contra...

–Contra? -Perguntou, já começando a mudar de idéia.

–Os que achavam que o meu primeiro aprendiz ia acabar em pedaços, tentando produzir uma das minhas complicadas formulas.

–Em que lado a Iris estava?

–Do meu. O lado Super-herói. E junto com ela estava o Aaron, a Dayana e o Senhor do Palácio de Granito. À minha esquerda... -E ele deu um sorriso besta. -... Ou do lado do “defunto”, estavam a Taylor, a Pandora e o Dave. Na realidade, a culpa disso tudo é do Dave.

–Senhor do Palácio de Granito? -Perguntou Kem, interessado.

Crós olhou para cima como se aquilo fosse algo que não quisesse lembrar e retrucou baixo, virando-se e saindo do hidroavião: -Isso foi há muito tempo.

Alyson o acompanhou pelo vidro dianteiro do avião e suspirou profundamente, enquanto Kem se aproximava dela. Foi recebido com um tapa na cabeça.

–Hei... Por que fez isso? -Ele resmungou, esfregando o local atingido.

–Você tinha que perguntar? -Acusou ela, cruzando os braços. -Não está vendo que eu estava tentando animar ele?

–Parecia estar tentando convencer. -Disse o rapaz. -Animar por quê?

–Você não acreditaria em mim. -Ela alegou, sentando num dos bancos. Ele se sentou ao seu lado.

–Tente explicar... E eu prometo que tento entender.

–Ta. Mas é complicado. E estranho.

–Por favor, eu tive um mestre que podia viajar pelos três mundos e você vem me dizer que algo é estranho demais?

–Tem uma voz na minha cabeça, Kem. Eu estava conversando com ela enquanto Crós fazia o feitiço... Por isso que eu “sosseguei”.

–Sério? Parecia que você tinha apagado.

–Ele pediu para eu relaxar. Essa coisa... Seja lá o que for, está tentando me ajudar. E ela disse que Crós estava triste. Estava sofrendo por causa do que estava acontecendo em Diamante.

–O que está havendo?

–Eu fiz a mesma pergunta.

–E o que ela respondeu?

–Que a Deusa da água está chorando.

–Meu mestre disse algo sobre isso uma vez.

–O que ele disse?

–Que para a Deusa da água chorar precisa de um motivo muito forte. E que quando ela chora, o que é raro, mesmo o dia mais claro é imediatamente coberto por nuvens negras, e uma tempestade arrepiante se forma. E que criaturas invisíveis para pessoas com olhos comuns gritam e choram, junto com a tempestade, espalhando a dor por onde ela passa. -Contou Kem. Ela o fitou demoradamente, aparentemente amedrontada.

–Não foi apenas sobre isso que ela falou. Digo “ela” não porque é uma voz, mas porque tem um tom feminino. E eu tenho certeza que ela é uma mulher. -E dizendo isso ela fez o sinal de aspas com os dedos. E completou: -Preciso falar com você.

–Ela mandou?

–Não exatamente. Ela disse para eu seguir meu coração. E não sei ao certo o que ele está dizendo agora, mas... Preciso falar com você.

–Vai ficar com seu amiguinho romântico francês? -Perguntou ele, com um sorriso triste.

–Nem pensar! O que fez você pensar nisso?

–Ele está dando em cima de você desde que te percebeu. E por um breve momento achei ter visto algo como uma... Cumplicidade.

–Achou errado.

–Em todo o caso, preciso admitir...

–Que você não gosta de mim? Não precisa, já me jogou isso na cara horas... -Ela foi interrompida por um beijo rápido.

–Eu menti. Duas vezes.

–Me... Mentiu, é?

–Quando disse que não confiava em você... Eu estava fora de mim, não sabia o que eu estava dizendo. -Ele segurou as mãos de Alyson nas suas e continuou. -Confio a você até a minha vida, se for preciso. Mas tenho medo... De acordar um dia e descobrir que você desapareceu, de ver você morrendo outra vez e não poder fazer nada, de fazer você sofrer sem necessidade... Eu tenho medo de muitas coisas não é? Mas é porque eu te amo. Tenho pavor de perder você.

–Demonstra muito bem. -Alegou, com um sorrisinho torto. -Que engraçado...

–O que é engraçado? -Retrucou Kem.

–Também te amo.

–Posso perguntar qual é a graça nisso?

Ela deu uma risadinha: -É difícil de explicar. Às vezes, quando esperamos muito por algo... Quando queremos muito algo, parece impossível de se conseguir. Mas quando conseguimos... Sei lá, parece que é brincadeira. Frustração.

–Você está esperando algo que não vai vir. Porque eu juro pela minha alma que tudo o que eu acabei de dizer é verdade. A mais pura verdade.

–Sei que é. Confio em você. -Ela o abraçou docemente. O rapaz corou, surpreso. Ela era previsível... Pelo menos na maioria das vezes.

–Posso te fazer uma pergunta?

–Qual?

Kem abriu um sorriso de escárnio (o que significava que era alguma bobagem), e perguntou: -Sou seu namorado agora?

–Bobo.

T ZT ZT ZT

Crós olhou para o céu. A noite começava a descer, e as primeiras estrelas apareciam à distância. Sentiu dor. Não era uma dor física, que podia ser curada à base de feitiço ou erva. Era muito pior que uma simples dor. Algo que ele experimentava raras vezes, em ocasiões mais raras ainda: solidão, impaciência e impotência. Receio, tormento e acusação. Devia ter dado ouvidos a ela. Devia ter andado rápido. Já deveria estar em Diamante ao seu lado. Ao lado daqueles que eram a família que nunca teve. Seres estava sofrendo, e isso é alarmante. Significa que algo muito ruim estava acontecendo, algo muito ruim. E, mais cedo ou mais tarde isso afetaria seus amigos. Iris e os outros estavam com problemas, ou quase lá, e talvez ele não chegaria a tempo.

Ele cobriu o rosto com as mãos, lutando para conter as lágrimas e respirou fundo. Viu as meninas voltando para o hidroavião, enquanto pensava que não podia perder tempo. -Graças aos Deuses! -Menos isso para se preocupar. Dirigiu-se para a máquina controlando a respiração, de passos firmes. Não podia mostrar a eles fraqueza. Daria a impressão de que iriam lutar por uma causa perdida, e isso era a ultima coisa que o mago queria. Primeiro porque ele ainda tinha fé, e segundo porque o desanimo custa caro. Caro demais para se arriscar.

Mas sempre chega uma hora em que a fé começa a enfraquecer, começa a falhar. E Crós sentiria isso, mais cedo do que podia imaginar.

“Francis, venha rápido. Vou partir hoje à noite. Não há tempo. Traga as pedras”.Ele chamou em pensamento, e entrou no hidroavião, um pouco depois de Cloe e Sacha. Todos voltaram sua atenção para ele.

–Precisamos ir. -Declarou, firme, e completando: -Vou esperar Francis chegar para pegarmos as pedras mágicas e daremos no pé.

Alyson arqueou um pouquinho as sobrancelhas, se perguntando desde quando um feiticeiro dizia “daremos no pé”, mas preferiu ficar quieta. Recostou-se confortavelmente no banco e se obrigou a pensar num meio de dizer a Francis que não estava interessada nele, sem parecer convencida ou insensível.

T ZT ZT ZT

O imperador de Diamante estava bastante preocupado. E não era para menos. Aos seus pés, no salão principal do Palácio de Granito, Seres estava estendida, chorando desconsoladamente. O Senhor do Palácio de Granito adentrou no salão, aparentemente aflito. O manto negro que usava farfalhava a cada passo. Era um rapaz bonito, alto, de 27 anos, cabelos escuros e curtos, olhos castanho-esverdeados e pele bronzeada. Não dava para divisar o seu corpo por causa do traje, mas ele tinha um corpo escultural, musculoso na medida certa.

Nicolas fez uma reverencia. O velho imperador, de olhos claros e penetrantes, expressão afável e cabelos grisalhos fez um sinal para que o rapaz levantasse e chegasse mais perto. Os olhos dele passaram por Seres. A Deusa da água se encolheu e olhou o recém-chegado. O rosto delicado estava vermelho e um pouco inchado por causa do choro. Os olhos, azuis claros, também estavam vermelhos. Os cabelos, de tom azulado, cacheados e compridos até os ombros, estavam molhados e embaraçados. Ela vestia um vestido branco, com decote em forma de V, babados e brocados nas mangas curtas e um corte meio aberto embaixo. Era raro vê-la desse jeito, pois Seres era uma sereia, e na maioria das vezes estava dentro d’água, com as pernas transformadas em uma calda azul-turquesa e usando um top da mesma cor.

–Oi, Nicolas. -Sussurrou a Deusa, controlando o choro.

–Majestade. -Ele cumprimentou, fazendo outra reverencia, e finalmente abaixando-se ao lado da Deusa, perguntou: -O que houve, Seres? Por que está chorando?

A divindade se ajoelhou no chão e tocou com o dedo indicador uma pequena poça, que tinha se formado com suas lagrimas, começando a falar: -Ela destruiu a Cidade que eu criei com minhas próprias mãos, com meu próprio sangue. A Cidade Das Águas foi destruída, agora só existe água suja de sangue e ruínas. Só a parte norte foi poupada, e isso porque Haradja quer utilizar o castelo que foi construído lá como estadia de verão. Ela conseguiu entrar lá, não sei como, e matou a maioria dos habitantes. -Enquanto Seres falava, na poça de água salgada apareciam imagens de destruição, guerra, ruínas, pessoas sendo mortas sem poderem sequer lutar. Quando a Deusa terminou, a poça que antes era límpida e cristalina se transformara em sangue.

Seres retirou o dedo e olhou para Nicolas e para o imperador, Erom. Novamente uma sombra de angústia passou pelo seu rosto, e seus olhos embaçaram. -Eu não pude fazer nada... Não posso fazer nada. Os deuses só tem permissão de intervir quando se confrontam com outros deuses.

–Não devia ter mostrado essas cenas para nós, majestade. Vai sofrer ainda mais desse jeito. -Comentou Erom, num fio de voz.

–E não queremos que sofra. -Complementou Nicolas. -Me desculpe, a culpa foi minha. Eu era o responsável por vigiar Haradja. Eu falhei... Mais uma vez. Com vocês dois, com os outros deuses, com Iris, com todo mundo... Principalmente com os habitantes da Cidade das Águas, deixando-os a mercê de algo contra o qual não poderiam lutar.

–Não se culpe, Nicolas. Nem nós, deuses, previmos isso. Ninguém poderia. Foi um ataque surpresa, bem arquitetado. Os vigias de Soledad foram pegos numa armadilha, para que ninguém pudesse nos informar do ataque. O que podemos fazer é nos concentrarmos nas outras cidades, principalmente aqui em Cristal e em Farem, onde a maré vai bater mais forte... -Seres interrompeu-se, suspirando, e alegou: -Precisamos nos reunir com Folkes, Reidh e Hera, precisamos da garota, e precisamos avisar à Iris.

Nicolas parou para pensar por alguns momentos e bateu a mão na testa: -O teste... Ela vai tentar sabotar o teste. Quantas horas?

O imperador olhou para o grande relógio de pendulo que adornava o salão principal: -Meia noite e meia.

–Temos pouco tempo. O teste começa as oito em ponto. Imperador, preciso usar o computador principal... Se me dão licença... -Ele se curvou mais uma vez e saiu da sala, o mais rápido que o piso escorregadio deixava. Seus pés derraparam quando ele saiu do salão, rumo à sala do computador central, onde ele tinha recepção boa o suficiente para contatar Farem e Iris.

Ele ligou o computador e esperou-o carregar (o que demorava quase meia hora, pois à noite a carga de energia mandada pelo Palácio era bem maior que de dia.), rezando para que desse tempo. Se acontecesse algo com Iris ou com os outros, ele jamais se perdoaria.

O computador carregou-se completamente em exata meia hora, o que deixou o Senhor do Palácio de Granito desesperado. Mas a surpresa maior ainda estava para chegar. Nicolas descobriu, com desgosto, que a linha de comunicação com a Sede Black e todos os comunicadores estava cortada. Um presente de Haradja, e eles demorariam muito tempo para saber como ela tinha feito aquilo. Ou melhor... Sua sócia. O rapaz tentou de todos os meios possíveis estabelecer o contato, sendo frustrado em todas as suas tentativas.

Ele voltou para a sala principal, reencontrando-se com Seres e Erom: -Não consegui.

–Não conseguiu? -Questionaram os outros dois.

–As linhas de transmissão foram cortadas. Nenhum recado entra ou sai. Primeiro pensei que era só a Sede Black, mas não é. Tentei contatar guardas, vigias, sem sucesso.

–Haradja. -Murmurou Seres, levantando-se. -Alguém tem que avisá-los. Não podem estar desprevenidos contra um ataque de Haradja.

–Eu vou. -Alegou Nicolas.

–Sou mais rápida. -Contestou Seres.

–Não pode interferir, majestade. Sabe muito bem o que acontecerá se ir lá agora. Ainda mais nesse estado de espírito. Posso fazer isso. Eu fracassei uma vez, quero concertar o erro. Por favor, minha Deusa, deixe-me partir.

Seres olhou para aquele rapaz determinado e sentiu toda a sua vontade minar. Sabia o que aconteceria se interviesse. Ficaria confinada no seu elemento por quatro dias. Quatro dias era muito tempo para um reino ameaçado. Poderia ser mais útil essa intervenção em outro momento. Seres era a mais calma e racional dos cinco grandes Deuses. Ela sabia que ainda não era hora de arriscar a pele. Ainda não. Teria que confiar em Nicolas mais uma vez.

–Vá. Mas procure primeiro a Sede, e depois o Caminho da Ilusão. Se houver um ataque, pegará os dois. Com certeza ao mesmo tempo. -Disse Seres, se conformando.

–Obrigado, majestades. -Ele agradeceu, e se virou para sair do salão.

–Nicolas. -Chamou a deusa. Ele a olhou.

–Você daria um ótimo imperador.

Nicolas deu um sorriso e meneou a cabeça. Já ia se virar de novo quando Seres o confrontou novamente. -Nicolas... Tome cuidado. E boa sorte.

Ele fez outra reverencia e saiu da sala. Seres virou-se para Erom e perguntou: -Já pensou em quem vai ser seu sucessor?

–Já. Nicolas será um bom imperador. A menos, é claro, que ele não queira e que haja alguém melhor para ficar no seu lugar.

–Vou considerar isso na hora em que formos promover a sucessão. -Prometeu Seres. -Mas ainda vai demorar. Ainda está firme e forte, senhor. Ainda vai viver muitos anos. O suficiente para ver Nicolas amadurecer um pouco mais.

–Quem sabe.

–É, quem sabe.

A deusa do destino é ardilosa. Nenhum deles poderia prever o futuro que os aguardava. Nesse instante, Nicolas embainhava a sua espada e subia em sua moto. Em instantes estaria na estrada. Precisava de tempo... E essa era a única coisa que ele não tinha.


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