Março. Não, ainda não salvaram a gente. Quebrei o basculante em fevereiro e apanhei da Cristina por isso. Não foram apenas tapas, teve cinto, chinelo, até mesmo, socos. Fiquei mal por duas semanas e Camilla cuidou de mim. O basculante agora dava lugar a uma janela com grades. Como todas as outras da casa. Ainda tenho cicatrizes pelo corpo. Inclusive, do vidro da janela. Como perdi sangue naquele banheiro. Um caco de vidro entrou em meu antebraço direito e tudo pareceu estar perdido.

Descobri que março é o mês de aniversário do Luiz. Descobri também, o nome do Quilômetro. Rafael. Não é feio. Luiz o salvou dos traficantes, ele devia algo para Luiz e tomar conta de mim era isso. Quilômetro, ou Rafael, estava começando a se tornar amigo da gente, mas ele não admitia isso. Ele até permitia que ficássemos no banheiro o tempo que achássemos necessário. Aquele menino que conheci em janeiro, era seu filho. Entediado, Rafael começava a conversar comigo e com Camilla através da porta fechada. Claro que só havia a gente na casa. Luiz pouco ficava lá, ele dizia ter outros negócios a se fazer.

Era 17 de março, Luiz ficou em casa do dia inteiro. Era seu aniversário. Camilla e eu não comemos o dia inteiro. Eram 18 horas, mais ou menos, quando Luiz entrou pela porta do porão com dois copos d’água. Camilla tomou sua água mais rápido que eu, bebi até a metade e dei o resto à ela.

“Como devem saber, hoje é meu aniversário e quero uma pequena festa.” –Ele disse.

Eu já sabia onde isso ia chegar. Ele pediu para que Camilla se levanta-se. A impedi, mas Luiz não parava de gritar. Ele a levou para cima e fui obrigada a ficar trancada no porão. Me sentei no degrau próximo a porta e eu não conseguia deixar o meu pé parado.

“Ele a levou para o quarto?” –Perguntei a Rafael.

“Sim.” –Ele respondeu rapidamente.

Eles demoraram quase três horas e enfim, Camilla é jogada para dentro do porão. Toda descabelada, chorando e arrumando sua blusa. Ela passou por mim como se não tivesse me visto sentada no canto da escada. Desceu correndo até o colchão e por lá se encolheu o máximo que pode. Me sentei ao seu lado e quando fui tocar seu braço, ela deu um tapa em minha mão. Eu não podia me aproximar. Permaneci sentada ao seu lado. Sempre após chorar muito, Camilla dormia e nem percebia. Parecia que eu havia saído do meu corpo e Camilla era eu. Também tive medo das pessoas. O pânico de sair na rua era maior que eu. Mas o medo de ficar em casa, também era grande. Vivi em conflito por anos.

Camilla acordou e não olhou para mim. Permaneceu na mesma posição que estava. Subi as escadas e me sentei próxima a porta.

“Luiz ainda está ai?” –Perguntei a Rafael.

“Está na sala.” –Ele respondeu.

“Me leve ao banheiro.” –Eu disse.

Rafael abriu a porta e fez o que pedi. Passei por Luiz na sala. Ele estava deitado no sofá, vendo um canal de esportes. Fiz o que se faz no banheiro. Não demorei muito e sai.

“O que você fez com Camilla?” –Perguntei ao passar por Luiz.

Rafael parou de andar e me deixou em frente a Luiz. Ainda deitado no sofá, Luiz começou a rir. Como se buscasse palavras para me responder. Sem me olhar e vidrado na televisão, Luiz continuou rindo.

“Você deve se lembrar muito bem daquela vez.” –Ele disse.

Olhei ao redor e vi um jarro com flores, já murchas. O peguei e joguei em Luiz. Para sua sorte, o jarro era de plástico. Ele ficou todo molhado por causa da água. Luiz se levantou rapidamente e levantou sua mão para bater em meu rosto. Rafael o impediu.

“Já não basta a trancar no porão sem comida?” –Disse Rafael.

Nunca imaginei que Rafael fosse me defender um dia, ainda mais na frente de Luiz. Rafael ficou segurando a mão a qual Luiz me bateria e a soltou aos poucos. Luiz se voltou para mim e ficou me olhando aqueles olhos que me davam calafrios.

“Volte ao porão.” –Disse Luiz.

Antes que Rafael me levasse até lá, eu mesma fui na frente. Esperei Rafael destrancar a porta, mas ela estava aberta.

“Você não trancou.” –Eu disse entrando.

Rafael fechou a porta atrás de mim e pude ouvir a chave rodar. Desci as escadas e Camilla não estava mais lá. Procurei em cada esconderijo possível e nada de eu achar Camilla.

“Rafael, Camilla sumiu!” –Eu disse batendo na porta.

Ele rapidamente destrancou a porta e fomos procurar por ela. Luiz ainda estava na sala, catando as flores caídas sobre o chão e o sofá. Rafael foi procurar nos fundos e fui até a cozinha. Camilla estava parada no meio da cozinha com uma enorme faca em sua mão. Seu rosto estava para baixo e seu cabelo o cobria.

“Camilla?” –Eu disse.

Assustada, ela levantou seu rosto e parecia perdida. Ainda com a faca na mão, andou em minha direção. A segurei pelos ombros, mas Camilla estava determinada a fazer algo de ruim. Ela forçava sua caminhada e eu estava fraca. Ela conseguiu se soltar e caminhou até a sala. Gritei por Rafael, enquanto eu tentava segurar Camilla. Ela entrou na sala e apontou sua faca para Luiz.

“Solte a gente.” –Ela disse.

Luiz largou as flores no chão e ficou olhando para a faca na mão de Camilla.

“Me passe o telefone.” –Disse Camilla.

Sua voz estava grossa e imponente. Ela estava determinada a tirar a gente de lá. Luiz caminhou para o telefone e o pegou. Ele ofereceu o telefone a Camilla, mas na hora que ela foi pegar, ele recuou. Por reflexo, Camilla fez um corte no braço de Luiz. Ele gritou e Cristina apareceu com duas mulheres e tomaram a faca de Camilla com um golpe rápido. Fomos trancadas no porão novamente. Conseguíamos ouvir os gritos de Luiz. Parecia que o corte fora profundo.  

No dia seguinte, Cristina nos amarrou e nos bateu por vinte minutos. Estavam batendo nas pessoas erradas. Luiz havia levado vinte e cinco pontos no antebraço. E Camilla toda hora repetia que era para ter acertado sua garganta. Talvez agora, ao invés de estarmos apanhando, estivéssemos mortas, junto com ele.

“Quando vamos sair daqui?” –Camilla me perguntou chorando.

“Em breve.” –Respondi.