Digimon - O Mundo Dos Sonhos escrita por Júnior Brito


Capítulo 2
Cap.2 - A avaliação, o desmaio e o pontapé inicial




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CAPÍTULO – II

A AVALIAÇÃO, O DESMAIO E O PONTAPÉ INICIAL

Acordei entusiasmado porque esse era o dia que minha mãe havia prometido me levar na autoescola. Umas semanas atrás, ela havia dito que ainda tinha medo de pegar o carro e ir para a rua, mesmo tendo a carteira de habilitação. Então resolveu investir em mim e na minha, como ela costuma dizer, “impulsividade juvenil”. Não havia nada humanamente possível que eu poderia querer mais do que a minha habilitação, naquele momento. Procurei agradá-la durante a manhã fazendo seu café e levando na cama, arrumando a casa, deixando-a num verdadeiro paraíso para ter certeza de que ela não desistiria da ideia na “hora H”. Finalmente chegou a hora de irmos e ela pediu para meu tio levar-nos à autoescola. Como ele é bem prestativo, nem pestanejou contra o pedido, talvez tenha até ficado feliz em saber que eu tiraria a minha carteira.

Meu tio Jairo parece uma versão masculina da minha mãe com alguns toques que o diferenciavam. Como exemplo, sua pele que é mais escura que a dela, ou o seu nariz avantajado que ocupa um grande espaço em seu rosto. Fora isso, ele também tem cabelos longos ( que param em seus ombros), um grande e amigável sorriso e é maior do que ela.

– Parabéns, Caíque! Pense nisso como uma caridade que você está fazendo ao carro da sua mãe. Porque se você não pegar, ela nunca vai tirar ele da garagem.

– Verdade tio, até hoje eu não entendo esse medo dela. Não vai se “defender” não mãe?

– Não preciso. Desde pequeno seu tio procura motivos pra tirar sarro da minha cara, então já estou acostumada.

– É até engraçado ver vocês dois assim, com essa implicância. Pensei que isso só acontecia comigo e com Lucas. Ou que parasse na infância...

– Que nada! Vocês homens nunca crescem. Parece que sentem prazer em abusar os irmãos mais novos não é, Jairo?

– Você sabe que é brincadeira. Não se brinca com medo de ninguém, cada um tem a sua própria dificuldade. Mas a sua cara quando eu falei isso foi ótima, Jane!

Medos são realmente difíceis de lidar. Não julgo as dificuldades de ninguém porque sei que as minhas podem não ser compreendidas no futuro. Um exemplo é o medo do meu sonho se tornar real... Dentro da possibilidade de existência do Mundo Digital, se realmente acontecesse de me tornar um dentre os escolhidos, significaria que um dos mundos ou os dois estariam em risco e EU teria a incumbência de deixar as coisas em ordem. Estaria literalmente carregando o mundo nas costas. O que é uma responsabilidade que amedrontaria até o mais corajoso dos homens. Tudo tem um ponto positivo e um negativo e por mais que a situação seja iluminada, haverá uma face escura por trás que pode vir a ofuscar esse brilho.

– Vamos filho, chegamos!

– Opa, tá bem. Tchau tio, obrigado pela carona!

– De nada, e cuidado com o testezinho que vão fazer agora com você.

– Teste?

– Sim. É um mini teste pelo computador. Vão passar umas questões pra você marcar e alguns sons pra escutar e identificar. Isso se for igual ao que eu fiz no ano passado.

– Certo tio, valeu a dica!

– Nada. Até mais, boa sorte aí no que vier. Ah, Jane! Que horas eu passo aqui pra pegar vocês?

– Não sei. Eu te ligo, fica atento no celular.

– Tá bem, Tchau.

– Tchau. Vamos entrando, moleque?

– Moleque? Eu tenho 18 anos e estou entrando numa autoescola, não me chame de moleque.

– Você sempre será moleque pra mim.

O lugar para mim parecia sensacional. A recepção cheia de cartazes de conscientização no trânsito, algumas reproduções de placas conhecidas, outras que eu nem sabia que existiam... Tinha uma que parecia um ovo rolando uma ladeira, então parei para imaginar o significado dela: “Perigo! Ovos gigantes soltos nessa direção.” Minha mãe foi resolver a papelada enquanto eu esperava sentado na recepção. O local estava vazio, mas mesmo assim senti um forte calafrio e aquela sensação de estar sendo observado tomou conta de cada célula do meu corpo em uma velocidade inimaginável. Virei para trás na esperança de ter alguém na rua olhando para dentro da autoescola, mas só havia pessoas caminhando para seus respectivos rumos, o que me causou uma grande inquietude. “O que estaria me causando essa sensação tão estranha? Será que eu comi alguma coisa estragada?” Meu raciocínio foi cortado por uma pergunta.

– Filho, seu CPF começa com 050, ou 040?

– 040.

– Certo.

Estava com algumas perguntas na cabeça, mas decidi ignorá-las para dar espaço à ansiedade de começar esse primeiro teste de admissão. A papelada estava resolvida no balcão então a recepcionista me encaminhou a uma sala cheia de computadores onde haviam já algumas pessoas sentadas fazendo o que deveria ser o mesmo teste que eu estava para começar.

– Vou te esperar aqui fora! Seu tio disse que assim que terminasse era pra ligar.

– Tudo bem, não deve demorar muito aqui não.

– Boa sorte! E não faça com pressa.

Okay mãe...

A recepcionista me apontou uma máquina e me deu as instruções para começar o teste. De início não parecia muito difícil. Algumas imagens para ligar a outras correspondentes, testes como quebra-cabeças e coisas para testar se você é doido ou não.

– Não se preocupe garoto. Se você não for doido, tira esses testes de letra! – Disse amigavelmente um homem alto, grisalho, lá para os seus 40 anos –.

– Ah, certo. Acho que se eu fosse doido, saberia. Então não vou ter problemas com isso. – Terminei com um sorriso de retribuição –.

Depois de passar por uma bateria de exames desses, um aviso abriu na tela pedindo para que eu colocasse os fones de ouvido já que os testes sonoros iriam começar. Notei que a maioria das pessoas que estavam na sala puseram os fones ao mesmo tempo em que eu, o que pareceu uma cena ensaiada. Já com os fones nos ouvidos, comecei clicando em play. Na minha tela nada aconteceu por um tempo desconfiável, mas as pessoas que estavam ao meu redor pareciam estar interagindo ainda com o programa e clicavam o mouse como se estivessem ainda passando as questões da prova. Fiquei realmente intrigado com a situação então decidi levantar para pedir ajuda à recepcionista, mas logo antes de tirar os fones do ouvido, um zumbido muito forte começou a ecoar diretamente para dentro da minha cabeça. Era alto e se parecia com um som de dados sendo computados. Era como um tipo de interferência.

O chiado não parava, minha cabeça começava a latejar, provocando uma dor excruciante que se espalhava por todo o crânio. Olhei ao redor, a visão estava turva, as outras pessoas não pareciam ter os mesmos problemas que eu. Ele ficava cada vez mais alto e constante, eu começava a perder a consciência de mim quando a pessoa que sentava do meu lado notou o que estava acontecendo. Eu não conseguiria aguentar aquilo por mais tempo então, em desespero, gritei:

– O BARULHOOOOOOOOO!!!

Todos olharam para mim como se eu fosse louco, ou estivesse querendo chamar atenção. Mas um homem que estava sentado na cadeira atrás da minha, notou que eu estava tremendo e que algo sério estava para acontecer.

– O garoto! – Gritou o mesmo homem que havia falado comigo antes – Ajudem o garoto, o nariz dele tá sangrando! Rápido, você ai! Me ajuda a carregar ele. Vamos colocar ele deitado na recepção.

– Oh, meu Deus! O que está acontecendo com meu filho? – Minha mãe estava me esperando na recepção e foi a primeira pessoa a ver o meu estado do lado de fora da sala. –

– Não sei, senhora. Ele estava fazendo a avaliação como todo mundo e de repente começou a revirar o olho e a sangrar pelo nariz. Ele tem epilepsia ou algo do tipo?

– Se tivesse eu saberia. Ele nunca teve nenhum ataque desses. Filho, você está bem?

Ainda me sentia um pouco desacordado, mas conseguia ouvir e entender a maioria das coisas que se passavam ao meu redor. Notei as luzes fortes e amarelas do teto da recepção. Minha mãe estava muito preocupada comigo, minha cabeça estava em seu colo. Ela segurava o choro para não mostrar desespero. Sempre querendo se mostrar muito forte, desde quando eu era pequeno e tínhamos problemas familiares relacionados ao meu pai, seu ex-marido.

Eu escutava muitas vozes ao mesmo tempo, murmurando curiosos com o que estava acontecendo, a voz da minha mãe se revelava maior do que qualquer outra. Talvez porque eu quisesse escutá-la mais do que qualquer coisa naquele momento. O único problema era que aquele som estranho ainda ecoava em minha mente como se estivesse se alojando, ou procurando uma forma de sair de lá, sem muito sucesso. Foi realmente desesperador, mas tive a ajuda das pessoas da sala onde eu estava e, logo após o acontecido, fui ao hospital com minha mãe e o médico receitou alguns remédios para tomar em casa e repouso por dois dias.

– Agora vá deitar e descansar. Enquanto a gente não tem certeza do que isso possa ser, é melhor você ficar em repouso.

– Tá bem. Preciso mesmo colocar os pensamentos no lugar... Aquilo lá foi loucura!

– Mas você já está bem agora?

– Tô sim, mãe. Foi só aquele momento mesmo. Não se preocupe de mais não.

– Qualquer coisa me chama, viu?

– Okay.

Sentia-me muito assustado com tudo aquilo: as dores, os olhos revirando, o sangue pelo nariz... Era tudo novidade pra mim, que no máximo tive rinite alérgica e uma pedra nos rins. Não fazia ideia de como um simples som poderia afetar a minha percepção de ambiente e levar minha lucidez embora tão facilmente. Eu já estava em casa, mas não conseguia parar de pensar naquela sequência de sons pavorosos nem em todos aqueles sintomas que se manifestavam em mim, um após o outro, como num efeito dominó.

Estava tentando ligar tudo aquilo a qualquer tipo de ansiedade para passar naquela prova ou inquietação por causa do momento, mas bem como não conseguia achar ligações para isso, também não encontrava o mínimo de explicação lógica para aquele som ter aparecido somente no computador no qual eu estava respondendo o meu teste. Se continuasse pensando muito naquilo, minha dor poderia ter voltado ou poderia enlouquecer tentando achar uma explicação. Por sorte, minha mãe entrou no quarto para me atualizar sobre como ficariam as coisas na autoescola. Minha mãe é muito prestativa, preocupada e doce. Eu tenho muita sorte de ter uma mãe assim. Procuro fazer de tudo pra não desapontá-la. Ela apareceu de novo no quarto.

– Filho, liguei pra autoescola e a recepcionista falou que vai marcar um outro dia pra você ir na próxima semana.

– Hum, tá bem. E conversou com ela sobre a possibilidade de não precisar fazer as aulas práticas?

– Falei sim, ela disse que tem que ter a avaliação final com o professor, mas se você já souber dirigir, pode cancelar essas aulas que fica mais rápido e mais barato até.

– Poxa, pelo menos uma boa notícia. Obrigado por tudo hoje mãe.

– De nada meu filho. Não tinha nem porque agradecer, sou sua mãe. É isso que fazemos. E você? Não sentiu mais nada não, né?

– Não mãe, pode ficar tranquila. Tá tudo bem comigo já.

– Certo. Qualquer coisa, me chame!

– Tudo bem.

Não teve jeito. Assim que ela saiu, todo aquele barulho e a as partes das cenas que eu consegui pegar enquanto meio acordado estavam de volta flutuando bem na minha frente. Era tudo muito estranho e começava a me intrigar. Porque um barulho que parecia com dados sendo computados? Vinha de dentro do computador? Era algum tipo de vírus? O que eu queria realmente era que fosse alguma tentativa de contato digital. Sabia que era besteira e que, devido à situação, não deveria ficar pensando nessas bobagens. Mas é inevitável tentar ligar acontecimentos estranhos relacionados a computadores diretamente com a minha vontade de querer encontrar provas que me dessem esperanças da real existência do Mundo Digital. Eu continuei pensando no que aconteceu comigo e acabei pegando no sono. Fui acordado algumas horas mais tarde por Lucas.

– Ike? Acorda Ike...

– Hum? Lucas? – Desentoei com a voz esganiçada, de quem acabe de acordar. -

– Sim.

– O que foi, tudo bem?

– Tá, comigo tá tudo bem. Quando eu voltei da escola você já tava dormindo, então esperei você acordar pra saber como que tava tudo.

– Ah, você podia ter me acordado... Eu só peguei no sono porque tava sem nada pra fazer. Eu tô bem, Lu. Na hora eu passei mal, mas agora tô bem.

– Hm, e você lembra de alguma coisa que aconteceu lá? Minha mãe disse que você desmaiou...

– Na verdade eu não desmaiei completamente. Tava mais pra meio desacordado. Eu lembro mais das coisas que chamaram minha atenção.

– Como assim?

– Tipo, eu lembro exatamente como era o som que tava saindo do fone, lembro de cair da cadeira porque tô sentido uma dor muito forte aqui no braço, lembro do barulho que o povo tava fazendo na sala...

– Sala? Que sala?

– É porque a prova foi em outra sala. Não respondia na recepção nem nada assim. Foi pelo PC, por isso os fones.

– Ah, beleza. Continue...

– Acho que só isso. – Pensei por uns instantes. – Ah não! Quando fui chegando na recepção, eu tava olhando pra cima, e eu lembro que as luzes da sala estavam ligadas e eram bem fortes! Cheguei a fechar os olhos depois de um tempo olhando pra elas, porque já tava incomodando a visão. Eram duas lâmpadas bem amarelas. Parece que aquele povo de lá não conhece a tecnologia “super inovadora” das lâmpadas fluorescentes.

– Só tu pra fazer piada com uma cena dessas.

– Ô! Rir pra não chorar.

– Que bom, então. Já que tá tudo bem, eu vou voltar pro DMO porque tô em party lá.

– Tá bem. Valeu por se preocupar.

Meu irmão é muito amigo. Se eu não estou bem, parece que o afeta do mesmo jeito. Às vezes mesmo não estando muito bem, eu forço um pouco as aparências pra poder deixá-lo tranquilo. Ele gosta de ver todo mundo bem, o que é perfeitamente compreensível. O tempo foi passando e chegou a noite. Lucas foi dormir. Dividimos o quarto, ele dorme na parte de baixo do beliche e eu na de cima, ainda tem uma cama extra no quarto pra quando minha avó vai passar um tempo com a gente. Fora a cômoda que fica ao lado do beliche e a estante de livros no canto do quarto. Só restávamos eu e minha mãe acordados.

– Filho, você está bem mesmo, né?

– Tô sim, mãe. Pode dormir tranquila. Qualquer coisa, eu bato na porta do seu quarto e te chamo. Pode ser?

– Tudo bem. Preciso dormir mesmo... Amanhã vai ser um dia cheio porque Léo vai estar aqui na cidade e estamos programando uma viagem juntos.

– Nossa, que bom, mãe! Vai ser ótimo pra você espairecer um pouco e esquecer por um tempinho os problemas. Boa noite.

– Boa noite, filho. Durma bem, e qualquer coisa me chame!

– Certo, mãe. Vou só tomar um banho e já tô indo dormir também.

Minha mãe é divorciada do meu pai há uns anos e hoje, tem um namorado. O nome dele é Leonardo, mas geralmente o chamamos de Léo. Tudo isso é um pouco complicado para mim só que não vou entrar nesse tipo de assunto nem aqui, nem agora. Eu era então o único acordado na casa. Fui tomar outro banho antes de dormir, pois estava fazendo muito calor e pude me dar ao luxo de demorar um pouco mais do que de costume para poder pensar um pouco mais no acontecido. Toda aquela cena na autoescola era classificada na pasta de eventos incomuns da minha vida.

Já haviam acontecido coisas estranhas comigo como ver um vulto passando quando sozinho em casa ou uma luz se apagar sozinha, mas isso é sempre facilmente atribuído à situação em si, estado emocional e coisas do tipo. Nessa situação, não havia como ter imaginado um som estranho ou causar nenhum daqueles efeitos em mim. Então o que estava acontecendo comigo? Eu estava adoecendo e aqueles eram os primeiros sintomas? Eu fiquei nervoso com o teste? A minha única certeza era que não foi normal.

Terminei o banho e notei que não tinha pego uma camisa então fui ao fundo da casa para pegar uma e estender a minha toalha. Como não tinha ninguém acordado, eu abri bastante a porta para não ter chances de o vento acabar fechando-a. Como havia dito, a noite estava quente, mas mesmo assim, senti uma corrente de ar frio passando ao meu redor.

– Nossa. A noite ficou fria do nada, ou eu me esqueci de enxugar as costas?

BAAAAAAAAAAAAAM!

Foi o som ensurdecedor que a porta fez ao bater com uma força impossível de se atribuir ao vento. Olhei assustado para trás e tentei forçar a maçaneta para entrar em casa. Sabia que era o único acordado, mas não poderia simplesmente dormir do lado de fora. Então, comecei a chamar o pessoal da casa.

–Mãaaaaae! Lucaaaaaas! Ooooooooooi! Alguém aí tá me escutando?!?! Lucaaaaaaas!! Mãaaaaaaae! Droga, esse pessoal dorme como uma pedra. Vou ver se tem alguma janela aberta do lado da casa.

Não tive muita sorte, estavam todas fechadas e trancadas por dentro com fechaduras e trancas extras depois que fomos assaltados uma primeira e única vez. Voltei para a porta e tentei forçar mais um pouco, batendo para arriscar alguém escutar. Não tive muito sucesso também, e comecei a notar que o frio aumentava cada vez mais e numa velocidade incrível.

– Que azar. E se eu não conseguir acordar alguém? Que merda! Bem que eu podia ter colocado a chave desse lado da porta depois que eu passei.

Dei as costas para a porta e fui tentar prestar atenção no céu e no ambiente ao meu redor para ver se notava alguma ferramenta ao meu redor que pudesse me ajudar a entrar em casa. Era uma noite estrelada com uma lua bem cheia que me ajudava a ver o fundo da casa com mais nitidez. O fundo era bem grande, um banheiro separado da casa, uma área cimentada e outra área de terra com muitas plantas que a minha avó deixava lá.

Estava bem escuro e a única luz que me alcançava era da lua já que a minha casa era rodeada de outras casas tanto dos lados, quanto ao fundo. Notei que a já escassa luz que me ajudava a não pisar no meu próprio pé estava se esvaindo. Quando olhei para cima, notei que o céu se enchia de algo que pareciam nuvens ou algum tipo de neblina. O frio aumentava cada vez mais e se eu não estivesse enlouquecendo, a neblina estava descendo do céu e vindo em direção à minha casa. Meu coração começou a palpitar mais forte e minhas pálpebras ficaram duas vezes mais abertas para não tirar a atenção do que estava começando a acontecer.

Eu não estava enlouquecendo ou nada do tipo, aquela massa de escuridão se movimentava, como se viva, e tomava o rumo da minha casa. Para ser mais exato, do fundo dela. Eu me voltei à porta e comecei a bater com mais força ainda, tentando empurrar e chutar o mais forte que podia. Eu empurrava e olhava para trás e a cada vez que fazia isso, aquele conglomerado de fumaça estava mais perto de mim e maior que da última vez que havia visto. Estava tudo ficando cada vez mais escuro, mais frio e mesmo dentro daquela atmosfera, meu corpo transpirava como se estivesse preso numa sauna e tremia como o de um inocente esperando a forca. O medo tomava conta do meu ser acompanhado de fortes câimbras nos braços causadas pelas batidas constantes e arritmadas que eu produzia na porta dos fundos.

Percebi que ninguém me escutaria, então decidi me virar para ver o que me esperava. Ao meu redor, tudo escuro e esfumaçado. Acima de mim, estava novamente a lua cheia acompanhada pelas estrelas. Em minha frente, o inconcebível: algo como uma nuvem escura pairava à minha frente como se me observasse. Não tinha como me ver, mas me conhecendo, sei que estava pálido e prestes a desmaiar naquele momento.

– O que é isso? – Perguntei ao vento, com certa dificuldade. -

Como se não bastasse, duas esferas amareladas brotaram do centro daquele monte de fumaça disforme e algo como um sorriso maligno foi se abrindo de um lado a outro do que parecia estar se tornando um rosto. Enquanto notava a neblina se aglomerar e se tornar mais densa ao redor daquelas esferas amarelas que orbitavam a nuvem bem à minha frente, me veio um relance da cena que lembrava na recepção da autoescola. Com o resto de força que me restava, consegui pensar alto.

–E-e-eram olhos. Eram os seus olhos n-n-no teto da autoescola.

WAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAAAAAAAAAA!!!!

Uma risada mais gélida que a própria noite agora ressoava em meus ouvidos e o calafrio que ela provocara, tomou conta de todo o meu corpo. Eu nem tentei acreditar no que estava vendo, simplesmente corri. O fundo era grande, então tinha espaço o suficiente para correr. O fato de haver muitas plantas me dava uma gama de locais para esconder-me. Eu tropeçava no meu medo, caía e levantava apoiado na simples vontade de viver. Olhava para trás e a nuvem maligna me perseguia, espalhando seu riso estrondoso e maledicente por todo o local.

– O que é isso? – Mesmo que quisesse falar outra coisa, eram as únicas palavras que conseguia proferir -.

Quanto mais eu tentava me afastar daquele ser medonho, mais encurralado me sentia e a cada passo, notava que se esvaiam inúmeras pulsações desesperadas do meu coração esforçando-se para trabalhar na fuga. Enfim cheguei a um emanharado de plantas da minha avó e me joguei por entre elas. Sentia-me um pouco aliviado, tinha a sensação de ter despistado ele. Tive tempo para pensar no que estava acontecendo e as teorias iam de demônios do submundo a estar alucinando por causa do remédio. Respirava ofegante, tentando recuperar o fôlego perdido na corrida.

Passaram-se uns dois minutos sem sinal algum do que, naquele momento, podia chamar de criatura. Já começava a me sentir aliviado quando, inexplicavelmente um clarão imenso tomou conta dos meus olhos e algo como uma chama, ou uma esfera em chamas tomou rumo em minha direção. A chama atingira o topo da planta na qual eu estava me escondendo o que iluminou um pouco mais ao meu redor.

A criatura parecia ter finalizado algo como uma metamorfose e estava vindo de encontro a mim. Quanto mais perto chegava de mim, melhor eu enxergava sua formação. Sua silhueta era esquelética e segurava algo como uma lança ou um cajado. Era muito alto, então mesmo quando bem perto das chamas causadas pela própria criatura, não conseguia enxergar seu rosto, mas observei que usava botas e calça pretas e que seu corpo não era esquelético e sim, um verdadeiro esqueleto. No topo do que segurava, havia uma esfera amarela tão brilhante quanto seus olhos.

– O...o q... o q... o que você... – Por mais que tentasse dizer algo, minha natureza repelia essa vontade a mando de cada célula minha-.

Eu já não sentia o meu corpo. A adrenalina da corrida havia parado de correr nas veias há muito, então começava a sentir as dores dos chutes que dera na porta e dos tropeços e arranhões que colecionei em meio à fuga. Não poderia fazer nada mais além de esperar para ver o que o esqueleto gigante faria comigo.

A criatura então se agachou um pouco e aproximou a esfera brilhante do seu rosto. Não sabia se por causa de tudo o que eu tinha passado aquela noite, acabara enlouquecendo ou por achar que morreria ali, tinha que ao menos realizar o meu maior sonho, mas constatei com toda a minha certeza que era um SkullSatamon! Eu havia olhado e analisado ele várias e várias vezes enquanto ele parecia fazer o mesmo comigo. Todos os detalhes pretos, o esqueleto avermelhado, o cajado na mão e a presença assombrosa... Tudo me ajudava a concretizar a certeza de que meus olhos alcançavam um legítimo Digimon.

Ele se levantou e começou a aproximar-se de mim, de forma hostil. Sentia o medo de uma presa e a sua imponência como predador. Ele ia chegando mais perto, e a cada passo que dava, o fedor de enxofre que começava a emanar dele se tornava mais intoxicante. Talvez a máxima que prega que o homem só tem medo do desconhecido seja verdade. Depois de descobrir que o meu perseguidor era um Digimon, e tentar conceber como real aquela existência bem diante do meu nariz, acredito que a minha vontade de viver falou mais alto. Meu peito encheu-se de coragem como se toda a adrenalina que havia produzido tivesse se concentrado num só ponto do meu corpo e precisasse externá-la freneticamente. Sem pensar duas vezes, respirei o mais fundo que pude e gritei:

– SkullSatamooooooooon!!!! O QUE VOCÊ QUEEEEEEEEEEER!?!?!?!

O SkullSatamon parou de andar em minha direção e se mostrou menos hostil. Posso afirmar isso porque a minha sensação de encurralado foi se esvaindo e dando lugar a um sentimento encorajador. Não sei se estava embebido de orgulho por ter enfrentado um Digimon quatro vezes maior do que eu ou se ele realmente perdera o interesse em mim.

Ele apontou seus olhos que mais pareciam faróis diretamente para mim e começou a falar. Pelo menos foi o que deduzi levando em consideração que sua boca se mexia, mas no lugar de palavras, ele produzia um som muito semelhante ao que escutei na autoescola e que me causava uma dor de cabeça tão grande quanto a anterior. Eu pus as mãos nos ouvidos e abaixei a cabeça, inutilmente. A dor era forte e o som passava sem grandes obstáculos diretamente para mim. Sem mais nem menos, ele parou de produzir aquele som infernal e voltou a se transformar na nuvem densa e escura que era antes deixando seu sorriso malicioso ecoando no ar daquela noite estranha, mortal e inesquecível.

Fui em direção à porta dos fundos que estava convenientemente aberta. Peguei novamente minha toalha, entrei em casa, tranquei a porta dos fundos. Escorei-me na porta e escorreguei as costas até sentar no chão. Só havia uma única pergunta em minha mente depois daquele momento traumático e surreal: “O que foi isso?”.

– O que foi isso? O que foi isso? O que foi isso? – Não conseguia parar de repetir para mim mesmo, em voz alta enquanto estava sentado de cabeça baixa, tentando absorver os últimos 40 minutos da minha vida. –

– Não pode ser, não é real! Isso é impossível! Por mais que eu queira, eu sei que é impossível!

Eu tive um dia cheio, desmaiei, fui pro hospital, tomei remédios... Fui perseguido por UMA DROGA DE UM SKULLSATAMON DE VERDADE!!!! Calma, Caíque. Calma, você vai acabar acordando sua mãe ou seu irmão. Você não quer que te vejam assim. Assim? Eu tô machucado de verdade, tô sem fôlego e meu cabelo tá chamuscado! Não dá pra imaginar arranhões nem cheiro de cabelo queimado.

Tive a ideia de tirar uma foto minha com o meu celular da forma que eu estava. Se fosse real, no outro dia eu veria a foto e teria certeza absoluta do que vi. Era coisa demais para um único dia e não queria tomar nenhuma decisão precipitada. Se fosse verdade, meu maior sonho teria vindo até mim em forma de pesadelo para me matar e se fosse imaginação minha, eu precisaria parar com os remédios que foram receitados para mim e procurar ajuda psiquiátrica. Peguei o celular, tirei a foto e voltei para o banho.

– Pronto! Agora isso tá guardado no meu celular. Caramba... Se for mesmo verdade, eu fico me perguntando por que um SkullSatamon viria tentar me matar. E porque desistiu e foi embora? Isso significa que eu sou um Tamer? Será que ele é meu Digimon? Ou será que tudo não passou de uma enorme alucinação? Ai, essa topada que eu tomei lá fora doeu pra caramba...

Fui dormir esperando ter respostas na manhã seguinte. Estava muito enganado. Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi ir ao fundo da casa ver como estavam as plantas. Não sabia se ficava com raiva, aliviado ou me internava num hospital psiquiátrico, mas estavam todas perfeitamente intactas.

Não havia sinal de nada queimado, não tinha nada destruído, sequer uma única pegada no chão do fundo. Eu estava ficando confuso. Não é tão difícil separar o real do imaginário e meus machucados eram bem reais. Eu estava com alguns arranhões nos joelhos, um bem grande no braço direito que ia do ombro até o cotovelo e um triplo nas costas que imagino eu, terem sido feitos por algum galho quebrado da planta onde havia me escondido. E ainda tinha a foto que eu tirei com o cabelo ainda chamuscado, saindo fumaça de uma parte dele.

– Lucas! – Gritei de lá do fundo da casa. –

– Oooooi?!

– Cê traz meu celular aqui, fazendo o favor?

– Tá onde?

– Na cômoda do quarto, do lado do beliche!

– Tá, já trago.

Eu pensava comigo mesmo que era impossível ter todos aqueles machucados ainda no meu corpo e não haver sinal de movimento no quintal durante a noite.

– Aqui, Binho.

– Brigado, Lu.

– Nada. Ah, Ike! Eu consegui um Digimon melhor. Choquei um Impmon e me disseram que ele vai pra SkullSatamon, então joguei o Kunemon fora.

– O que? SkullSatamon? Onde? CORRE!

– Caíque! Tá ficando maluco?

– Nossa, não fala mais pra mim desse Digimon não, Lucas. Depois da noite que eu tive...

– Ahn? Como assim? E falando nisso, quando eu fui dormir você não tinha nada e agora ta todo machucado aí. O que aconteceu?

– Er... É que... De noite... Quando eu vim estender a toalha... Eu escorreguei em algum lixo que Preta derrubou aqui e acabei caindo naqueles galhos secos que ficam juntos ali no canto pra incinerar.

– Hm... Tá bem então. Vai jogar hoje? Cê podia me ajudar a subir o nível do Impmon!

– NÃO! Quer dizer... Claro, Lu. Deixa só eu terminar umas coisas aqui e tomar café que já vou te ajudar.

– Vou voltar pro PC então.

– Foi quase. Eu não posso simplesmente enlouquecer desse jeito. A foto! Pera... O QUEEEEEEEEE? VAZIO?? Mas é impossível! Eu tirei a foto ontem. Ela tava aqui, eu vi salva e ainda olhei de novo antes de dormir. Ela tem que tá aqui em algum lugar.

Eu procurei a foto pelo celular todo, revirei a memória dele de cabeça para baixo. Pluguei no computador e fiz uma varredura pelo nome do arquivo: “ou_fumei_maconha_ou_vi_um_digimon.jpg”. Não encontrei nada. Não poderia ter sido mentira porque mesmo não tendo provas no ambiente ou tecnológicas, ninguém poderia dizer que os meus arranhões eram falsos. Pensei na possibilidade de ter imaginado toda a cena e ter corrido e me machucado mesmo assim. Só que a foto ter sumido do meu celular me deixou ainda em cima do muro. Eu havia tirado aquela foto sem sombra de dúvidas, e ela não estava mais lá.

Alguém excluiu, então aconteceu. O meu “encontro” com um SkullSatamon não sairia da minha cabeça em nenhuma circunstância e ajudar Lucas a subir o nível do Impmon dele não me ajudava em nada. Decidi parar o jogo um pouco e ir estudar para a avaliação da autoescola. Fiz bem, já que minha mãe havia acordado e recrutado quem não estivesse fazendo nada produtivo para ajudá-la a arrumar a casa.

Sentei no sofá para estudar e Preta estava bem aos meus pés, pondo o focinho no meu colo para poder alisá-la. Brinquei um pouco com ela e continuei estudando. Os próximos cinco dias seriam exatamente iguais: acordando, estudando para a avaliação, jogando um pouco com Lucas e Ivan (que aparecia às vezes).

Jonas foi dormir lá dois dias depois do acontecido, mas decidi não falar nada com ele, acharia que eu estou levando a sério demais o gosto por Digimon e listaria umas 17 doenças psicológicas que eu poderia estar desenvolvendo. Ele ficou lá por um dia, ia ficar mais só que havia marcado um encontro ou algo assim com uns amigos e não queria chegar tarde em casa. Quando Jonas saiu já era noite, mas não era muito tarde. Aproveitei para assistir uns seriados e tentar tirar da minha cabeça aquele encontro com o Digimon maldito. Peguei no sono com fone e tudo, quando acordei já era manhã.

– Ai, droga. Tô todo quebrado. Dormi por cima de tudo que tava aqui na cama. Ô MÃAAE!

– Bom, dia filho.

– Bom dia. Ai. Mãe, você não viu quando eu fui dormir não?

– Não, por quê?

– Dormi com notebook no colo, fone no ouvido e por cima de tudo que tava na cama.

– Nossa, filho. Você tava cansado mesmo né?

– Acho que sim. Onde tá o Mertiolate?

– Ali na estante. Se machucou dormindo?

– Não... Foi ontem... er... jogando... bola!

– Mas você nem gosta de futebol...

– Agora gosto menos ainda.

Ela me entregou o remédio que me ajudaria a apagar as últimas marcas da minha noite traumática. Passei pela minha rotina diária de tomar banho, café e escovar os dentes então sentei no sofá para estudar um pouco mais para a avaliação da autoescola. Isso me ajudaria a reprimir todas as teorias mirabolantes que eu tentava criar para explicar meu “visitante incomum”. Minha concentração foi completamente quebrada quando Jonas aparece e começa a tocar a campainha freneticamente e gritar meu nome para abrir o portão.

– Ikeeee!!! Caíque!!!! Caíque, abre aqui!! Preciso falar contigo URGENTE!

– Pera, calma. Que pressa é essa em?

– Abre logo que eu te digo.

– La ele!

– O portão cara, abre logo aqui.

– Tá bom, já vai. Deixa só eu achar a chave.

– Rápido!

– Pronto, aberto. O que é que cê quer? Seja rápido, eu tô estudando pra avaliação da autoescola.

– Eu vi um Digimon.










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