Eu sentia o impacto que meus pés faziam no chão liso do corredor, sentia o contato firme da mão fria de Ciel com a minha, puxando-me para a saída perdida daquele pesadelo sem fim, em algum lugar de minha mente entorpecida uma voz me indicava que era melhor correr para poder sobreviver, por isso eu continuava em movimento.

Mas minhas memórias estavam paralisadas nos olhos de sofrimento com os quais Mikael me encarara, sua agonia transbordando na única lágrima que ele derrubara em seus últimos minutos.

Eu sempre estivera sozinha, nunca havia me aproximado de ninguém, pois não era necessário. A única pessoa que se dispusera a encarar o alto muro atrás do qual eu havia me escondido, que depositara sua confiança em minhas mãos, e acabara se aproximando de mim de uma maneira que à muito tempo ninguém se aproximava era Mikael.

E agora ele estava morto.

Ele estava morto. Essa frase rodeava todos os pensamentos que eu tentava concluir, interrompendo meu raciocíno fraco como um letreiro escarlate que se pusesse em meu caminho, não me deixando escapatória além de encarar a dolorosa realidade que me observava.

E tudo aquilo por causa daquele maldito anjo. Tudo por que ele queria brincar um pouco mais comigo. Por que eu? Porque eu havia sido escolhida para ser a mais atormentada em um mundo em que todos já eram perseguidos? Já não era o suficiente o pânico que se alastrava por mim todas as noites, não me permitindo dormir por medo de acordar com alguma figura de olhos prateados me encarando?

Aquilo não iria parar, disso eu tinha certeza. O Nightwalker não descansaria até ver todas as pessoas ao meu redor mortas, até me ver chorando de agonia e implorando por meu próprio fim. Não importava o quanto eu poderia me esconder, eu só estaria ganhando um dia a mais de pânico que no fim seria abatido quando o anjo me encontrasse.

O único modo de acabar com tudo aquilo seria com o próprio fim do anjo. Com a sua morte.

Ri debilmente com aquela ideia, o sorriso parecendo louco através de meu rosto molhado das lágrimas que desciam incessantemente. Matar um Nightwalker? Um Nightwalker que não se afastava nem com a nossa única arma, a luz? Era impossível.

Em meio aos pensamentos insanos que rondavam minha mente, percebi que Ciel havia finalmente encontrado o fim do corredor. Agora nós nos encontrávamos em uma sala maior, várias luzes iluminavam as mesas que se enontravam em todos os lugares. As cadeiras à frente delas encontravam-se vazias, algumas derrubadas no chão, vestígios do pânico que havia dominado as pessoas que ali estiveram antes.

Em cima das mesas computadores brilhavam com avisos avermelhados de perigo, alguns estando desligados e até quebrados, e em algum lugar ao longe, um alarme tocava incessantemente, provavelmente tentando avisar as pessoas dos pesadelos que invadiram o local. Aquilo havia virado um caos.

- Vamos - disse Ciel, continuando a me puxar por entre as mesas e cadeiras até uma porta que havia do outro lado da sala.

- Ciel! Emily! - ouvi alguém exclamar de um dos cantos da sala, olhei na direção e identifiquei Tariq correndo até nós.

Seus cabelos prateados caíam em uma bagunça desordenada por sua face, os olhos violeta nos encaravam em uma completa confusão, bem diferente da calma ensaiada que ele tivera algumas horas antes. Olhei para seu jaleco, que agora encontrava-se sujo e amassado esvoaçando por seus pés enquanto ele corria.

- Não vão por ali, está tudo acabado - ele disse, apontando para o caminho que estávamos seguindo - Eu conheço uma outra saída, venham por aqui.

- O que está fazendo aqui? Se conhece a saída disso tudo porque não foi embora de uma vez? - disse Ciel, um tom desconfiado despontando em sua voz completa pelo medo.

- Vim ver se ainda tínhamos sobreviventes, é uma das coisas que somos treinados à fazer em situações de perigo, já que conhecemos o lugar - Tariq respondeu, enquanto nos guiava por uma porta que dera em outro corredor, pelo qual andávamos depressa - Falando nisso, cadê o seu amigo? Mikael?

Tariq virou-se por um momento em minha direção, aguardando uma resposta. As palavras que tanto ecoavam em minha mente ameaçavam sair por meus lábios, porém eu sabia que se tentasse pronunciá-las tudo o que saíria seria um soluço covarde que denunciaria o choro que espreitava meus olhos, por isso apenas abaixei a cabeça, negando levemente. Na situação em que estávamos, aquilo já dizia tudo.

- Ah - Tariq disse, olhando para frente repentinamente, os olhos perdidos processando a informação - Bem... A saída é por aqui.

Olhei rapidamente para Ciel, percebendo que ele me observava desconfiado, atento à qualquer sinal de uma crise de choro que eu pudesse dar. Bufei e lhe mostrei o dedo médio, já estava difícil conviver com meus pensamentos para ainda ter aquele híbrido preocupado comigo naquele momento.

Percebi que o corredor que havíamos passado com Tariq e o que nos encontrávamos agora ainda estavam iluminados, o que denunciou novamente que todo aquele pesadelo fora planejado para afetar apenas eu e Mikael. O único corredor que estava na escuridão era o que dava para meu quarto, o que deixaria qualquer pessoa que quisesse ajudar longe do local, com medo de visitar o negrume que os pesadelos tanto gostavam.

Assim só ficaria eu e Mikael no local, o que tornaria possível que o plano do anjo fosse executado. Lógicamente mais pessoas morreram no processo, porém aquilo não fora nada mais que um 'efeito colateral' dos Nightwalkers que não conseguiam se controlar em fazer novas vítimas.

Percebi que o silêncio reinava aonde estávamos, o eco dos gritos que ruidosamente caminhavam pelo corredor que eu havia andado com Mikael parecendo pertencer à outro mundo. Aquele local estava livre de Nightwalkers.

Tariq entrou em um grande aposento, as luzes prateadas iluminando o local também, porém ali elas já não eram tão necessárias, pois à nossa frente uma alta parede de vidro anunciava o amanhecer alaranjado que despontava na rua. Observei uma grande porta aberta no local, seu caminho levando para a calçada fora daquele pesadelo, onde várias pessoas de jaleco, e algumas outras com camisetas iguais à minha, encontravam-se encarando aliviadas o céu, suas faces desmanchando-se no alívio que tomava conta do pânico de antes.

- Ali está - disse Tariq, um sorriso quase despontando por seus lábios.

Tariq andou depressa para a saída, seguido logo depois por Ciel, que encarava a porta de vidro como se fosse o caminho para o paraíso.

Meus pés quase os seguiram, porém uma sensação incômoda de estar sendo observada esgueirava-se por minhas costas, e eu sabia que tal pressentimento não era em vão. Virei meus pés, observando o corredor pelo qual havíamos acabado de passar.

Uma figura caminhava casualmente por ali, suas asas negras se desenhando na paisagem iluminada, seu corpo não sofrendo nenhuma repulsa pela luminosidade excessiva que se depositava em sua pele.

Olhei para o chão, observando as linhas avermelhadas que seguiam os passos do Nightwalker, descrevendo seu caminho em gotículas escarlates, quase me apresentando um clichê. O pesadelo parou à minha frente, encarando-me com os olhos completamente negros como o mais profundo dos abismos, no qual qualquer um sofreria arrepios apenas andando por perto.

- Divertiu-se essa noite? - ele perguntou, o sorriso maldoso desenhando sua face pálida enquanto os dentes afiados se apresentavam.

- Acha que vou me render? - perguntei rispidamente, encarando os olhos de um negrume que me amedrontava.

Ele deu uma risada rouca, o cheiro fétido de seu hálito encontrando o meu rosto.

- Ainda não, mas um dia você vai - ele disse, pegando um fio de cabelo que caía por meus olhos - E vai se render de uma maneira linda, chorando aos meus pés por misericórdia.

Desvencilhiei sua mão, fazendo com que sua pele extremamente fria entrasse em contato com a minha, causando-me repugnância.

- Não enquanto eu ainda estiver viva - respondi, afastando-me levemente.

- Você anda muito rebelde, sabia? Bem diferente da primeira vez que te encontrei, resmungando contra seu cobertor, como se ele pudesse te proteger - ele continuou, sorrindo novamente enquanto se deleitava com a lembrança - Você sabe que eu posso te matar agora mesmo se você não se comportar, certo?

- Eu sei que não, você não acabaria com a diversão tão cedo - respondi, um sorriso frio passando por meus lábios por um momento, enquanto o anjo me encarava em uma falsa surpresa.

- Como você é esperta! - ele disse, batendo palmas lentamente - Falando nisso, como foi a morte de seu amiguinho, hein? Sabe, eu queria ter feito tudo por mim mesmo, porém acho que "a mãe" do garoto fez um trabalho bonito, não?

Fiquei calada por um momento, tentando evitar que o turbilhão de imagens de Mikael voltassem à mim e me derrubassem.

- Você não pode fugir disso, princesa - o anjo disse, aproximando-se de mim à ponto de sua respiração calma bater contra minha pele - Você irá enlouqecer, e virá até mim pedindo clemência. Isso é certo, só falta sabermos quanto tempo levará para isso acontecer.

O anjo deu um passo para trás, ainda me observando com seu sorriso sinistro nos lábios. Logo depois ele voltou-se para o corredor, fazendo calmamente o caminho de volta para a casa de horrores que aquele local havia se transformado.

Observeio-o até o desenho de suas asas se tornar um ponto distante naquele labirinto perdido, virei-me novamente para as portas, percebendo que Tariq e Ciel me vigiavam sorrateiramente, a expressão de medo em suas faces me mostrando que eles haviam visto a cena toda.

Andei lentamente até as portas, enquanto uma ideia cada vez mais impossível crescia em meus pensamentos. Eu iria encontrar um jeito de matar o anjo, de por um fim em todo o sofrimento que todos estavam tendo com aqueles pesadelos reais e horríveis. Mikael era o que sempre tinha esperança de encontrar um fim para tudo aquilo, pois agora eu seguiria o seu pensamento. Eu devia isso à ele. Nós devíamos isso à todas as vítimas que já tinham visto seu fim nos olhos prateados - ou negros - dos Nightwalkers.

- O que foi aquilo? - disse Ciel, observando-me como se se certificando de que eu realmente estava viva.

- Comece a encarar essas conversas escrotas como rotina - eu murmurei, recebendo um olhar ainda mais confuso do híbrido.

- Emily, o que está acontecendo? Por favor, diga-me, eu posso te ajudar - disse Tariq, o vento leve da manhã bagunçando ainda mais seus fios prateados.

- É, você pode me ajudar. Sabe algum local de pesquisa como o e vocês? Algum local que continue procurando soluções como vocês faziam aqui? - perguntei, apontando levemente para o laboratório agora dominado pelos Nightwalkers e suas vítimas.

- Sei, claro - Tariq respondeu, assentindo com a cabeça - Nós temos, ou tínhamos, contatocom vários centros da região, porém eu nem sei se eles ainda estão funcionando.

- Já está bom, vamos tentar encontrá-los - eu disse, assentindo para Tariq.

- Seu grande plano é correr por aí atrás de mais pesquisadores... - disse Mikael, apontando com a cabeça para Tariq enquanto seus olhos enchiam-se de descrença - desse tipo?

- Tem alguma ideia melhor, esperteza? - respondi, lançando um olhar de raiva na sua direção - Se tiver pode dizer, ou então vá embora.

- Emily, não seria muito bom se Ciel fosse embora... - começou Tariq lentamente, provavelmente não querendo que minha irritação fosse descontada nele também - Ele pode ser a chave para nossa pesquisa.

- Viu, querida? É melhor começar a me tratar melhor - disse Ciel, sorrindo vitorioso.

- Prefiro ter mais uma conversa lá dentro do que te tratar como se você fosse alguém normal - respondi, saindo de perto daqueles dois antes que alguém pudesse retrucar.

Afastei-me levemente do pequeno grupo de sobreviventes que agora riam bobamente enquanto percebiam que o pesadelo havia acabado, observei alguns cientistas sentados na calçada alaranjada pela luz do sol, seus rostos escondidos por entre as mãos ou pelas sombras, que acabavam confirmando a probabilidade de que eles estavam chorando pelas pessoas que haviam ficado lá dentro.

Será que eu também deveria ficar assim por Mikael? Chorando pelos cantos, culpando-me pela sua morte? Meneei com a cabeça, afastando tal ideia de meus pensamentos. Desesperar-me pelas ruas não iria me levar à lugar nenhum, e ainda poderia trazer um divertimento ainda maior para o Nightwalker que tanto me observava. Eu devia continuar sobrevivendo como sempre fiz, arranjando um jeito de escapar das dificuldades de qualquer maneira que fosse. Lógico que eu sentiria falta de Mikael, a dor que impregnava-se em meu corpo toda vez que eu me lembrava dele era uma afirmação disso, porém eu prefiria sentir sua falta tentanto por seu plano de encontrar uma solução em prática do que me lamentando pelos momentos que ele havia passado.

Era quase impossível eu arranjar a solução para a humanidade naquele apocalipse, pensei enquanto observava o sol agora iluminando completamente a região, afastando qualquer vestígio de sombra que ainda rastejava pelo local, porém se era para morrer, eu morreria tentanto fazer algo útil.

Ouvi gritos eufóricos do grupo atrás de mim, várias frases saudando a luminosidade da manhã enterpelando-se entre as palmas e os risos aliviados, como se aquela grande bola amarela no céu fosse capaz de afugentar os pesadelos por pelo menos mais um dia.

Eu também pensaria assim, se não tivesse vivido tudo aquilo com os Nightwalkers de olhos estranhos e habilidades peculiares.

Os verdadeiros monstros não tinham mais medo da luz.