Shamandice escrita por Prana Zala


Capítulo 1
Quando as lembranças cortam




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Quando as lembranças cortam

"O coração é uma colcha de retalhos feita das lembranças boas e ruins, mas nem sempre há uma costureira que possa remendá-la"

Milo sentou-se numa pedra daquela ruína, que lhe trazia tantas lembranças. Brincavam ali, quando crianças, assim que chegaram ao Santuário. Ele, Shaka e Afrodite. A história que ninguém sabia explicar, a separação e o ódio dos dois garotos que chegaram juntos e que eram melhores amigos... Ele sorriu, lembrando de como era divertida aquela época de amizade. Por que odiara Afrodite tão fortemente? Por que nunca conseguiram conversar e aceitar a fatalidade? O escorpiano não se achava o único culpado. Conhecia o pisciniano melhor do que qualquer um, apesar dos anos em que se mantiveram afastados. E era conhecido por ele. Um simples olhos-nos-olhos era como um raio-X da mente do outro. Por isso ninguém sabia o porquê da separação: porque ninguém vira nem ouvira uma briga; simplesmente trocaram olhares. Arrancou uma das flores que nascera ali e examinou-a. Devia ter sido seu perfume que o fizera lembrar de Afrodite.

Amassou a planta, apertando-a na mão, fortemente. Odiava o colega. Odiava lembrar de como foram amigos. Porque odiava a falta que isso lhe fazia. Queria transformar todas as lembranças em pó, amassá-las como amassara a flor. E, assim, lançá-las ao mar, para que nunca mais as reencontrasse. Escolhera seu caminho, escolhera seu melhor amigo, escolhera sua paixão, escolhera seu norte. Escolhera Camus, e não o sueco.

Mas o tinha perdido.

Por que fora para o lugar de suas lembranças com o homem que mais odiava no mundo? Por que tinha lembranças queridas com aquele que lhe tirara Camus, sua maior preciosidade? Por que as voltas do mundo levaram àquela situação? Não, não queria pensar. Quanto mais pensasse, mais difícil seria conter as lágrimas. Sim, perdera Camus. E fora ele próprio quem terminara tudo! Qual pretexto usara mesmo? Ah, sim, a organização excessiva de Camus. Balela. O francês também devia ter percebido o quanto aquilo fora uma desculpa esfarrapada. Havia anos que convivia com aquele jeito organizado e perfeccionista do amigo, além de também conviver com Shaka desde criança, estava acostumado, todos sabiam. Camus é que às vezes perdia a paciência com a bagunça, arrumava-a e depois perguntava para o amante quando ele aprenderia a guardar seus pertences. Daquela vez teria sido igual a todas as outras não fosse o temperamento explosivo de Milo que se seguiu. O escorpiano exasperou-se, disse estar de saco cheio da organização excessiva de Camus e que não agüentava mais o aquariano e viver na mesma casa que ele, por isso seria melhor se ficassem cada um na sua, como antes, e levassem suas vidas como bem quisessem. Camus, naturalmente, concordou. Claro que concordaria! Naqueles 5 anos juntos nunca demonstrara uma prova suficientemente grande de seu amor, apenas dizia que eram melhores amigos. Milo, pelo contrário, vivia declarando seu amor ao amigo, entregava-se completamente ao outro. E o pouco que queria, uma simples frase, sempre lhe fora negado. Aceitaria aquela situação para sempre, se Afrodite não tivesse cuspido aquelas palavras, aquelas malditas palavras: "Eu é que não quis continuar com ele". Aquilo fora o maior golpe que o escorpiano já recebera em toda a sua vida. E provavelmente abrira a ferida que mais demoraria para cicatrizar.

Quando repararam, ambos, que nutriam um amor obsessivo pelo mesmo companheiro, Afrodite e Milo tentaram contornar a situação com classe e manter a amizade. Eram amigos desde antes do Santuário, prometeram que treinariam juntos e conseguiriam a armadura juntos. Sobreviveriam juntos. E a amizade os fez sobreviver aos treinos excessivos, às caçoadas dos veteranos, aos maus-tratos dos invejosos, à saudade da família. Sobreviveram porque não se sentiam sozinhos. Mas a amizade não sobreviveu ao amor. Camus aparecera na vida de ambos de repente, e de repente pôs em cheque toda a confiança e harmonia entre os dois garotos. "Uma luta justa", Milo vira escrito nos olhos cristalinos do amigo. Mas aquela luta nunca seria justa.

Afrodite podia ser tido como a reencarnação da deusa Afrodite, tamanha sua beleza. E o treinador louco que tinha decidira transformá-lo no mais sedutor dos cavaleiros, aproveitando-se de seu charme natural. Apesar da idade, quando conheceram Camus Afrodite já era um dos aprendizes mais desejados do Santuário. E a "luta justa" do sueco incluía sua superioridade sedutora.

Milo, por outro lado, era um moleque briguento na época. Bonito, é verdade, mas nada que pudesse competir com o "mais lindo aspirante a cavaleiro do Santuário". Não, para que Milo chamasse a atenção ele precisava interagir, não bastava um simples olhar. Se lhe dessem a chance da aproximação, cativava os outros pelo seu jeito alegre, descontraído e confiante. Mas a confiança em si lhe faltara quando vira Afrodite lançando seu charme em Camus. Um peixe dentro de um aquário é algo natural; natural também seria Afrodite alojar-se no coração do francês se aquilo continuasse.

Aproveitando-se de seu contato recente com o aquariano, Milo plantou na cabeça do colega a semente da erva mais nociva que conseguiu: a dúvida quanto à moral do concorrente. Conseguira fazer com que Camus descobrisse todos os podres de Afrodite e maquiou muito bem os seus próprios. Assim, não tardou a Camus, de conduta ilibada, enojar a vulgaridade do sueco, sendo cativado inteira e exclusivamente pelo escorpiano. Conquistara sua confiança, sua amizade e seu carinho de forma única, tornou-se o melhor amigo do garoto inexpressivo para os demais. E isso lhe custara apenas uma traição, uma puxada de tapete do antigo melhor amigo. Fora um preço baixo.

Com Afrodite fora do caminho, foi questão de tempo e muita paciência para conquistar o lado de Camus em sua cama. Amaram-se noite após noite, dia após dia; no chão da casa de Aquário, atrás da casa de Escorpião, em ruínas, no mar, no carro. Fora Milo quem dera o primeiro passo, é verdade, mas Camus não o rejeitou, nem por um segundo. O cavaleiro da oitava casa havia aprendido, em seus anos de espera pelo amado, a convencer miladies e gentlemen a acompanhá-lo em noites de prazer com muita eficiência. Lições geminianas, de Saga. Muito aprendera no campo, na prática, ao lado do seu companheiro de aventuras e fiel escudeiro Shaka.

Conhecera o indiano poucos dias após ter chegado ao Santuário e empatizaram-se de cara. Foram um trio por dois anos, até a aproximação de Camus dos amigos. Shaka nunca quisera escolher entre eles, mas gostava mais de Milo do que de Afrodite, muito mais do escorpiano do que de qualquer outro ali, então preferira dedicar-se mais a ele, mas sem nunca abandonar por completo o pisciniano. E o trio virou uma dupla. O cavaleiro de Virgem aceitou o amor de Milo pelo aquariano e incentivou-o, ouviu as choramingações e as explosões de alegria do amigo quando Camus dava-lhe um simples sorriso. Sempre estava ali para apoiá-lo, para distraí-lo, para ser castigado com ele.

Milo nunca fora um santo. Adorava causar confusão, adorava brigas, adorava quebrar o nariz de um e o braço de outro. E adorava mulheres. Como ali havia falta do produto, vez por outra o garoto passava escondido para o alojamento das amazonas e ficava espiando-as treinando, conversando ou até mesmo tomando banho. E sempre arrastava Shaka com ele. O virginiano vivia parte do tempo de olhos fechados, e no começo fazia questão de continuar assim quando iam espiar as pobres garotas em momentos íntimos, por questão de respeito. Até que lhe veio a curiosidade e Milo, gentilmente, conduziu-o ao pecado. Encontraram uma amazona exibicionista, que tomava banho em lugares públicos, como em rios que passavam pelo Santuário, e fizeram de observá-la seu programa favorito. Daí para deitarem-se na cama de diversas mulheres foi um passo. Passaram três anos sem repetir uma mulher, sem falhar uma semana a visita à capital em busca de fêmeas no cio. Provaram tudo o que a lei não os proibia quando não conseguiam burlá-la. Aos 16 anos, participavam ativamente de casas de swing, orgias, clubes de sadomasoquismo, amantes de fetiches. E estavam sempre juntos. Camus tinha uma boa idéia de onde Milo estava quando saía nos fins de semana, principalmente quando amanhecia acompanhado de uma serva ou uma amazona na casa de Escorpião. Por Zeus!, aquilo era proibido! Mas Camus não só aceitava como acobertava o amigo, sempre acompanhando a ação apenas com um leve sermão. Naturalmente não sabia que Milo tinha experiência com homens também, pois esse era a maior "diferença" apontada pelo escorpiano em relação a ele e o sueco: Afrodite saía com homens, ele com mulheres. Seguia-se, claro, o fato do cavaleiro da última casa sair com muitos em busca de informações, mas era um dado acessório.

Depois que conseguira deitar Camus em sua cama, Milo largara todas as suas farras. Milo abdicara da vida de playboy. Milo desistira de suas mulheres. Milo entregara-se apenas a Camus, e satisfazia-se com isso. Viveram bem por um tempo, só os dois, como amantes. Milo entendera que as tão esperadas palavras, "eu te amo", demorariam um pouco mais para saírem da boca do aquariano, mas tinha aceitado o fato. Esperara para tê-lo, esperaria para ouvir. E estava feliz, e achava que fazia o outro feliz.

Naquela fatídica tarde, chegara Milo de viagem e encontrara Afrodite saindo da casa de Camus. Parara para perguntar o que queria, se era importante, se Atena precisava de algo. O sueco dissera que não, que tinha ido ver Camus. Milo, como sempre, explodiu, mandando Afrodite manter distância do cavaleiro de Aquário. Foi então que o pisciniano fizera a revelação chocante: estava, sim, tendo um caso com Camus; transara, sim, com Camus; tinha, sim, ido ver o amante e se deitado com ele naquele dia. Esse fato, somente ele, já seria o suficiente para Milo sentir o coração ser esmagado por uma poderosa mão, mas o que se seguiu foi mais doloroso para o cavaleiro de Escorpião.

— Mas não se preocupe, Milinho querido, pode ficar com ele pra você. Hoje acabei com isso. Não por você, não por vontade dele, eu é que não quis continuar com ele. Ele bem queria, ele bem não entendeu o porquê, mas eu cansei dele. Fique com o resto, mon ange— disse Afrodite, usando a expressão que Milo tinha certeza, até aquele momento, de que Camus só usava com ele.

Queria acreditar que aquilo era mentira, mas olhando nos olhos de Afrodite viu que era verdade. Viu que Camus e ele tinham estado juntos. Viu que ele desfrutara de Camus o tanto quis e agora estava largando-o, como se largasse uma roupa velha. Só não entendeu o porquê fazia isso, pois via nos olhos do ex-amigo que ele ainda amava o cavaleiro de gelo. Pouco importava. Milo tentara e tentara mais ainda afastar o amante do sueco e agora via que havia sido em vão. Camus transara com a última pessoa do mundo que Milo toleraria. Só a idéia de Camus estar transando com alguém que não ele deixava Milo enfurecido, explodindo de ciúmes, mas qualquer outro ele conseguiria relevar, exceto Afrodite. Sentiu-se traído. Seu mundo caíra naquele instante. Esperou Afrodite ir embora com classe, deu meia volta e foi chorar as pitangas para Shaka. Acalmou-se e foi pra casa, decidido a relevar aquele fato também. Mas não conseguiu. Explodiu. Precisava de uma desculpa, uma idiotice, para descontar a raiva e frustração. E usara a organização de Camus para isso. Dois dias após a revelação bombástica e Milo tinha jogado às favas todos os anos de luta, todo o empenho e a decisão de relevar o acontecido e terminara aquele pseudo-namoro. Ele considerara um namoro durante todo o tempo, mas Camus tinha ojeriza àquela palavra, então ele próprio evitava usá-la até mesmo em seus pensamentos. Acabava se referindo ao caso entre os dois assim, como pseudo-namoro. Tinha cara de namoro, cheiro de namoro, jeito de namoro, mas não era propriamente um namoro para o aquariano.

Conseguira repassar todos os fatos em sua mente sentado ali, na ruína de suas doces lembranças da infância, só não conseguiu encarar sua decisão como sendo a correta. Amava Camus, mais do que tudo, não? Não queria largá-lo, de jeito nenhum. Mas achava que tinha que o largar, antes que fosse largado, antes que fosse trocado por Afrodite, antes que se machucasse mais.

Mal imaginava ele que as feridas tinham apenas começado. Mal sabia ele que havia muito mais para ser machucado, em seu coração e em outros corações, e muito mais para machucar.

Doíam as lembranças, o amor, a revelação, o rompimento, o ódio. Mas doía mais a incerteza de que estaria doendo em Camus também.

Continua...


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Notas finais do capítulo

Essa é a primeira fanfic que eu realmente escrevo e cujo início foi inúmeras vezes adiado. Mas estou aqui tentando, lutando contra a falta de tempo, para compartilhar uma ideia que tenho há muitos anos - espero que gostem =)



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