A Ovelha e o Porco-espinho escrita por Silver Lady


Capítulo 18
Capuccinos e Toxinas


Notas iniciais do capítulo

Olá de volta, e obrigada a todo mundo que me pediu pra continuar esta fic! Durante muitos anos não tive condições, por vários motivos pessoais - um deles é que anos do mesmo fandom realmente podem desgastar a inspiração. (obrigada, tio Toryama, por Batalha dos Deuses e o Renascimento de Freeza!) Enfim... espero que não se decepcionem, ralei muito pra escrever este capítulo.



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Capuccinos e Toxinas

Para muitos moradores da Cidade d'Oeste (e de vários pontos do país), a definição de "emprego dos sonhos" era trabalhar na Corporação Cápsula. Além dos ótimos salários e dos benefícios diversos como atendimento médico e dentário, creche, bônus, etc, havia pequenos confortos proporcionados com a intenção de fazer todos os funcionários sentirem-se em casa. O mais obscuro dos faxineiros podia contar com café quentinho e lanches saudáveis na hora do intervalo sem sofrer desconto em seu salário ou ter de procurar algum boteco na rua, graças às máquinas de bebidas e alimentos espalhadas pelo composto.


Porém, desde o último mês, muitos funcionários do principal prédio da Corporação andavam com ciúmes de seus colegas do sexto andar, onde ficava o laboratório da senhorita Briefs. Sem nenhuma razão aparente, a máquina de café localizada no corredor,que mal tinha um ano de uso, fora substituída por outra mais sofisticada, que fazia cappuccinos capazes de envergonhar o Starbucks. Mesmo os agraciados com esse privilégio estavam confusos... até que alguém reconheceu a máquina como a mesma que fora instalada no laboratório de sua jovem patroa no mês anterior, quando o projeto do "traje espacial" foi encerrado. Fazia sentido: desde que aquele baixinho de cabelo pontudo havia começado a colaborar no projeto, o Doutor Briefs e a filha sempre encontravam a garrafa térmica vazia. (muita gente riu: já era fato bem conhecido que as visitas do caminhão de suprimentos haviam se tornado quase semanais por causa do desagradável hóspede) Com o fim do projeto, ele parou de vir ao laboratório; a senhorita Bulma devia ter concluído que era café demais só para ela, o pai e os assistentes, e colocou a máquina ali, à disposição de todos. Os Briefs sempre foram muito generosos.

Mas a turma do cabelo em ovo, é claro, não estava satisfeita com uma explicação tão simples. Ei, desde o final do projeto da roupa o tal de Vegeta não fora mais visto (alguns empregados tentaram contestar, mas foram propositalmente ignorados). Isso coincidia com a "fuga" da senhorita Bulma um dia antes da sua festa de aniversário. Depois que voltara da viagem ela andava quieta e ensimesmada, sem a jovialidade costumeira; quando abria a boca, era só para falar em trabalho. Estava se tornando uma workaholic. Passava o tempo trancada no laboratório ou fora de casa, fazendo trabalho de campo - trabalho mesmo, não aventuras com seus amigos lutadores. Era quase como se estivesse evitando alguém, concluíam os bisbilhoteiros, trocando olhares cúmplices. Ora, como fora dito antes, desde a festa Vegeta não fora mais visto em parte alguma... A senhorita devia ter se livrado da máquina porque ela lhe trazia más lembranças...

—Não tem nada a ver uma coisa com a outra! —dizia Miki, uma cadelinha de longas orelhas, que fora promovida a secretária de Bulma depois que esta flagrou a invejosa Sae falando mal dela, numa cena memorável—A senhorita Bulma anda deprimida por causa da pressão que vem sofrendo desde que voltou para casa. Por mais que ela faça, nada é suficiente para... certas pessoas —concluiu tristemente—É por isso que ela está se matando de trabalhar.

Embora Miki não fosse além, todos entenderam que ela se referia aos sócios mais antigos do doutor Briefs; alguns eram excepcionalmente conservadores para gente que lucrava com uma empresa de alta tecnologia. Ninguém negava a capacidade da filha do doutor como cientista, mas aceitar uma mulher como presidente da empresa... ah, isso era muito, muito diferente! Houve um silêncio constrangido que durou alguns minutos. Apenas alguns minutos.

—Pode até ser—concedeu de má vontade Saiuru*, a secretária ruiva que fora a melhor amiga de Sae na empresa e agora ocupava seu lugar no trono de boateira-mor—Mas você não pode negar que o tal de Vegeta sumiu justo quando a senhorita Bulma estava fora. E depois ela voltou pra casa toda machucada!

Vários presentes arregalaram os olhos - de surpresa, horror, curiosidade, avidez. Houve cochichos de protesto de gente que não se lembrava de ter visto a patroa ferida prontamente abafados por outros jurando que também tinham visto os hematomas e arranhões imaginários, e dali já começaram a divagar para coisas muito piores. Miki quase disse que não tinha visto machucado nenhum na sua chefe, mas preferiu ficar quieta desta vez. Era bem capaz de alguém mandá-la correr atrás de um gato ou catar pulgas.

Uma risada voltou todas as cabeças, desmanchando o sorrisinho de vitória da ruiva:

—"Toda machucada?" É assim que você chama um arranhãozinho no pescoço do tamanho de uma unha?—riu um homem grandalhão e grisalho, engenheiro-chefe de produção de aeromóveis. Estava há mais de 30 anos na Corp. Cápsula e se gabava de ter carregado a filha dos Briefs no colo. Sacudia-se todo ao rir, fazendo o café que caía em seu copo respingar; mas logo sua pequena testa se franziu, com irritação:

—Seu lugar não é aqui, Saiuru. Você seria mais feliz trabalhando num tabloide ou escrevendo romances baratos! Primeiro que o senhor Vegeta não "sumiu quando a senhorita Bulma estava fora" : um dia depois da festa de aniversário, ele estava deitado no gramado, fazendo ginástica. Lembro-me bem, porque um dos jardineiros tropeçou nele e quase foi colocado em órbita. O coitado ficou pendurado pela roupa num dos balcões e tivemos que usar uma plataforma flutuante pra resgatá-lo. O doutor Briefs precisou ate pagar uma boa bolada para que o homem ficasse quieto!

Estava enfeitando um pouco a história: o pobre jardineiro havia apenas "voado" para o outro lado do jardim. Os cuidados da doce senhora Briefs foram mais que suficientes para apaziguar o ferido, sem necessidade de suborno. Mas a mentirinha com um fundo de verdade conseguiu ser mais interessante do que os supostos machucados que ninguém tinha mesmo visto.

—E o senhor Vegeta não foi embora —acrescentou uma mulher alta e loura, admitida há pouquíssimo tempo como designer —Um dos faxineiros me garantiu que ele continua trabalhando dentro daquela bola ali no pátio, só que ninguém o vê sair. As luzes na máquina ficam acesas até de madrugada. Eu mesma já vi a senhora Briefs levando comida pra ele, de manhã cedo.

—Ele não sai nem pra ir no banheiro?— horrorizou-se um estagiário que passava —Deve tá o maior fedor lá dentro!

—Aquela "bola" é uma nave espacial, já foi comentado aqui milhares de vezes —explicou o engenheiro, irritado —Tem dormitório, banheiro e chuveiro, dá pra morar lá dentro. Não sei o que é que o homem tá fazendo lá, mas não tem nada a ver com a senhorita Bulma. Ele é que nem gato: sai sem ninguém ver, volta e cuida de seus próprios assuntos, coisa que VOCÊS deveriam fazer!

O silêncio caiu novamente sobre o corredor. Alguns dos presentes começaram a se retirar (não trabalhavam mesmo naquele andar), deixando uma Saiuru mortificada e sem saber o que dizer. Miki sorriu-lhe com alívio e uma pontinha de pena, antes de desfechar o golpe de misericórdia:

—Só mais uma coisa: se a senhorita Bulma quisesse se livrar desta máquina porque ela a faz lembrar do senhor Vegeta, não acha que ela a teria mandado colocar em outro prédio em vez de aqui, bem no caminho pro laboratório?

—Mais provável que tivesse desmontado a máquina todinha, com aquele gênio dela —acrescentou um pesquisador, em tom brincalhão, servindo-se de mocaccino com caramelo—De qualquer jeito, jogou pérolas aos porcos...

—Tem toda a razão—rosnou uma voz bem conhecida atrás dele, fazendo o rapaz derramar o rico mocaccino em si mesmo e em quem estava perto —Dar esse aparelho caro para vermes fofoqueiros como vocês é um desperdício.

Todos os rostos se viraram automaticamente na direção da voz que muitos haviam tido a esperança de não ouvir mais. Por alguns segundos, houve um silêncio surpreso, antes que os funcionários recuassem, abrindo caminho como sempre haviam feito. As mulheres - particularmente Miki e a designer loura - repararam que o hospede dos Briefs parecia mais magro e tinha marcas sob os olhos.

_A...a senhorita Bulma não está. Ela... saiu... —disse o engenheiro, tão corajosamente quanto conseguia. Aquele homenzinho mal chegava até seu peito, e ainda assim lhe dava arrepios.

Vegeta não lhe deu atenção, muito ocupado olhando feio para todos aqueles botões:

—Onde é que se aperta pra fazer um café normal, sem esses temperos fedorentos?

—Que tal nas máquinas dos outros andares?—sugeriu o pesquisador—São tão simples que até você conseguiria usá-las.

Vegeta arreganhou os dentes e lançou-lhe um olhar que desbotaria o Hulk. Num instante o desaforado se viu sozinho, pregado no ponto onde estava e cercado de copinhos de café caídos a seus pés. Por alguns segundos, o corredor esteve à beira da tragédia.

Miki, uma das duas únicas pessoas que não havia fugido, finalmente se mexeu:

—Senhor Vegeta, é aqui! —chamou-o em voz alta, ainda que um pouco trêmula, enquanto apontava um botão logo embaixo no painel. Antes que o apertasse, contudo, a designer passou-lhe na frente, enchendo rapidamente um copo plástico de café puro. Depois estendeu-o na direção de Vegeta, que já tinha dado as costas ao seu ofensor. Ele apanhou o copinho fumegante sem olhar para a cara da loira, recusou com um grunhido sua oferta para colocar açúcar e começou a se afastar. De passagem, olhou para o pesquisador e sorriu para a mancha escura que crescia em suas calças:

—Há um fraldário no quinto andar. Até você deve ser capaz de vestir uma fralda—e saiu tão silenciosamente como chegara.

Lentamente, funcionários começaram a voltar ao cenário, e o ar tornou a se encher do zumzum habitual de murmúrios e cochichos.

—E- ele usa essa máquina p-pra fazer café comum... e-e ainda d-di-diz que ela foi desperdiçada com a g..gente...—murmurou o pesquisador mijado, antes de desmaiar.

* * *

—Recapitulando, senhorita Briefs...

—Bulma, por favor. Já lhe pedi um milhão de vezes.

A terapeuta espiou-a por cima dos óculos com a testa franzida, como se sua cliente tivesse lhe pedido para ficar nua na frente dela. Bulma suspirou mentalmente: "Por que cargas d'água acabaram com aqueles divãs onde o paciente ficava deitado, olhando o teto? Não que haja alguma coisa para ver neste teto, mas seria tão bom não ter que olhar para a cara dessa mulher... Será que todo mundo que faz terapia se sente assim, como um criminoso num interrogatório?"

Verdade que a sala não era muito mais agradável de olhar do que sua dona. Paredes brancas e nuas, apenas com um quadro numa delas: um abstrato horroroso, em tons de marrom e cinza. Janela coberta por persiana, uma estante metálica com apenas três livrinhos perdidos em sua imensa prateleira e duas poltronas estofadas. Ah, e umas almofadas marrons num canto. O único toque de cor era dado pela blusa gelo da doutora Kasana**. Talvez fosse de propósito para que o paciente se concentrasse nela e não se distraísse com outras coisas, mas Bulma suspeitava que era falta de imaginação, mesmo. "O consultório de um terapeuta deveria ser um lugar aconchegante, com cortinas, vasos de flores, paredes pintadas de um tom agradável, como creme ou azul claro... Um ambiente bonito, que deixasse os pacientes à vontade para se abrirem. Assim como um terapeuta deveria ser uma pessoa gentil e cheia de calor humano, não um zumbi que faz 'hum-hum`a cada coisa que a gente diz."

Segundo suas pesquisas, aquela era a melhor terapeuta da Cidade d'Oeste, porém parecia tão expressiva quanto um peixe morto. Peixe era a palavra exata para defini-la: baixinha, sem queixo, boca grande de lábios finos e imensos óculos fundo-de-garrafa que faziam lembrar os peixes dourados de olhos bolotudos que o Dr. Briefs gostava de criar. Bulma havia antipatizado com a doutora logo de cara, e desconfiava que a mulher também não gostava dela. Para quase tudo que a cientista dizia, a resposta era um automático "hum-hum"; às vezes Kasana nem esperava ela terminar a frase. Isso quando não interrompia sua rica cliente para perguntar sobre seus pais, amigos e coisinhas bobas que não tinham nada a ver. Até o Goku, com seu jeito dispersivo, era um ouvinte melhor do que ela! Com todas aquelas interrupções, Bulma não chegara nem na metade do que queria dizer quando a sessão chegou ao fim. Teve de pagar uma nota preta e se quisesse continuar a "conversa", só na próxima semana. Na sessão seguinte, foi a mesma coisa. Esta era a terceira. Bulma só não havia mandado a terapeuta catar coquinho ainda porque tinha esperanças de conseguir algum um conselho para sair do estado em que Vegeta a deixara.

Desde a noite em que ele havia retornado, sentia-se tomada por uma mistura de raiva, tristeza, decepção e outras coisas que não conseguia definir. Desligar a câmara de gravidade para fazer o ingrato levar um tombo não lhe dera satisfação nenhuma; na verdade, a pequena vingança infantil só durou alguns segundos porque Bulma lembrou-se em seguida que Vegeta poderia explodir a câmara se ficasse preso lá dentro. Assim, voltou a ligar a força, sem nenhuma réplica mais forte do que alguns palavrões. Mas um acesso de raiva irresistível impeliu-a até o quarto do Saiyajin, vazio desde o dia em que ela lhe entregara o uniforme. Meia hora depois, todas as roupas e pertences de Vegeta estavam espalhados em torno da câmara de gravidade, enquanto a jovem de cabelos azuis e coração partido regressava ao seu próprio quarto para chorar até dormir de exaustão. Na manhã seguinte conversou com os pais. Melhor dizendo, com o pai. A primeira coisa foi conseguir dele os projetos mais difíceis e complicados; por sorte, incluíam diversos testes de campo, o que a deixaria afastada de casa. Desta vez, Bulma não se deixaria levar pela depressão, como quando havia brigado com os amigos. A segunda coisa, mais delicada, foi convencer os pais que, de agora em diante, o espaço de Vegeta na Corp. Cápsula deveria ser restrito à câmara de gravidade. Já que aquela maldita geringonça era tudo que lhe importava, então que morasse nela! A senhora Briefs, claro, achou que Bulma estava sendo severa demais, fora só um mal-entendidozinho, o que custava os dois conversarem? Mas o doutor concordou que era hora de Vegeta aprender que o que se fazia aos outros tinha consequências. Ele mesmo se ofereceu para conversar com "o rapaz", se Bulma não se importava. Apesar de uma certa dor na consciência por estar arriscando a vida de seu pai, Bulma concordou, aliviada(sempre havia os senzus e as esferas do dragão).

Mas não houve nenhum problema. Ao voltar do trabalho no final do dia, ficou sabendo que Vegeta concordara prontamente com o arranjo."Claro que é difícil dizer porque ele está sempre de cara amarrada, mas ele me pareceu até satisfeito." comentou o velho. Assim, a paz voltou a Corporação Cápsula. Era como no primeiro ano em que Vegeta se hospedara lá junto com os namekuseijin, quando ele evitava ter qualquer contato com os outros, como se não morasse ali. A senhora Briefs levava comida até a câmara, todas as manhãs. Quando ele precisava de alguma outra coisa, mandava uma mensagem e seu pedido seria providenciado horas mais tarde. Acabaram-se as intimidações e ameaças de morte. Os empregados não levavam mais sustos. Bulma podia entrar na cozinha sabendo que encontraria seus cereais no lugar de sempre, em vez da caixa vazia e restos na toalha de mesa. Até o doutor Briefs estava satisfeito, porque tinha mais tempo para trabalhar, sem as interrupções de Vegeta exigindo mais robôs, e também por encontrar leite para o Scratch na geladeira. A senhora Briefs, claro, não estava tao feliz, porém mantinha-se milagrosamente quieta sobre o assunto, a não ser por algum comentário ocasional sobre Vegeta andar "muito magrinho". Bulma simplesmente a ignorava.

Estava tudo às mil maravilhas de novo... menos ela. Vivia numa espécie de piloto automático: acordava, tomava o café, trabalhava, almoçava, voltava para a ala caseira do composto, tomava banho, dormia. Trabalho não faltava; havia projetos que tinham ficado na espera quando ela estava trabalhando no traje (aquele mal-agradecido...), novas tecnologias a ser pesquisadas e desenvolvidas, funcionários admitidos há pouco tempo. Porém nada a entusiasmava. Fazia um tempo maravilhoso, os campos estavam perfumados com as pétalas espalhadas pelas árvores e os pássaros comemoravam o sol; para a turma de campo, era uma tentação que ao mesmo tempo aliviava e distraía do trabalho duro. Para sua patroa, poderia estar fazendo o maior toró. Qualquer um que fosse apanhado conversando ou simplesmente apreciando a vista levava uma bronca de deixar as orelhas pegando fogo. Nem mesmo o engenheiro novo e gatíssimo era poupado; aparentemente, Vegeta a havia curado de sua fraqueza por bonitões. Mas Bulma teria preferido ser uma versão feminina do mestre Kame, se isso trouxesse de volta seu prazer pela vida. Sua mãe preparava seus pratos preferidos e incluía morangos em todas as sobremesas; poderia servir até chuchu, porque todos os alimentos pareciam ter o mesmo gosto. Por que ela nunca se sentira assim quando brigava com Yamcha? Nem mesmo quando ele fora morto ela havia ficado assim. Depois de mais de duas semanas naquele marasmo, seu lado combativo se revoltou: tinha de fazer alguma coisa, mas o quê?

Gostaria tanto de poder desabafar com algum de seus amigos, pedir um conselho... se não tivesse certeza do que ia ouvir. "O que você esperava? Nem deveria ter hospedado Vegeta em sua casa, pra começar!" Era somente por isso que estava ali, aturando a mulher-peixe e seu consultório pelado. Ao menos estava falando com alguém que não tinha motivos para odiar o Saiyajin e que guardaria sigilo sobre suas confissões. Mais importante: não a pressionaria a fazer as pazes com ele só porque o achava "bonitinho", como sua...

—Senhorita Bulma?— a voz da terapeuta despertou-a— Já é a terceira vez que chamo sua atenção. Gostaria de partilhar comigo o que a deixou tão pensativa?— embora sua voz parecesse inexpressiva, a mulher mais jovem teve a impressão de perceber uma pontada de sarcasmo.

Menos mal. Se aquela criatura podia ser sarcástica, então era humana.

—Não era nada de mais —desconversou —Pode prosseguir, estou ouvindo.

—Eu estava fazendo um resumo do que me contou nas sessões anteriores. A senhorita, digo, você, está sofrendo os efeitos do fim de seu relacionamento tóxico com seu namorado Vergílio...

—Vegeta. E não é meu namorado: nós só... ficamos juntos duas vezes —Bulma corou.

—Um relacionamento abrange bem mais do que relações sexuais, a sen... você deve saber. Está morando com ele há cerca de um ano...

—Bem mais do que isso! Eu lhe contei semana passada que ele ficou conosco no ano passado por um tempo, depois ficou uns meses fora mas acabou voltando. É verdade que praticamente não vivia com a gente, mas...

—Antes dele morar em sua casa você já tinha acolhido outras pessoas, não? Incluindo seu namorado anterior.

—Sim. Mas são situações completamente diferentes. Yamcha nunca precisou realmente ficar lá em casa. Ele sabe se virar, enquanto o Vegeta... bem, ele é incapaz de se relacionar com as outras pessoas. Não pode arrumar emprego, porque só sabe lutar e não se interessa por outra coisa, e não tem como se hospedar numa pen...

—O seu pai adota animais abandonados, não é mesmo?

—Sim, ele tem viveiros e jardins cheios de animais. Gato, cachorro, dinossauro... São as duas coisas mais importantes na vida dele: os bichos e as invenções— Bulma praticamente rosnou. "Se ela me cortar mais uma vez vai ter!"

—Ahá! —fez a terapeuta, iluminando o rosto. Sua aparência era a de alguém que chega à última peça de um complicado quebra-cabeça . Porém Bulma já estava tão irritada que não reparou na mudança —Sua mãe também gosta desses animais?

—Ah, com certeza! Não é tão dedicada a eles como meu pai porque ela também gosta de cuidar das plantas, de procurar confeitarias novas e de falar das nossas vidas pra qualquer um disposto a escutar, mas quando sobra tempo ela ajuda papai a cuidar dos bichos, sim. É a única coisa que meus pais tem em comum... além de serem ambos sem-vergonhas. Eu já lhe contei tudo isso na primeira sessão! Mas o que eles fazem TEM A VER COMIGO E COM VEGETA?!!—levantou-se tão bruscamente, se estivesse sentada em uma cadeira a teria virado. Como o assento era uma pesada poltrona, Bulma apenas bateu as canelas no móvel, o que a deixou um pouco mais irritada.

—Tem absolutamente tudo a ver — explicou a doutora, muito calma, como se fosse perfeitamente normal que os pacientes gritassem com ela —Se a senhori... sente-se novamente, por favor, que vou explicar.

Muito de má vontade, Bulma voltou a afundar-se na poltrona, esfregando uma das canelas doloridas.

—Confesso que seu caso me deixou bastante confusa no início —começou a terapeuta —Normalmente as mulheres que se metem em relacionamentos tóxicos...

"De novo essa palavra. Porque ela insiste em chamar meu caso com Vegeta de venenoso?"

—...tem baixa autoestima causada por lares disfuncionais — Kasana decidiu explicar melhor, achando que Bulma não entenderia palavras tão complicadas —São filhas de pais alcoólatras, violentos ou apenas indiferentes.

"Tipo seus filhos, caso você tenha algum?" a cientista pensou.

— E você não tem baixa autoestima, muito pelo contrário. Seu lar é bastante estável, mesmo que seus pais sejam um pouco, hum... anticonvencionais. Além disso, as mulheres que descrevi costumam se envolver sempre com o mesmo tipo de homem... e sempre homens que lembram os pais delas, enquanto esse seu.. hã.. Vegetal... e o seu ex-namorado Lanche...

—Yamcha. E se diz "Vegiita", como em "jiló". É o nome do... lugar de onde ele veio. Uma fazenda de produção de vegetais em massa.

—Hum-hum, acho que ouvi falar —a terapeuta aceitou a informação sem ao menos erguer as sobrancelhas. Provavelmente porque existiam mesmo alguns produtos alimentícios xarás do orgulhoso príncipe — Como eu estava dizendo, os dois homens com quem você se envolveu parecem ser muito diferentes um do outro, exceto por seu interesse em artes marciais. E eles também não tem nenhuma característica em comum com seu pai...

Bulma explodiu num acesso de riso:

—Isso eles não tem mesmo! — não conseguiu dizer mais nada, pois não podia parar de rir. Era a primeira vez que ria em semanas, e aquilo a fez sentir-se bem. Nem sabia direito porque achava tão engraçado; talvez fosse a imagem de seu pai de quimono laranja e fazendo cara de mau numa arena de torneio, ou Vegeta com um imenso bigode, cigarro na boca e um gato pendurado no ombro... O fato é que riu até lhe ocorrer que a sessão deveria estar terminando. Enquanto respirava fundo, tentando se acalmar, viu um lenço de papel estendido em sua direção.

—Desculpa —constrangida, aceitou a oferta e enxugou os olhos.

—Não se desculpe —como seu rosto, a voz da doutora não expressava nem desaprovação nem satisfação: absolutamente nada — Se meu comentário a animou tanto, estamos fazendo um progresso. Voltando ao assunto, o seu caso foge dos padrões e, sinceramente, cheguei a pensar em recomendá-la a algum colega meu, porque não sabia como ajudar. Até que percebi que seu relacionamento era apenas um sintoma.

—Sintoma?

— Hum-hum. Você reclamou várias vezes que seus amigos também a negligenciavam por estarem ocupados demais com seus próprios assuntos. Isso já acontecia mesmo antes de conhecer Vegeta, não?

A sensação de bem-estar causada pelos risos deu lugar à mágoa que vinha atormentando-a há semanas. Mais de uma vez, aquele insensível jogara isso na sua cara. Bulma apenas fez que sim, lutando contra a umidade em seus olhos.

—... E seus pais tampouco parecem não precisar de você, porque tem suas próprias vidas. Embora eles tenham lhe dado carinho e liberdade - mais liberdade do que normalmente um adolescente tem - nunca chegaram a compreendê-la, principalmente sua mãe. Deliberadamente, ela ignora todos os seus pedidos, mesmo os razoáveis, e impõe a própria vontade de um jeito não-tirânico.

—Impor? Minha mãe nunca me impôs coisa alg... — Bulma começou, mas parou de repente, lembrando como sua mãe sempre ignorava suas súplicas, ordens e até ameaças para que não contasse os detalhes mais humilhantes de sua vida aos outros. Não por maldade, apenas pelo prazer de um mexerico "inocente" : "Minha Bulma tem cinco anos mas ainda faz xixi na caminha dela, não é uma graça?" "Todas as meninas andam atrás do Yamchinha porque ele é tão bonito e forte, e Bulminha fica morrendo de ciúmes." Ou como a ela a deixava atordoada na época de seu aniversário, metendo-lhe revistas de festas pelos olhos e depois sempre escolhendo a decoração que ELA queria. "Querida, você nunca sabe o que quer." E quando Bulma não queria comer, receber alguém, ou fazer qualquer coisa, e sua velha sempre a convencia com pequenas provocações: "Não precisa ficar triste só porque Yamcha e Vegeta não ligam pra você..."

—Ora, aquela...! Toda a minha vida ela sempre me tratou como se eu tivesse três anos!! _ explodiu, levantando-se de novo _Mas isso vai acabar! Assim que eu chegar em casa...

Qualquer um que visse a sua cara naquele momento julgaria uma felicidade a sra Briefs não estar ali. Mesmo a impassível doutora ficou meio preocupada:

— Podemos discutir sobre sua mãe na semana que vem, mas agora eu gostaria de terminar minha linha de pensamento antes que nossa sessão termine. Não vai gostar do que vou dizer... _acrescentou, em tom cauteloso.

_Jura? _ Bulma sentou-se de cara feia, ainda com o pensamento na mãe.

_Hum-hum. Filhos tendem a copiar inconscientemente as características dos pais, principalmente aquelas que os incomodam. Seus pais adotam animais sem dono; você hospeda pessoas desajustadas, porque precisa sentir-se necessária. Espera que, dando a essas pessoas o que precisam, elas a admirem e lhe deem a atenção que não ganhou quando era jovem, e fica decepcionada quando isto não acontece. Até que alguém precisa de você de novo e o ciclo vicioso recomeça.

_Espere aí! Primeiro, me diz que eu sou praticamente um trambolho para os meus pais e um fantoche da minha mãe. Agora está me dizendo que eu me deixo explorar apenas pra massagear o meu ego?

_Apenas não; conscientemente, você pode ter boas intenções, mas... vai negar que tem sempre algumas expectativas quando faz um favor a alguém?

_Todo mundo espera alguma coi..._ Bulma ia dizendo mas calou-se, lembrando-se de como se decepcionara quando Vegeta fora embora depois de vestir o traje que ela lhe fizera, mesmo sabendo de antemão que ele não agradeceria. "E eu ainda me dei ao trabalho de montar aquela festinha no laboratório..." E sempre que ajudava os outros, chegando ao ponto de arriscar a sua preciosa vida, ninguém reconhecia o seu valor, porque ela não tinha superpoderes nem resolvia tudo no braço. Fora praticamente obrigada a ir a Namekusei porque era a única da turma capaz de consertar a nave, se quebrasse; mas depois que a nave foi destruída, a amiga cientista deixou de ser útil e foi largada num canto, como um brinquedo velho. "Eu podia ter morrido ou sido estuprada por causa daquela maldita esfera que tive de tomar conta... sem falar naquele sapo nojento que fingiu ser meu amigo só pra roubar o meu corpo!"

Entretanto, sabia que não era por mal. Seus amigos apenas viam as prioridades e os fatos mais graves; para Kuririn, Gohan e Goku, ela estivera "bem", comparada à situação deles, apanhando de Freeza e seus homens - de que estava reclamando se ela não fora morta, como Kuririn? Pensou na sua solidão e ressentimento porque todo mundo estava longe, ocupado em treinar, um ressentimento que sabia que não deveria sentir, já que eles estavam apenas se preparando para proteger a Terra. "Escute: você quer morrer daqui a três anos?" "Não, ainda quero continuar vivendo..." "Então cala a boca!"

A bronca de Vegeta levou-a à lembrança dele atraindo-a até a câmara de gravidade e lhe dizendo que as pessoas deveriam bastar por si mesmas. Fizera aquilo por ele mesmo, é claro, mas ainda assim, percebera sua tristeza e tentara alertá-la para não ficar emocionalmente dependente dos outros. Não somente aquela vez... mas durante sua ultima briga, também: "Se queria um homem que a mimasse, não deveria ter se metido com lutadores como nós!" Ou será que estava arrumando desculpas para o comportamento dele? Franziu a testa, enquanto tentava coordenar esses pensamentos com o que estava ouvindo agora:

_ Então, seguindo essa sua linha de pensamento... eu me apaixonei por Vegeta só porque ele precisava de mim? É por isso que chama nosso relacionamento de tóxico?

—Hum-hum. Um relacionamento tóxico acontece quando apenas um dos lados se esforça em trabalhar a relação e o outro apenas recebe, sem retribuir. É compreensível que tenha se sentido atraída por ele, já que o seu Vegeta tem muito mais problemas do que as outras pessoas que conhece: está só no mundo, é extremamente fechado e, pelo que me deu a entender, deve ter muitos traumas... gostaria que pudesse convencê-lo a marcar uma sessão comigo.

—Seria mais fácil convencê-lo a dançar o mambo! — Bulma quase riu de novo.

—Hum-hum. Vocês dois parecem ter muito em comum, também: ambos são independentes, egocêntricos e não gostam que lhes digam o que fazer — Bulma fechou a cara para o "egocêntricos", mas a outra mulher não lhe deu chance de revidar — Calculo que tenha imaginado que poderia modificar Vegeta com seus cuidados e torná-lo uma pessoa melhor, não foi?

A pergunta apanhou-a de surpresa:

—Eu... eu... Olha aqui, ele pode ser um grosseirão insensível, mas não é tão malvado como todo mundo diz! Eu vim aqui esperando que a senhora pudesse me ajudar porque não está envolvi...

—Hum-hum. É típico em relacionamentos como o seu. As mulheres (falava como se ela mesma não fosse uma) não querem desistir de uma relação tóxica porque sempre encontram alguma coisa boa no parceiro... como a Bela que viu o que havia de bom na Fera. Vocês acreditam que podem modificar um homem apenas com a força do seu amor. Mas acontece que a Bela NUNCA tentou modificar a Fera... ela aceitou o monstro como ele era, com seus defeitos e virtudes, e ele acabou mudando naturalmente. Esse seu Vegeta não parece ter a menor intenção de mudar. Você fez muito bem em se afastar dele, antes que se prejudicasse mais.

Apenas o silêncio respondeu. Com um meio sorriso muito semelhante ao de um certo Saiyajin, a mulherzinha olhou casualmente para o relógio:

—Nossa sessão terminou há dez minutos. Terei de cobrar o tempo a mais.

—Hum-hum — Bulma levantou-se pela última vez daquela poltrona e apanhou a bolsa.

O arremedo conseguiu irritar a aparentemente inacessível doutora Kasana, porque ela se levantou também e abriu bruscamente a porta, os lábios esticados numa linha reta perfeita. Enquanto passava por ela como uma rainha, Bulma aproveitou para chutar o pau da barraca:

—Vou te dar também um conselho, mas não espero reconhecimento nenhum, porque a senhora não vai gostar: aproveita o extra que vou lhe pagar pra contratar um decorador, antes que este seu consultório mate alguém de depressão! — depois que saiu da sala, parou, virou-se e soltou a última farpa:

—E pelo amor de Deus, vê se troca esses óculos! Ninguém mais usa fundo-de-garrafa hoje em dia!

BLAM! A porta se fechou nas costas dela.


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Notas finais do capítulo

Pra quem não lembra da Sae: leia de novo os capítulos Hora do Cafezinho e There's a Hole in My Soul. De início eu tinha pensado nela como vilã, mas me dei conta de que alguém que nunca perde a chance de falar mal dos patrões não duraria muito no emprego.

*Saiuru - jogo de palavras com "urusai", que significa barulhento, tagarela em japonês; também é o correspondente na língua nipônica para "cale a boca". Saiuru é a mulher que caçoou de Bulma com Sae, na festa de aniversário da patroa (cara de pau, né?)

** Kasana - jogo de palavras com "sakana", peixe.

Miki - Não significa nada, apenas achei que seria um nome fofo para uma cachorrinha. ;) Eu queria botar algum animal antropomórfico na fic, porque em DBZ eles ficaram mais raros.



Eu realmente não sabia como continuar esta fic sem descambar para o dramalhão mexicano e mudar o clima da história. Mas o lance de Bulma procurar uma terapeuta veio naturalmente - nos últimos anos, li muitos artigos sobre relacionamento, e me ocorreu que qualquer psicólogo diplomado classificaria a relação de Vegeta e Bulma como "tóxica"; felizmente, nós fãs sabemos mais do que isso.



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