Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 55
Capítulo LXVI




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LXVI

 

Um frio que nada tinha a ver com o vento que bufava com força e insistia em lamber meu rosto úmido de lágrimas do céu. Pude senti-lo atravessar todo meu corpo, percorrendo cada reentrância, delineando experientemente meus músculos; um frio que eu nunca havia sentido antes.

Com um baque surdo, até mesmo abafado, em parte, pelo som da chuva, Mitchell caiu ao chão, como um boneco quebrado, enquanto o florete deslizou para longe do alcance de suas mãos. Não tardou para que o líquido viscoso e rubicundo começasse a escapar, manchar o chão dos jardins da mansão com sua presença. Eu não sabia onde o segundo golpe o havia acertado; só vi que era em algum local que fez o corpo dele parar.

Achei que fosse cair ao chão, incapaz de manter-me mais com a força de minhas próprias pernas. Por sorte, Emma ainda conseguia dar-me um pouco de apoio, mesmo eu fazendo a maior parte do trabalho.

Um brilho dourado rompia o azul da noite escura em meus olhos. Um brilho das luzes alabastrinas de minha memória.

Aquele seu sorriso discreto tinha o mesmo iluminar imaculado.

Seus olhos eram tão preciosos quanto a cor daquela luz...

E tudo que eu via, porém, no segundo seguinte, era Edward Shelser erguendo-o pela gola e observando seu rosto:

- Está morto... – ele riu. – Aquele que disse que ia me matar!

Não. Alguém com um sorriso tão cálido não podia estar assim, mais parecendo um brinquedo avariado, jogado em uma poça do próprio sangue.

Como num carrossel que girava o mundo ao meu redor até que ele tornasse-se apenas uma confusão de sensações e pingos gelados no rosto, meu estômago seguia o mesmo rumo, embrulhando-se numa ânsia de pânico.

Um grito que jamais escapou de minha garganta perdeu-se na escuridão daquela passividade que selou o destino de Mitchell Sunderland.

Caí de joelhos, de forma patética, não suportando mais meu próprio peso e a ação da Gravidade sobre mim. Fiquei ali, sentindo o vestido molhar ainda mais, o frio penetrar até a medula dos ossos, enquanto implorava um segundo, apenas uma oportunidade de recuperar a voz.

Quis me arrastar até seu corpo e sacudi-lo. Quem sabe, ele falasse meu nome, abrisse os olhos ou, ao menos, se mexesse. Fui assaltada de pânico quando um raio desceu, retumbando pelo cenário, num som imponente e grave, colorindo nossas silhuetas de uma argêntea luz.

O nome de Mitchell, aquele nome que rondava minha cabeça como uma enxaqueca, foi a primeira coisa que Emma exclamou, então.

Como se isso o pudesse trazer de volta...

- MALDITO! – ela bradou, subitamente tomada de uma fúria assassina que eu desconhecia, mas que possivelmente devia tê-la impelido, por exemplo, a matar seu irmão, o lord Sirius.

- Emma, não!... – e, mesmo assim, meu apelo foi mais uma voz perdida.

Ignorando qualquer sinal de fadiga que pudesse ter, enquanto eu acompanhava, temerosa, a trilha de sangue que ela deixava, lady Shelser distanciava-se cada vez mais de mim, com uma força que jamais achei vê-la dona, e aquele enfeite de cabelo de mamãe Irisa virou a sua nova espada (ou algo do tipo). Feri-lo tão obviamente era uma missão suicida, até ela própria sabia.

Como a racionalidade que ainda restou em mim previu, o pulso da lady foi pego antes mesmo dela poder cravar aquela pseudo-arma um centímetro que seja no pai.

- Emma, querida... – Shelser suspirou. – Mitch já me feriu o suficiente. Não posso permitir que você termine o serviço, certo? Não, quando você sequer pôde me tocar quando lutamos a sério.

Talvez, fosse culpa de meu pânico. Talvez, visão seletiva. Mas, assim que Edward disse aquilo, meus olhos analisaram seu corpo e, de fato, gotículas discretas de sangue caíam por seu casaco negro, indo juntar-se ao escarlate profundo da poça aos seus pés.

A tática de usar roupas negras ou vermelhas era bastante comum em guerras, isso eu lembrava. Escondia o sangue de ferimentos e não desestimulava os soldados em suas missões.

...Surpreendi-me por estar lembrando de aulas imbecis de História quando Emma Shelser tombou diante de mim, depois que ouvi o som parecido com um graveto seco ecoar. Ergui-me na mesma hora, tremendo incontrolavelmente.

- O que fez com ela?!... – rosnei.

- Não quebrei a sua coluna, se é a sua dúvida, senhorita Baker. – ele me tranqüilizou (ou tentou). – Tudo que fiz foi... Apertar um ponto especial em sua nuca. Ela ficará bem quietinha por alguns minutos. É o suficiente.

Claro, para alguém com conhecimento militar como ele, isso não seria problema algum. Ao menos, Emma estava viva. Imóvel, sem voz, mas viva...

Mas e Mitchell?...

Deus, ele não podia estar morto.

Porque, se estivesse... Eu morreria com ele...

- Enquanto Emma está fora do jogo e Mitch morreu, que acha de nos divertirmos um pouco, senhorita? – e, como um raio, a verdade despejou-se em mim, fazendo minhas pernas bambearem. – ...Só nós dois.

Senti-me o pior lixo de todos quando vi que estava abandonando um cadáver (apesar de estar rezando para que fosse apenas mentira...) e uma mulher ferida para salvar minha própria pele. Dei meia volta e tentei correr, até mesmo senti a descarga de adrenalina dando-me mais força para tal, mas braços muito mais fortes agarraram-me no instante seguinte, jogando-me ao chão no que pareceu ser a miniatura de um maremoto, jogando água para todos os lados e arrancando-me um gemido surpreso.

Meus braços pinçaram de dor, e eu tive a impressão que as feridas abriram-se ainda mais, sangrando como nunca. Tentei até mesmo retorcer-me em agonia, mas nem isso me foi permitido; meus pulsos estavam firmemente contidos em uma única mão de Edward Shelser e eu estava, afinal, rendida no chão.

Mergulhei em uma escuridão lamentável, a cabeça envolta em labaredas de dor que se estendiam por todo meu corpo, enquanto todo o cenário parecia convergir, o céu, a chuva, os trovões... Tudo vinha abaixo, como que também rendidas pela gravidade, e como se estivessem me esmagando.

- Você é louco!... – ironicamente, esta frase era a minha máxima com Mitchell, em nosso início de convivência. – O senhor é completamente doente!

...Que espécie de maníaco sentiria-se excitado numa situação daquela?!

- Gosto de mulheres assim, cheias de energia. – ele disse, simplesmente, com um sorriso divertido. – Guarde-a, senhorita Baker. Vai precisar dela.

- DIABOS, PARE COM ISSO!

Insensível aos meus apelos, a mão livre e enluvada do cond Shelser deslizou por meu vestido, tateando os botões do mesmo. Debati-me como um peixe quando é tirado da água, tentando, de qualquer jeito, livrar-me daquele aperto de ferro. Mas era impossível fazê-lo.

O medo veio acompanhado de uma sensação de vertigem que me fez derramar as primeiras lágrimas de desesperança, enquanto meus olhos caíam, derrotados, para a silhueta em uma camisa que devia ser branca e que, agora, estava totalmente manchada de vermelho.

Mitchell, minha mente chamava o tempo todo.

Seu nome tornou-se um mantra. Eu sabia que Emma também podia me ajudar, que logicamente eu deveria estar pedindo a ajuda dela, mas...

Está morto”.

Mitchell..., eu continuei.

Não saberia explicar como, mas consegui soltar uma de minhas mãos daquele aperto. De imediato, tentei afastá-lo socando seu peito, mas em nenhum momento Edward deu-se por vencido. Continuou procurando alguma forma de abrir meu vestido, mas quando viu que não conseguiria, uma vez que sua vítima estava se debatendo demais, preferiu um meio mais fácil: e eu senti minha saia sendo levantada.

Enfim, aquela mão livre pôde fazer o que eu achava que ele queria desde o início: cravar-se em meu pescoço como garras de uma ave de rapina. Tentei gritar, mas a voz não saiu. Eu estava... Perdida.

Enquanto meu corpo recusava-se a se entregar sem luta, minha mão livre entrou por dentro do seu casaco, batendo em suas costas com a pura intenção de ter meu punho atravessando-o, mesmo sabendo que aquilo era um sonho distante.

Foi quando senti...

Um tecido macio e um tanto mais levantado, formando um relevo conhecido em suas costas. Tive a impressão de que Shelser estremeceu de leve.

- Uma marca?! – exclamei, assaltada de um pânico que não tinha mais nada a ver com a violência que eu sofreria. – O senhor... Está marcado?!

Os olhos de fendas felinas fixaram-se sobre os meus. E suas mãos pararam imediatamente com tudo o que estavam fazendo.

- Ora, ora... Você descobriu meu segredo... – ele suspirou, parecendo nem um pouco perturbado por isso.


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