Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 57
Capítulo LXIX




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LXIX

 

Quando fui abrindo os olhos, a primeira coisa que senti foi como se houvessem colocado milhares de pedregulhos dentro de minha cabeça. O sangue latejava em minhas têmporas, pressionando-as. Uma sensação muito parecida com aquilo que chamavam de “ressaca”, acredito (pelas minhas poucas observações das conversas alheias, uma vez que eu jamais havia bebido nada alcoólico).

O quarto era branco, um branco tão puríssimo quanto o das nuvens de um céu primaveril. Feito de lenços e cortinas tecidos de vapor e um cheiro almiscarado. Incenso, talvez? Tive a impressão de estar no céu, apesar de uma réstia de razão, acordada junto comigo, estivesse me dizendo que aquilo, definitivamente, não era o Paraíso. Nem o Inferno.

Ao longe, como se fossem ondas rebentando na praia, o som da chuva que ainda teimava em derramar-se sobre nossas cabeças era como uma cantiga de ninar. Mas, mesmo a tranqüilidade que me assaltou por alguns segundos foi substituída assim que as imagens começaram a dançar, projetadas em minhas pálpebras.

O cond Shelser tentando estancar seu próprio sangue, Mitchell caindo em uma inconsciência eterna, e a própria Emma acompanhando-o...

- Onde eu...?!

Ao erguer-me, dei-me conta que aquele era um quarto com um ar aristocrático demais para ser o quarto de empregadas, por exemplo, da mansão Sunderland. Nem sequer era a carruagem, o pátio gelado de chuva.

Eu estava vestida com o que parecia ser uma camisola branca. Surpresa, percebi meus cabelos secos e meus braços totalmente enfaixados, sem mais nenhum traço de sangue, apenas uma leve sensação de uma dor ardida, que eu imaginava que seria minha companheira pelas próximas semanas.

- Já acordou, senhorita? Está sentindo-se bem?

Assustada, virei-me imediatamente para a direção de onde ouvi a voz estranha. No canto do quarto, cuidando do que parecia ser uma coleção de instrumentos médicos (que me trouxeram de imediato uma má recordação, envolvendo Victoria Barrington e uma faca de cozinha), uma moça enfronhada num vestido de branco vaporoso estava me sorrindo delicadamente.

Reconheci-a como lady Catherine Bursnell, a médica. Seus cabelos estavam presos em uma trança jogada displicentemente do lado direito do corpo. As madeixas acastanhadas adquiriam um tom meio dourado com a luz do candelabro perto de si.

- Isso é... Incenso?... – perguntei, confusa, sentindo aquele aroma almiscarado, com uma leve sensação de doce, preencher meus pulmões.

- Sim. – assentiu-me, cuidadosamente. – Cedro e âmbar. Serve como energizante e estimulante.

- Funciona mesmo... – suspirei, aspirando um pouco mais aquele cheiro. – Tão logo acordei, me senti muito melhor... Ah, permite-me perguntar que horas são?

- Estamos na lua do amanhecer, senhorita Baker.

A morning moon, literalmente, o índigo delicado que antecede o amanhecer de um dia completamente nublado, já estava ali? Quanto tempo eu dormi?!

- Minha nossa... – sussurrei, surpresa. Na verdade, achei até que havia se passado mais tempo, quase que dias.

- ...Seus braços ainda doem?

- Bem pouco. – disse. Sabia que aquelas eram perguntas médicas, rotineiras, e que eu não devia mentir, portanto. – A senhorita quem me... Tratou?

- Sim. – sorriu-me outra vez.

- Muito obrigada, milady Bursnell.

- Por favor, não me agradeça... – e ela sacudiu, muito delicadamente, num gesto que eu esperaria de uma dama, a sua cabeça. – Em verdade, eu quem lhe devo agradecimentos. Ou melhor, as Quatro Famílias lhe devem.

- Hã?... – talvez, fosse a anestesia ou a inconsciência de algum tempo que estava me impedindo de raciocinar direito.

Mas, afinal, eu estava exausta. Não podia mais pensar em nada.

Aproximando-se de mim, Catherine Bursnell sentou-se numa das cadeiras que havia ao lado da cama onde eu estava. O farfalhar de seu vestido foi, tirando o som de minha respiração, talvez o único som naquele lugar inteiro. Quando ela aquietou-se, baixando os olhos cristalinos, foi como se o mundo se calasse.

- Com o cond Edward Shelser morto... – ela suspirou, enfim. – Acredito que, finalmente, as coisas possam seguir em frente. Estávamos presos em sua influência, e o fato de ele querer continuar com as barbáries que nossos antepassados cometeram nos atrapalhava bastante. Mas, agora... Obrigada, senhorita.

- O cond... Morreu...? – eu estava em choque.

- Sim. Complicações devido a perda de sangue gradativa. – lady Catherine ajeitou-se melhor na cadeira, encarando-me firmemente. – Hemorragia.

Baixei os olhos, deixando de olhá-la, e concentrando-me em meus próprios braços enfaixados. Eu não acreditava que Edward Shelser merecesse aquele tipo de destino. No início, eu o odiava profundamente. E, até agora, o temia bastante.

Mas, mesmo assim... Ele não era, de todo, maligno. Era apenas um humano. Como Mitchell dissera a Victoria antes da mesma morrer também, “no mundo existem apenas uma centena de motivos justos, e o mais forte os transforma em força e poder, podendo até mesmo escolher entre a democracia e a ditadura”. A culpa, em verdade, sequer era dele...

- Ele será enterrado onde...?

- No Merseyside Cementery. Onde todos os nobres o são.

- Será que ele iria querer ir justamente para onde todos os seus antepassados foram, engolidos por aquele vórtice inescapável?... – ponderei.

Aparentemente, Catherine Bursnell entendeu minha preocupação, mas vi que ela não poderia fazer nada quanto a isso. Era algo além de suas forças.

- Imagino que a liberdade seja algo que ele não conseguirá sequer na morte...

E, por algum motivo, aquilo não me deixou nem um pouco feliz. Apenas com um nó na garganta e uma imagem pesarosa de uma pessoa que mais parecia um brinquedo quebrado.

- ...E Victoria? – provavelmente, se era assim, os Bursnell, como legistas e médicos, já deviam saber do segundo cadáver.

- Cuidaremos para que ninguém sequer saiba que ela jamais esteve morta.

Assenti. Ao menos, o corpo deles teria o devido respeito. – Obrigada...

- Milady Catherine, muito obrigada por...

Percebi que aquela figura que eu tão bem conhecia me olhou, pálida e parada à porta, como se estivesse vendo um fantasma. Eu sorri, desejando ver também um sorriso seu, mas então, Irisa Baker começou a chorar.

Bursnell abriu espaço e deixou que minha mãe me abraçasse com uma força que a julguei incapaz de ter, escondendo o rosto em meu peito. Abracei-a, afagando seus cabelos de um cobre líquido perfeito, enquanto sorria amarelo para a lady que nos acompanhava; a mesma apenas devolveu-me o sorriso, como se dissesse que não se importava com aquilo.

- Eu vou deixá-las a sós... – a lady de cabelos acastanhados disse, repentinamente, levantando-se. – Certamente, têm muito que conversar.

- Ah, obrigada... – sorri.

- Senhorita Irisa, a senhorita pode...?

- Claro, eu falarei sobre isso. – mamãe assentiu, fazendo-me erguer a sobrancelha. Outra vez, segredos pra cima de mim?

Tão rápido quanto falou comigo, Catherine Bursnell sumiu pela porta do quarto, deixando-me sozinha com Irisa Baker naquele lugar branco e perfeito.

- A senhorita está bem, mamãe?! – foi minha primeira pergunta. Tantas coisas atravessavam minha mente, tantas perguntas, tantos comentários... Eu mal sabia por onde começar.

- Estou ótima, meu bebê. – ela disse, secando as lágrimas, mas ainda me mantendo em seu abraço. – E você? Está melhor? Não dói nada?

- Absolutamente nada... – sorri. Mães...

- Você estava lamentável quando a encontrei.

Sim, eu lembrava disso. Lembrava-me do frio cortante que foi, repentinamente, surpreendido pelo calor em meu rosto depois de um soco. Lembrava-me da sensação de ter a pele de Edward Shelser em meus dentes, e até mesmo do gosto de seu sangue. E, lentamente, lembrava-me da consciência esvaindo-se, escapando por entre meus dedos como gotas de água.

- Achei que fosse morrer de novo agora... Estava tão...

- “De novo”? Eu morri?! – arregalei os olhos.

- Lady Catherine não lhe contou...? – mamãe Irisa, aparentemente, surpreendeu-se com a minha reação.

Bem, por isso aquela moça disse, afinal, que nós tínhamos muito sobre o que conversar. Realmente, não estava errada!

- Você foi esganada, Cora. – ela, então, foi me explicando. – Enquanto os Bursnell tratavam-na, na carruagem mesmo, você morreu uma vez. Seu coração parou de bater por mais de um minuto... Achei mesmo que fosse morrer de novo.

Peguei-me assustada com o fato.

Minha nossa, eu havia, realmente, morrido!...

- Ah! – repentinamente, porém, lembrei-me de outras coisas bem mais importantes no momento que minha pseudo-morte e como eu estava ali, limpa, curada e em paz. – E a Emma?! Como ela está?!

Irisa sorriu-me, deslizando a mão por meus cabelos. – Não se preocupe com lady Shelser. Foi a primeira a acordar e já queria circular pela mansão Bursnell, ajudando no que pudesse. Lady Catherine teve um trabalho e tanto para convencê-la de que ela devia permanecer na cama, recuperando-se.

Falar naquele sobrenome, invariavelmente, fazia-me lembrar de Edward, e de como ele não merecia o destino que teve.

- O que vai ser agora dos Shelser, mamãe...?

- Possivelmente, ou algum parente terá que vir cuidar das riquezas da família, ou Emma, como a única herdeira, será quem comandará tudo.

Numa sociedade patriarcal, aquilo seria bem difícil, não...?

- Mas, o que eu posso afirmar com certeza... – ela continuou, surpreendendo-me, uma vez que havia se instalado um silêncio pacífico entre nós. – ...É que, com a morte de Shelser, poderemos confiar no futuro. Agora, não haverá mais motivos para continuar com aquilo. O futuro está aí. Cond Edward era o único que não o desejava: antes disso, queria vingar-se. Mas, agora, para o alívio de todos, finalmente poderemos ser apenas uma cidade normal, com uma história estranha, porém sem mais fantasmas... Acredito realmente que não haverá mais motivos para prisões e segredos. E as futuras gerações... Elas agradecer-nos-ão muito por isso.

Os filhos legítimos que mamãe deveria ter tido.

Os irmãos que Edward Shelser devia ter visto crescerem.

Tantas outras vidas que foram sacrificadas no decorrer deste ciclo vicioso de loucura e trevas enterradas em corações alheios, como ferro em brasa.

- Sim... Isso é bom... – concordei, cada vez mais percebendo meus olhos úmidos de lágrimas. – É muito bom...

O adocicado aroma de incenso penetrava-me até a última fibra do ser, acalmando-me por breves instantes. Talvez, aquele cheiro transformasse mesmo as pessoas. Eu me sentia cada vez mais sábia, de alguma forma, e cada vez menos aquela Cora de algumas horas atrás.

Deixei que mamãe Irisa acariciasse as costas de minha mão, abandonando-me à doce exaustão depois de uma noite daquelas. Já não sabia se ainda deixava minha mente trabalhar ou simplesmente adormecia.

Quase cedendo à tentação da voz macia da segunda opção, percebi que algumas empregadas corriam para lá e para cá pelos corredores, a porta aberta permitindo-me aquela visão. Irisa Baker parecia ignorá-las, mas eu via, por seu olhar, que ela prestava atenção em cada mínimo passo. Elas vestiam uma roupa branca, mas o avental tinha manchas avermelhadas características: sangue puro.

Soerguendo a sobrancelha, refiz meu trajeto. Acordei, falei com Catherine Bursnell (e ela escondia coisas, é claro, como toda a médica faz, para que seu paciente não perca tempo se preocupando e piore sua recuperação), depois fui interrompida por Irisa... Perguntei de Emma, do cond Shelser, de Victoria...

- Mamãe, onde está Mitchell? – e senti meu corpo enrijecer subitamente, lembrando-me, enfim, de quem eu mais queria saber sobre.

Como se tivesse sido agredida, Irisa Baker cravou seus olhos esverdeados em mim, entreabrindo a boca, surpresa.

- Bem...

- Ele está bem, não é? – e, desta vez, já ia me levantando.

Lembrava-me com perfeição de seu corpo atirado na água da chuva, da poça de sangue que, exponencialmente, ia aumentando, sugando todo o índigo ao seu redor, até que ela era a coisa mais vívida do cenário.

E lembrava-me de Edward e sua voz profunda e assustadora:

Está morto...”.

- Por que está me impedindo de levantar?! – perguntei, ao ver que ela me segurava nos ombros e forçava-me de volta para a cama. – Onde ele está?!

Encurralando-a até o fim, mamãe não teve alternativa.

- Saí do quarto um pouco para ir ver Emma, que está dando seu sangue para Mitchell... O jovenzinho perdeu praticamente todo o dele... Está tendo recaídas horríveis, quase morreu três vezes... Está ardendo em febre, e... – engoli em seco, percebendo meu corpo amolecer instintivamente, como se estivesse se protegendo de uma notícia daquelas. – Pedi para lady Bursnell cuidar um pouco de você, mas que não contasse nada, caso acordasse... Agora, ela voltou para lá, com seu pai, para ajudar o jovem Mitchell... Mas eu não sei... Ele está muito mal...

- E como ousou me manter aqui, mamãe, quando Mitchell está passando por algo assim?! – bradei, irritada. – Preciso ir lá!

- Não precisa, não! – ela replicou. – Não há nada que você possa fazer, e isso só piorará sua recuperação! O que você precisa é ficar quietinha aqui!

- Não, eu...

- Não é preciso ir até lá, senhorita.

Como que pregada à cama, diante de nós, a silhueta etérea de um senhor igualmente vestido de branco, assim como toda aquela casa, apareceu. Ele tinha um monóculo do lado esquerdo do rosto, e uma cicatriz profunda no olho, no mesmo lado. Os cabelos eram sedosos e acastanhados, iguais ao da filha.

- Cond Bursnell?... – sussurrei, incrédula.

Sua roupa estava maculada de vermelho vivo. E eu tinha a ligeira impressão de que sabia de onde o mesmo saíra.

- Sinto incomodá-la, senhorita Baker... – ele suspirou. – Mas, como a...

- “Noiva”, acredito. “Noiva” dele. – completei, angustiada. Eu não conseguia olhá-lo nos olhos, tinha minha atenção voltada para o vermelho de sua roupa.

- ...Noiva do jovem Sunderland, acredito que deva ser a primeira a saber disso.

- Devo sair, cond Bursnell? – mamãe Irisa sussurrou, tão assustada quanto eu.

Meu estômago dava voltas, nervosamente. Se ela saísse de perto de mim, eu certamente morreria. – Não... Fique aqui, mamãe...

- Tudo bem, senhorita Irisa Baker. Fique com sua filha. – ele assentiu.

- Obrigada. – ela também o fez.

- Devo avisá-la sobre nossas últimas notícias... Foi uma longa noite, essa. Esforçamo-nos todos, e por isso...

- O que diabos aconteceu com o Mitchell? – arranquei das profundezas de meu desespero aquela voz.

- Bem...

Ele tinha marfim na roupa e o mundo no olhar.

E, então, só me restou sua notícia.


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