A Chama Do Sul escrita por LudMagroski


Capítulo 5
As torres de Cerusia




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O grupo viajava a passos lentos em direção ao norte, sem seguir a estrada. Ao sinal dos primeiros raios de sol, cinco ou seis guerreiros montavam seus cavalos e partiam a galope a frente do grupo. As últimas fogueiras eram apagadas, a tenda maior desarmada e os cavalos atrelados aos comboios de seus donos. Os filhotes seguiam junto aos pais, enquanto que os mais velhos caminhavam sem arreios atrás, guiados por alguém. A maioria das pessoas seguia viagem dentro de seus comboios – cada um abrigava uma família – ou sentada na parte frontal, jogando conversa fora com os vizinhos. As crianças passavam a maior parte da viagem brincando e correndo entre os cavalos, eventualmente subindo em um comboio até serem enxotados por alguém que não queria ser perturbado. Durante o dia, não havia pausas. Comia-se carne seca ou frutas recém-colhidas quando a fome vinha e quem ficasse cansado podia se retirar para dormir e deixar as rédeas à vontade. Os cavalos estavam acostumados com os caminhos seguidos pelo clã a depender pela época do ano e a maioria deles estava mais preocupada em se manter junto ao bando do que a fazer qualquer desvio de trajeto. Quando o sol começava a se pôr um local de descanso era escolhido pelos guardiões – que já haviam feito aquele trajeto incontáveis vezes em sua vida e conheciam os melhores lugares. Os cavalos se livravam de seus arreios, a grande tenda era armada, as fogueiras acesas e esperava-se o retorno dos grupos de caça. Adaia gostava de passar o tempo durante as viagens cuidando dos cavalos ou ouvindo as histórias de guerreiros e guerreiras mais velhos sobre suas batalhas e caçadas mais entusiasmantes. Eventualmente era convidada a contar algo e relutantemente escolheu um banquete de aniversário de Advi. Pegou-se contando mais para si mesma do que para os outros e descobriu que a sensação era boa. As crianças, que para seu desagrado adoravam tocar seus cabelos, estavam entre as que insistiam diariamente para que contasse algo novo. Contou sobre as apresentações de menestréis e sobre as batatas assadas que comeram. Contou sobre como apostou que seu cavalo era o mais rápido do castelo e em como isso resultou em um vestido arruinado. Preferiu ocultar a expressão lívida com que Advi a encarou quando Sir Iras revelou que a encontrara chapinhando nas margens do riacho. Durante as noites dividia seu tempo entre observar as danças e o treinamento dos guerreiros. Jyoti verificava seus ferimentos todos os dias. As manchas roxas no rosto haviam sumido e o corte na bochecha tinha se resumido a uma linha trêmula e esbranquiçada. Mas a abertura em seu ombro insistia em permanecer inchada e vermelha.

- O modo como tirou a flecha só rasgou mais a pele – Jyoti comentou ao limpar o corte com um tecido umedecido. Adaia soltou um grunhido e torceu o nariz ao olhar a ferida.

- Não tive muita escolha – resmungou.

- Eu sei – assegurou, encharcando o pano - Mas vai ter que ficar quieta se quiser que sare bem.

Encarou a parede sacolejante do comboio à sua frente. Do lado de fora alguém começara a cantar. Não entendia a letra, mas não precisava para saber que se tratava de uma canção triste.

- Não tem realmente mais notícias?

Jyoti a olhou de soslaio enquanto adicionava folhas e raízes em uma tigela e começava a esmagá-las.

- Tenho certeza que seu irmão está sendo bem tratado. Mas estamos muito longe para Manjusha alcançar o castelo.

- Manjusha... – pensou na garota pequena, com seus cabelos retos e negros sacudindo na altura do queixo, e se agarrou a idéia. Não queria falar ou pensar em Advi agora. Não na frente de uma estranha, não quando se sentia tão vulnerável - Shakti disse que ela era uma drathen... Não são aquelas histórias bobas sobre gente que vira bicho ou coisa assim, eu suponho.

- Drathen vem de Drath, o deus das criaturas, irmão gêmeo de Davra. Vocês que plantam não dão muita atenção a ele – alcançou uma pequena jarra de madeira e adicionou água à pasta esverdeada que se formava dentro da tigela – Quando os primeiros humanos foram criados, acreditavam que as criações de Drath e Davra eram inferiores e existiam para os servir. Drath não gostou da presunção e resolveu mostrar como eram tolos. Ele então tomou forma e caminhou entre os homens, seduzindo suas mulheres. – enfiou a mão em um saquinho de tecido e a tirou com um punhado de pó amarelo que deixou deslizar para o interior do preparado - Mas sua semente não podia formar humanos, então quando as mulheres davam à luz nasciam criaturas das mais variadas formas. Svart teve pena das mães chorosas, mas não podia desfazer o feito nem mudar a realidade, então permitiu que essas criaturas tomassem a forma humana também. O que muitos poderiam dizer que terminou piorando a situação, porque eles não sabiam mais qual a sua natureza e terminaram muitos por enlouquecer.

Lembrou-se das palavras ditas na tenda e em como a menina se encolhera como um cão mal-tratado.

- Não parece que isso os tornou mais carismáticos.

- Não – Jyoti interrompeu o preparo de ervas para olhá-la e pareceu genuinamente preocupada - Muitos enlouquecem entre uma natureza e outra. A maioria não tem sequer a chance, são mortos ou deixados pra trás ao primeiro sinal.

- Mas Manjusha não, apesar de parecer que a preferiam morta.

- Manjusha era o pássaro de Karre. Um falcão. – afundou dois dedos dentro da vasilha até que estivessem cobertos pela pasta agora amarelada e em seguida os deslizou sobre o ferimento aberto. Deixava uma sensação fria na pele, mas ardia, o que fez com que Adaia virasse o rosto na direção oposta pra que não percebesse seu incômodo.

 -Ele a encontrou por acaso, ferida, e tratou dela. Apegaram-se e... Você sabe como são crianças. Um dia resolveram brincar com a ave, ela se assustou e momentos depois nós tínhamos uma garotinha no lugar de um falcão cinzento. Só houve um acidente desde então, mas Manjusha é uma boa menina.

Adaia ficou aliviada ao escutar o som da vasilha de madeira sendo depositada contra o chão. Jyoti então começou a enfaixar seu ombro com tiras de tecido novas.

- Karre a protege dos outros, apesar de não poder afrontar Vidya e Shakti, e permite que ela tome a forma que preferir. Acho que não se sente verdadeira em nenhuma das duas.

- Doce demais para os lobos, feroz demais para os cães – comentou, repetindo as palavras de Mestre Anand na tarde em que decidiram sacrificar o híbrido de cão e lobo que ela e Tasnis haviam convencido um mercador do norte a lhes vender.

- É uma boa forma de resumir as coisas – Jyoti concordou, a ajudando a vestir a camisa. Em seguida recolheu suas coisas e deixou Adaia a sós com um breve desejo de boa noite.

Às vezes visitava Shakti para ajudá-la a consertar alguma roda ou renovar as ferraduras de um cavalo, ainda que sua contribuição se resumisse a lhe alcançar os instrumentos e escutar enquanto a mulher desatava a contar as memórias de seu marido. Era uma boa maneira de passar o tempo porque Shakti pouco lhe perguntava e suas histórias quase sempre a faziam rir. Muitas vezes se pegava antecipando as reações de Tasnis ao ouvir as coisas que teria para contar. Tentava não pensar em nada que tivesse ficado para trás, em Addaros, por mais que o olhar de desaprovação de Advi lhe seguisse toda vez que resolvia dar uma volta mais afastada do acampamento ou se banhar em um rio depois do sol se pôr. Estavam caminhando em direção à Cerusia, ou melhor, a Tasnis, e era ali que precisava focar suas energias se queria ter forçar para seguir em frente todos os dias. Evitava Vidya sempre que podia, o que não era muito difícil. A mulher costumava deixar o grupo e surgir dias depois, em silêncio, como se nada tivesse acontecido e se recolher ao seu comboio. Quando vista do lado de fora, era comum que tivesse os olhos perdidos, a cabeça voltada para o alto, como se enxergasse ou escutasse coisas que os outros não podiam. E se Adaia se permitisse acreditar no que diziam sobre ele, era bem capaz que fosse exatamente assim. Quando já podia mexer seu braço sem dor há alguns dias, decidiu que hora de partir. A paisagem parecia aumentar em árvores a cada dia que passava, com estas se tornando cada vez maiores e mais frondosas, formando bosques que se estendiam longamente nos campos, a perder de vista. Shakti lhe contou que uma estrada passava entre aquelas florestas e seguia até os portões de Cerusia, mas o clã era grande demais para usar as estradas, por isso seguiam por um caminho mais longo e tortuoso através das colinas. Eles eventualmente se aproximariam da capital, apesar de este não ser seu destino final, mas levariam semanas a mais que alguém seguindo pela estrada.
Assim que terminaram de montar o acampamento e as primeiras constelações já eram visíveis sobre as ondulações dos campos, caminhou para a tenda em que os guardiões se reuniam. Karre estava sentado em seu lugar habitual, com a longa trança negra adornada por peças de âmbar caindo sobre o ombro. Um falcão se empoleirava no outro ombro e recebia pedaços de carne crua.

- Pretendo partir ao amanhecer.

O homem acenou com a cabeça.

- Terá um cavalo e comida, como prometido. A situação em Addaros nos preocupou, serei sincero. Não pelo reino. Sabe que nosso povo não conhece fronteiras. Mas queremos garantir a sua chegada em segurança a capital, por isso mandaremos alguém com você.

Adaia o olhou em silêncio antes de responder.

- Um escudo e, ao mesmo tempo, olhos e ouvidos.

Karre sorriu e seu falcão piou.

- Jyoti irá com você.

Jyoti como sua protetora. Era difícil não pensar naquilo como uma piada. Adaia estava longe de ser uma das guerreiras do clã, mas seu treinamento e boa alimentação a renderam bons músculos, enquanto que Jyoti era pequena e graciosa como um gato. Já a vira dançando e tivera que concordar que se assemelhava a algo divino. Tinha certeza também que sua beleza delicada não passaria despercebida, juntamente com seus modos e sua incapacidade de falar qualquer coisa rude, o que a poria mais prontamente em uma corte do que em um campo de batalha. Jyoti deixara seu clã a alguns anos e desde então viajava com diferentes clãs, passando de um para outro durante as reuniões a cada três anos ou mais freqüentemente, se mantendo nos arredores de uma cidade até um novo clã se aproximar. Ali ela auxiliava os guardiões, tratava ferimentos, cuidava dos cavalos e transcrevia histórias. Podia ser muitas coisas, mas qualquer uma das aprendizes de Shakti parecia saber segurar uma lança melhor do que ela.

- Tem algo a dizer? – Karre franziu o cenho ao perceber sua hesitação.

- Ela não parece certa para a função.

- Temos certeza de que está pronta para a função vai receber. Agora vá despedir-se dos outros.

Não havia muitos de quem se despedir. Disse as eventuais palavras de gratidão e recebeu os desejos de uma boa viagem dos guerreiros com quem compartilhara histórias, de Karre e Shakti. A última lhe ofereceu uma espada usada que encontrara nos campos recentemente e consertara. Vidya felizmente não estava por perto para incomodá-la com suas histórias sobre os deuses, mesmo assim pediu a Karre que mencionasse sua gratidão por pura cortesia. Os raios de sol tímidos no horizonte e a brisa quente que brincou entre seus cabelos bagunçados pareciam chamá-la para a estrada. Ia finalmente fazer alguma coisa, reagir, não mais seguir o bando como um corcel preguiçoso e medroso demais para decidir seu próprio caminho. A égua que lhe deram era de um cinza bonito, e gostou de imaginar se Shada sentiria ciúmes ao vê-la afagar seu focinho. Jyoti não demorou a encontrá-la na borda do acampamento e, assim como ela, não parecia ter muitos dos quais se despedir. Partiram enquanto as últimas fogueiras eram apagadas. A andarilha era uma boa caçadora, sempre trazendo um faisão ou peixe, nunca voltando de mãos vazias. Adaia não tinha um arco ou besta à mão, o que limitava a ajuda que poderia oferecer. Não sabia como depenar um pombo, porque na volta de suas caçadas sempre entregava os animais na cozinha e esperava que o devolvessem fumegantes e temperados. Cuidava dos cavalos e tentava montar a fogueira o melhor que podia enquanto ela saia em busca da próxima refeição. Jyoti apenas ria da sua falta de jeito e comentava o quanto achava estranho que não soubesse fazer as coisas mais básicas. Quando explicava que sempre tinha quem o fizesse por ela, seu estranhamento não diminuía.

- Como podem liderar se não sabem fazer as coisas? – indagou enquanto picotava folhas cheirosas sobre a carne de faisão que pendia sobre a fogueira, atravessada por um galho seco.

- Somos donos das terras – respondeu tentando não deixar o incômodo transparecer em sua voz.

- Um guardião não é dono de nada. São pessoas que dão grandes contribuições ao clã e por isso são honradas. Mas todos os membros contribuem à sua maneira.

- E qual a sua contribuição? – chutou um pedaço de brasa de volta para dentro da fogueira - Você não parece uma guerreira e apesar de ser boa, nunca a vi sair junto com os caçadores.

- Meu povo tem muito conhecimento. Temos muitas histórias. – seus olhos castanhos brilhavam com excitação refletindo as chamas da fogueira - Quando morremos, elas morrem conosco. Vocês não, vocês tem livros. Mas não dão muita importância a eles.

- Você é uma escrivã – concluiu, erguendo as sobrancelhas.

- Eu quero ser uma guardiã – respondeu com um pouco de hesitação, mas completou com um sorriso - Registrar nossas lendas e histórias. Trazer o maior conhecimento possível ao meu povo.

- Não entendo porque a mandaram comigo. Shakti disse que não se importam com nossos problemas.

- E não nos importamos. Mas há algo maior caminhando em nossa direção. – desviou o olhar para as chamas brilhantes à sua frente, sorriu quando uma gota de gordura escorreu da carne dourada e foi recebida com um chiado pelo fogo – Está pronto.

A estrada se tornava mais movimentada à medida que se aproximavam da Cerusia. Carroças passavam lentamente, sôfregas sob o peso de incontáveis barris e cestos entupidos de grãos, frutos, carnes, vinhos ou cerveja dependendo da especialidade do carroceiro. Cavaleiros passavam, solitários, em duplas ou trios, carregando seus escudos adornados com o brasão de suas casas, o que garantia a Adaia uma enxurrada de perguntas sobre a história de cada uma delas por parte de Jyoti. Um rapaz com longos cabelos pretos passou na direção contrária, mal lhes dedicando um olhar, coberto por uma vistosa armadura azul escura e Adaia teve quase certeza de que se tratava de um elementarista caminhando em direção à sua mais recente e nobre missão. A paisagem também mudava rapidamente. Com rapidez os bosques davam origem a grandes descampados retos e verdes com pequenos casebres de madeira à distância. Várias estradas menores e menos movimentadas pareciam aparecer a cada curva para se juntar à principal e, com elas, cada vez mais pessoas. Seus trajes sujos de montaria faziam com que mal recebesse um olhar, e nem mesmo a inconfundível natureza de Jyoti parecia despertar curiosidade. Não era algo de se estranhar, pois Cerusia tinha muitas semelhanças com Addaros. Era uma das maiores cidades e estava próxima o suficiente de várias outras para que se tornasse um ponto de encontro de comerciantes, viajantes e afins. Além disso, era bastante bonita, pois o príncipe regente parecia ter um apreço inestimável pela beleza. Isso tudo era o que soubera através de Advi e Mestre Anand, mas mesmo assim precisou lembrar-se de fechar a boca quando Jyoti lhe apontou enormes torres brancas como pérolas no horizonte, refletindo tons claros de rosa nos lugares onde o sol as tocava.


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Notas finais do capítulo

Provavelmente Adaia e Jyoti estão difíceis de ler mas eu prometo tentar arrumar isso em capítulos seguintes, é apenas falta de jeito :c



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