Shamandice escrita por Prana Zala


Capítulo 11
O que nem o ódio destruiu




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“A linha entre o amor e o ódio é a linha mais tênue de todas: às vezes se acredita que está de um lado da linha quando, na verdade, nunca deixou o outro lado”

Aquele quarto, que outrora poderia ser comparado ao quarto de Camus e Shaka em termos de organização, mantinha poucas de suas características originais: o chão estava coberto de cacos de vidros dos vasos que momentos antes suportavam diversas flores, que também estavam espalhadas por ele, algumas das quais bastante amassadas; a cortina havia sido brutalmente arrancada do trilho; todos os objetos das prateleiras haviam sido atirados para longe; os espelhos estavam quebrados; panos e objetos espalhados estavam manchados de sangue; a roupa da cama fora puxada para o chão, sem ter sido totalmente retirada. E sobre ela, estava o causador de todo aquele caos, deitado naquele chão imundo e cortante, em posição fetal, tapando os ouvidos com tanta força como se pudesse, com isso, não escutar a própria consciência. Sem falar uma palavra após abrir a porta, ele retornou para o seu ninho e se fechou novamente em seu casulo.

Milo permaneceu junto à porta nos primeiros minutos, observando a destruição e o destruidor, imaginando que, se tudo aquilo tinha sido feito em apenas 1 hora sozinho, ele seria capaz de arrancar as próprias tripas e atirar ao chão se ficasse uma noite inteira sem alguém por perto. Claire seria, provavelmente, a melhor opção, mas, dada a impossibilidade de trazê-la naquele momento e para dentro do Santuário, ele sabia que ele era o único que poderia estar ali. Com seu querido odiado amigo de infância e atual inimigo. Tão frágil, tão trincado, que um simples sopro poderia quebrá-lo para sempre. Novamente.

Escorpião aproximou-se do pisciniano, sentou-se na cama e esperou alguma reação. Afrodite encolheu-se mais, a ponto de seus joelhos quase tocarem sua testa. O grego, então, ajoelhou-se em frente ao sueco e, segurando seu queixo, forçou-o a levantar a cabeça. Seus olhos estavam vermelhos, seus lábios secos, ressecados e com cortes, e sua pele era de uma palidez angustiante. A tão invejada beleza do cavaleiro estava reduzida a quase nada devido à sua miserável aparência. Ninguém é bonito na dor.

– Se quer saber, você está horrível – disse o escorpiano. Apesar das palavras serem cruéis, não havia crueldade em sua voz; era como se dissesse uma verdade universal – Tem água guardada em algum lugar aqui? Você precisa beber algo.

Peixes não respondeu. Milo levantou-se e começou a procurar algum lugar que ainda não tivesse sido destruído e que pudesse ter uma garrafa d’água. Com um sussurro de “desculpe a invasão”, ele começou a abrir gavetas e portas que ainda estavam no lugar, na esperança de que tivesse algo escondido por ali. Procurou nas gavetas da cômoda, no criado-mudo e no guarda-roupas, e por pouco não reparou nas duas fotos que o sueco mantinha coladas à porta deste. Não precisava analisá-las por muito tempo, bastava um bater de olhos que já as reconhecia e lembrava do momento em que foram tiradas. Até a foto de Camus, pois tinha sido de uma das poucas confraternizações que o aquariano participou e deixou-se fotografar. Não que ele tivesse problemas em tirar fotos, apenas não se aproximava o suficiente das pessoas a ponto dos encarregados pelas fotos resolverem incluí-lo nos registros para a posteridade, ainda que ele não posasse para elas. E a foto de crianças era do primeiro Natal de Milo após se mudar para a casa do pisciniano, em Estocolmo. A coelha, Silber, fora um presente de Afrodite ao melhor amigo, para que os dois pudessem criá-la juntos. Apesar de ter sido presente para o escorpiano, em nenhum momento ela fora somente dele, mas sempre dos dois. Das duas crianças que se amavam o suficiente para dividirem tudo: pais, animais, roupas, sonhos e destinos.

Parando para pensar, na verdade sempre fora Afrodite a ceder tudo o que tinha para Milo. “Porque eu não tinha nada para oferecer”, justificou-se o Escorpião a si mesmo, como se estivesse se defendendo de uma grave acusação.

O sueco sempre tivera tudo, desde pais que o amavam mais do que qualquer um e qualquer coisa à uma beleza que faria inveja à mais linda das modelos. Casa, dinheiro, família, prestígio: não havia o que lhe faltasse. Exceto amigos. Por parecer uma garota, por roubar a atenção de todos, por ter mais do que a maioria do seu meio, por mais nobre que fosse o seu meio, a inveja mantinha as demais crianças afastadas, fosse porque as garotas não gostavam de serem menos belas do que um garoto, fosse pelos garotos invejarem a atenção dispensada ao pisciniano, fosse pelos pais das crianças invejarem seu status social.

E, do outro lado, estava Milo: uma criança que nasceu em circunstâncias comumente referidas como “obscuras” pela alta sociedade da qual seu pai fazia parte, sendo filho bastardo, odiado pela madrasta e debochado pelos ricos e nobres, arrancado da terra em que crescera e levado à força para a casa de seu pai, em outro país, onde sequer conhecia o idioma, largado numa casa imensa e fria, sem contato com seus irmãos maternos e tendo toda a atenção da família e dos empregados aos gêmeos recém-nascidos. Seu pai comprara boas roupas, cuidara de seu cabelo, matriculara-o numa excelente escola que ele não tinha capacidade de acompanhar com o background que carregava, com aulas particulares que lhe tomavam todo o tempo em que não estava ou na escola ou dormindo: equitação, bons modos, francês, inglês, natação, esgrima, caligrafia, judô. Cobranças e expectativas exageradas de um lado e uma fila de sorrisos caçoadores e sussurros difamadores do outro.

E, de todas as pessoas que aquelas duas crianças tinham conhecido durante a curta vida e de todas as pessoas que eles poderiam ter conhecido, os dois se encontraram na festa de aniversário do filho de um príncipe europeu. Os pais de Afrodite eram condes suecos, de grandes fortuna e prestígio internacional, engajados nas lutas sociais, considerados exemplos de gente de caráter, alta estirpe e preocupados com a justiça; o pai de Milo, apesar de não pertencer à nobreza de país algum, era um dos mais bem-sucedidos empresários europeus, dono de uma rede de restaurantes de alto nível e de supermercados, tendo inclusive se aventurado pelo ramo da indústria automobilística, sendo um dos maiores acionistas da Fiat italiana, e, por sua personalidade, colecionava amigos influentes, que variavam de celebridades a membros da realeza – uma “pessoa de contatos”, como dizem.

Aquela deveria ter sido uma das imemoriáveis festas nas quais o pisciniano entrava e das quais saía sozinho, sem nunca ser chamado para brincar com as outras crianças. Para o escorpiano não era muito diferente, pois ele não falava os mesmos idiomas que as demais crianças e os pais das crianças com quem ele poderia se comunicar pareciam alérgicos à parte pobre de seu sangue. Assim, duas crianças naturalmente excluídas pelas demais acabaram por se encontrar no jardim da mansão, quando o sueco saiu para apreciar o belo jardim e encontrou o grego agachado próximo ao canil, conversando com os cães, que pareciam serem os únicos que prestavam atenção nele.

Não era a primeira vez que Afrodite encontrara uma criança excluída como ele em festas, tampouco uma que visivelmente não tinha nascido na alta sociedade e que fora, do nada, jogada naquele meio insensível. Mas, por alguma razão que nem ele sabia direito qual, aproximou-se do menino que falava com cães e interagiu com ele, em perfeito e fluente idioma grego.

– Meus pais sempre falaram que cachorros são perigosos e não devemos tocar naqueles que não conhecemos muito bem. Mas eu sempre achei que eles são mais inofensivos do que muitas pessoas – disse o sueco, agachando-se ao lado do garoto de curtos e encaracolados cabelos loiros.

Milo mediu-o dos pés à cabeça e levantou uma sobrancelha, desconfiado da veracidade daquelas palavras. O grego também já vira inúmeras crianças andando sozinhas em festas, algumas com as quais chegou a trocar palavras, mas aquele garoto, ou aquela menina, definitivamente não parecia alguém como ele ou as outras crianças que ele vira em tal situação. O jeito de se vestir, o modo de falar, até o modo de ficar de cócoras, transbordavam elegância e nobreza. Provavelmente era parte da realeza de algum país, uma criança cercada de mimos e proteção, que provavelmente nunca ouvira alguém gritar com ele ou sequer levantar a voz. O que ele saberia sobre a maldade das pessoas?

– Prazer. Meu nome é Afrodite – cumprimentou, educadamente, o sueco, e ficou aguardando o outro se apresentar, como mandava a etiqueta.

– Milo – murmurou o escorpiano, pondo-se de pé e sacudindo a calça a fim de retirar a grama e terra que porventura tivessem se alojado em suas roupas. Não entendia o que aquele pedaço da realeza fazia ali, puxando conversa com ele (e ainda mais em grego!), mas sabia que o melhor a fazer era se afastar rapidamente e voltar para sua solidão, antes que fosse mais uma vez acusado de ser fingido e de ter mentido sobre suas origens, mesmo quando nunca tinha dito uma palavra sequer sobre sua família, o que havia sido repetidas vezes interpretado como uma estratégia para esconder seu passado negro e para ludibriar pobres e inocentes crianças a fim de obter algum benefício pessoal.

– Se eu estiver incomodando, posso me retirar – disse prontamente Peixes, sentindo o desconforto do garoto com a sua presença. – Eu não queria te fazer se sentir mal.

Se Milo tivesse se afastado naquele momento, o que teria acontecido com sua vida? Não seria cavaleiro, não conheceria Shaka e Camus, não teria se sentido tão realizado exercendo uma função quanto o que fazia ali, no Santuário, dedicando a vida a proteger a deusa Athena. Talvez tivesse se adaptado à vida de seu pai, talvez tivesse sido um dia aceito pela madrasta, talvez tivesse se apegado tanto aos irmãos gêmeos quanto a seus irmãos maternos. Quem sabe, poderia ter melhorado nos estudos, frequentado a melhor universidade do mundo e hoje fosse um jovem de futuro promissor. Ou talvez tivesse ficado cada vez mais deslocado, cada vez mais humilhado, cada vez mais rebaixado, que não tivesse aguentado toda aquela pressão e rejeição e tivesse abandonado o pai, voltado para as ruas, e estivesse batalhando para sobreviver. Poderia ter virado um marginal, já ter sido preso, quiçá já ter morrido.

Pouco lhe importava o que poderia ter acontecido à sua vida se tivesse tomado uma decisão diferente, somente importava que, naquele momento, decidiu ficar e conversar com o sueco. Por mais que o destino tivesse reservado muita mágoa e ódio entre os dois, sentia que aquele fora o momento em que as engrenagens da sua vida começaram, finalmente, a girar: foi ali que ele, o Milo que todos conheciam, nasceu. Era na mão que segurou naquele dia que estava a linha que o guiaria a seu destino, atando a sua mão àquela de maneira impossível de separá-las. Nem o amor, nem o ódio, nem a morte haviam sido ou seriam capaz de separar aquelas mãos.

E esse era o motivo porque tanto ele quanto o pisciniano não podiam abrir mão totalmente do outro. Por mais que tentassem se afastar, por mais que não suportassem a presença um do outro, eles sempre acabavam lado a lado. Foi essa linha que puxou Afrodite até a Casa de Escorpião quando nenhum outro teria feito o mesmo, desobedecendo a deusa para a qual ambos entregaram sua vida, e era essa linha que o tinha levado até a Décima Segunda Casa naquela noite. Os dois sabiam que, quanto mais perto estivessem, mais se machucariam, e que, se não se afastassem, um deles, ou até mesmo os dois, poderia acabar encontrando a morte mais cedo. Ambos sabiam disso e eram conscientes que o outro sabia disso também, sem que tivessem conversado sobre o assunto, mas não conseguiam cortar a linha que unia suas mãos.

Por isso Milo odiava as fotos da infância. Odiava pensar em como estava ligado a alguém que odiava e odiava mais ainda imaginar como estariam se ele não tivesse feito qualquer coisa para ganhar Camus. E, somado a tantos ódios, nos últimos meses adicionara um novo à sua lista, que era o fato de ter preferido um incerto amor a um vínculo eterno. Não que odiasse menos Afrodite ou que, se pudesse voltar atrás faria algo diferente, mas exatamente por saber que, se tivesse uma segunda chance, ainda não hesitaria em apunhalar o antigo amigo de infância pelas costas para ficar com alguém que não respeitava seus sentimentos, tudo por alguns instantes sendo o único refletido nos olhos de Aquário, mesmo não estando em seu coração como gostaria. Se, em todos aqueles anos em que lutou por seu amado, jamais se questionou das suas ações, nos últimos meses esforçava-se para não se culpar pelo que fizera ao sueco. Sempre soubera que fora o primeiro a jogar sujo, que Peixes apenas reagira, tal qual um gato acuado, mas, até ter dado um basta na relação que mantinha com o francês, ele nunca sentira remorso pelo que fizera. Era como um se tudo fosse obra do destino e ele tivesse sido apenas um infeliz executor dos planos de uma entidade superior, e a mágoa não fosse resultado de ações que tomou devido unicamente ao seu livre-arbítrio.

No final, suas ações trouxeram-no bons frutos? Valera a pena as punhaladas? Se ele não tivesse sido a pessoa mais ingrata e desleal do mundo, Afrodite teria mantido sua pureza e senso de justiça? Afrodite teria cedido aos prazeres carnais destituídos de sentimentos? E, principalmente, teria ele, se desistido daquele amor que beirava a doença, sido mais feliz ao lado do pisciniano? Não sabia e provavelmente nunca saberia. Desistira de estar ao lado de Camus e duvidava que houvesse perdão entre ele e o sueco, de modo que as situações do passado jamais se repetiriam e ele não teria como fazer uma escolha diferente frente a situações parecidas.

Mas, independentemente de qualquer passado e alheio a qualquer futuro, Milo continuou procurando algo para Peixes beber e, após encontrar uma garrafa d’água sobrevivente em meio àquela bagunça, caída atrás da escrivaninha, ajoelhou-se ao lado do antigo amigo e forçou-o a beber um pouco. Ele não queria, mas estava tão sem vida que a resistência foi quase imperceptível. Escorpião passou o dedo úmido nos lábios do sueco, a fim de tirar aquela impressão de ressecamento deles, e uniu seus longos cabelos loiros em um coque, retirando dentre os fios cacos de vidro que porventura tinham-se ali alojado. Segurou o rosto do sueco entre as mãos e encarou-lhe por um instante.

– Está bem melhor agora. – disse, satisfeito de sua obra – É por essas e outras coisas que Claire sempre diz que ela não conhece uma garota que não sentiria inveja de você se o conhecesse: pode estar o bagaço que for, mas é só dar um tapa que fica apresentável de novo.

Afrodite não respondeu e sequer esboçou reação com o comentário do grego. Continuou imóvel, como se estivesse sem vida. O escorpiano suspirou e abraçou o inimigo, com um toque de ternura.

– Eles estão bem, Aphros. Apesar de tudo, eles estão bem... – murmurou Milo.

Instantes depois, o escorpiano sentiu as primeiras lágrimas do pisciniano molharem seu ombro e os braços do sueco passarem pelo seu tronco e suas mão segurarem fortemente sua blusa.

Naquele momento, não havia mágoa, não havia ódio, não havia o antes e sequer havia o destino: ali havia apenas dois jovens que se entendiam melhor do que qualquer outra pessoa no mundo.


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Notas finais do capítulo

20.10.2014
Esse capítulo estava pronto desde antes do capítulo 10, mas fiquei mais de duas semanas para escolher o título. Particularmente, foi um dos capítulos que eu mais gostei e, por isso, queria dar um título à altura, mas decidi voltar para a minha ideia original e ficar por isso mesmo, já que não tinha pensado em nada melhor ainda e duvido que ficar em cima do capítulo mais umas dezenas de dias ajudaria. E foi o primeiro capítulo que fugiu à sinopse de cada capítulo, que preparei assim que comecei a escrever a história. Não, o rumo da história será o mesmo, mas esse capítulo estava planejado para ser mais longo, só que achei que diminuiria o sentimento que quis que ele transmitisse se continuasse com a próxima cena.
Espero que tenham gostado desse capítulo tanto quanto eu! Depois de anos e milhares de palavras, finalmente está chegando a parte que eu tanto queria escrever e que foi o principal motivo para eu começar a escrever essa fic! A complexidade do relacionamento do Milo e do Afrodite, os erros e acertos do relacionamento entre eles, a indefinição do que eles sentem um pelo outro... Enfim, a cumplicidade entre eles que eles tentam disfarçar. O Camus está meio sumido, mas em breve deve voltar a ter um papel de destaque, porque ele É um dos protagonistas. Shaka também. Mas vamos ver se os dilemas dos dois vão superar essa vida de gato e sapato dos dois amigos de infância, ehehe!
Como sempre, obrigada a quem está lendo, leu, vai ler e pretende continuar lendo. Vocês são um grande incentivo para eu continuar escrevendo!



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