Heart Of Sword escrita por Jodie


Capítulo 1
Batom




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O céu salpicava alguns poucos raios de luz remanescentes do crepúsculo, enquanto o sol se punha de mais um dia excessivamente quente. As cortesãs começavam a se preparar para a noite, pondo belas vestes que mais revelavam pele do que possuíam tecido. Seus rostos, cobertos por uma película delicada de maquiagem, apenas eram um acessório a compor o visual. Seus corpos, recheados de curvas sensuais definitivamente eram a atração principal, tanto do conjunto quanto da noite. Os tempos estavam difíceis, e quanto mais obstáculos os homens sofriam durante as agonizantes últimas décadas da era Edo, mais eles precisavam do conforto de uma cama — que não a deles, nem de suas esposas. Não, deitavam nos leitos calorosos e sem vergonhas de belíssimas mulheres, que fariam tudo que pedissem, para, no final do dia, se recostarem em casa, num quarto separado do de suas companheiras. Estes homens, que pediam por aquilo que pagavam, que usavam e abusavam do produto pelo qual deram seu precioso dinheiro durante a noite, e, principalmente, não gostariam de se ocupar de qualquer descuido que ocorresse. De um desses descuidos nasceu Shiori, uma pequena menina que estava condenada a ter o mesmo destino de sua mãe — até aquela noite.

— Okaa-san, onde fico hoje? — Perguntei, sentada na beirada janela, enquanto observava minha mãe fazer diversas poses repetidas de frente para a faixa de espelho que possuía no quarto. O quarto era pequeno, e, ao lado da cama perfeitamente enfeitada com lindos, porém, baratos lençóis vermelhos, geralmente descansava um pequeno bolo de cobertores sobre o qual eu dormia. Nesse momento, obviamente, já estavam guardados no pequeno armário que se encontrava ao lado da janela.

— Shiori, minha filha, não faço ideia. Você não pode dar uma volta na floresta, ou ir se divertir na cozinha? — Ela me respondeu, enquanto utilizava a ponta do indicador para aperfeiçoar o batom já perfeitamente delineado sobre seus lábios. O quarto quadrado, com nenhum ornamento sobre as paredes e o chão de tábua corrida, que nada mais tinha que uma cama na parede norte, o espelho pregado à lateral oeste ao lado da porta de entrada, um vazio desconfortante no extremo leste e uma janela de proporções generosas na face restante já estava começando a me cansar. Estava me sentindo claustrofóbica, e nem estar parte dentro parte fora, da forma que descansava na janela, ah, nem isso poderia acabar com essa sensação.

Desci para o interior, e me dirigi até o lado de minha mãe, para observar-me no espelho junto à ela. Meu cabelo castanho e meus olhos cor de mel quase me afastavam completamente da aparência de minha mãe, com seus belos cabelos negros como ônix que descansavam confortavelmente sobre seus ombros, e seus olhos de um castanho maravilhoso, que reluzia como uma bela pedra preciosa em contraste com sua pele sedosa e marmórea. Ela definitivamente conquistava a maior parte dos homens que vinham à casa.

Aos meus treze anos de idade, eu me perguntava se aquele seria mesmo meu futuro. Eu já possuía alguma noção — por menor que fosse — de tudo que acontecia ali naqueles cômodos, e não tinha certeza se eu realmente desejava aquilo para o resto de meus dias. Meu aniversário de 14 anos se aproximava, e isto me deixava apreensiva.

Percebendo algo de diferente no meu semblante, minha mãe pôs suas mãos sobre meus ombros, enquanto pousava delicadamente seu rosto ao lado do meu. Ela sorriu, e piscou um de seus olhos. Um calor invadiu meu peito, e se espalhou por todo o meu corpo como uma alegria extasiante. Desde pequena, Hoshi, minha querida mãe sempre fora carinhosa e cuidava muito bem de mim. Apesar de sua profissão, apesar do fato que eu seria obrigada a ser uma gueixa porque ela era minha mãe, eu nunca, em momento algum, quis ter outra pessoa como minha okaa-san. Ela era uma ótima pessoa e eu a amava muito. E acredito que ela também me amava.

— Pequena Shiori-chan, o que te aflige? — Ela perguntou, com sua voz clara e aveludada.

— Eu... Você acha que eu ficarei bem arrumada como a senhora? — Falei atropelando as sílabas, com um rubor característico em meu rosto.

Ela riu, e andou até o armário, tirando dali o pequeno porta-jóias onde guardava sua maquiagem. Untou seu dedo com um pouco de uma mistura vermelha, que logo passou em minha boca. Virou cuidadosamente meu rosto para o espelho e pude ver minha face, me assustando. Estava praticamente parecendo uma mulher.

— Você ficará linda, minha querida. — Ela disse, abraçando-me. O calor de seu abraço era tão reconfortante.

De repente, pudemos ouvir um burburinho que era uma cacofonia de vozes débeis de sakê, copos quebrando e vozes femininas gritando. Porém, de toda aquela barulheira, pudemos distinguir o nome “Hoshi” ser gritado, e, nesse exato momento, o semblante de minha mãe se tornou sério. Ela agarrou meu braço e arrastou-me até o armário, onde me enfiou e fechou a porta.

— Eu te amo. — Ela sussurrou por entre os feixes da porta do armário, enquanto se virou para a porta.

Eu tentaria reagir, se não fosse surpreendida pela visão de dois rapazes entrando no quarto empunhando facas. Ambos tinham os rostos corados pela bebida, e estavam encarando minha mãe fixamente. Ela estava com um pé para trás, e seu corpo estava completamente tenso.

— Você não tem bom senso nenhum, não é, sua hinin? — Um dos homens perguntou, dando um passo para frente.

— Foi pedir dinheiro ao Sakamoto, bem onde ele mora!

— Vou deixar algo bem claro... — O outro homem disse. — Se não fosse a pedido dele, nós iríamos te torturar muito antes de finalmente lhe dar a dádiva da morte, mas, agora, faremos o seguinte... — Ele levantou a faca.

— O q-que...? — Hoshi perguntou, apreensiva.

— Vamos lhe matar, e levar sua filha para ser nossa escrava. Soa justo o bastante para você? — ele terminou, soltando uma risada perturbadora.

Os segundos pareceram uma eternidade, até que um deles andou para frente e agarrou o braço de minha mãe, lançando-a contra o armário onde eu me escondia. Ela ficou de frente para mim, e pude ver seu indicador — que, poucos minutos antes, apenas consertava o batom — sobre seus lábios em sinal de silêncio, para que eu não me fizesse barulho algum. Isto era quase impossível, e se tornou mais difícil ainda quando vi a pequena ponta da longa faca saindo de seu tórax, permitindo que um fio de sangue começasse a se tornar cada vez mais grosso enquanto descia por seu corpo.

Ela foi puxada bruscamente para trás, e atirada no chão em frente à porta do quarto. Isto causou uma comoção geral, com diversos gritos e desmaios ao longo do corredor, onde estavam os telespectadores e telespectadoras ávidos da cena que ali se desenrolava. As lágrimas escorriam desesperadamente por meu rosto, que possuía a boca coberta por mãos trêmulas e forçadas. Eu me esforcei para não gritar, não fazer som algum, mas aquilo foi em vão.

Os dois assassinos começaram a revirar o quarto, procurando por mim. Como não havia praticamente porcaria nenhuma dentro daquele cubículo, quando abriram o armário acharam uma menina magricela e trêmula, que estava engasgada com o próprio medo. Um deles me agarrou pelo cabelo e saiu me arrastando, enquanto ria histericamente.

— Aha, ela é a cara do pai!

— Realmente, não tem como discordar de você! Ah, ha!

E, sem aviso, um terceiro homem entrou no quarto. Ele tinha o corpo de proporções similares àquelas do armário onde eu estava segundos antes, e cabelos pretos curtos atrelados à testa suada. Seu rosto também estava corado devido ao consumo de álcool, e ele não estava usando nenhuma parte superior. Pude perceber, por entre minhas lágrimas e desespero, que ele usava uma calça própria de samurais, e tinha uma katana do lado direito de sua cintura.

— Ei, o que está havendo aqui? — Ele perguntou, com uma voz arrastada. O homem me soltou, e me arrastei até o corpo quase sem vida de minha mãe. Pus minha mão sobre sua bochecha, e seus olhos brilharam ao me ver. Ela soltou um último suspiro, antes de finalmente se engasgar no próprio sangue e ir embora deste mundo.

Os rapazes entraram em pose de luta, e o encararam.

— O que você pensa que está fazendo?! — Disseram, em uníssono.

— Vocês não vão levar essa menina daqui, seus porcos. — O homem respondeu.

Antes mesmo que qualquer um dos dois pudesse reagir, ele tirou a katana da bainha e desferiu um único golpe, que jorrou o sangue daqueles dois desgraçados ao longo do quarto. A morte foi instantânea, e seus corpos atingiram o chão fazendo um barulho de carne se espatifando. Eu não ligava para aquilo, apenas estava desesperada por que minha mãe, minha amiga — a única que tive durante toda a minha vida — havia ido para um lugar do qual nunca mais voltaria.

— Ei... — O homem disse, pondo sua mão em minhas costas. — Temos que ir embora.

Ele pegou o corpo dela em um dos braços e segurou minha mão com a mão direita, e saímos correndo de lá. Adeus, casa.

Tudo que pude perceber ao sair foi o batom que estava espalhado pelas minhas palmas. Provavelmente, aquilo ocorreu quando cobri minha boca.

O batom carmim que eu jamais usaria novamente.


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Notas finais do capítulo

Yaa, pequeno. D: Espero postar o 2 assim que possível. rs



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