Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 52
Capítulo LXIII




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LXIII

 

O grito que deveria ter saído de minha garganta, e que talvez tivesse contribuído para aquela súbita falta de ar que tive, jamais a deixou. Continuou preso ali, assim como meus olhos, que não puderam desviar-se da cena. Como se meu corpo respondesse a um sadismo primitivo, a algum desejo de punição irracional, eu ouvi claramente o tiro, eu vi sua trajetória, o destino final e as conseqüências.

Percebi, tardiamente, sem nada poder fazer, quando Victoria Barrington destravou mais uma vez a arma, como se tivesse uma perícia que me era até então desconhecida. Mais um tiro; mais um grito que nunca me deixou, enquanto uma parte de meu cérebro já imaginava o pior, como o cheiro de um cadáver Sunderland juntando-se à essência fétida daquele quarto.

Chega!”, eu desejei gritar. E desejei que me ouvissem pensando. “Se continuar assim, vai morrer!

“Lydia Usher” o olhava com um misto de nojo e pena, como se ele fosse apenas um cãozinho muito resistente.

- Vamos, Mitch. Recue ou eu vou acabar te matando... – ela suspirou, num tom de voz que me fez odiá-la ainda mais, se fosse possível. – E eu, sinceramente, não quero fazê-lo tão rápido e de forma tão deprimente. Uma pessoa como você, que foi inflexível mesmo diante de minhas artimanhas mais bem-boladas, merece um pouco de honra na hora da morte. E merece muita dor.

...Eu concordei com Victoria. Mitchell devia recuar e ir para bem longe.

Não iria me importar de continuar ali, ser marcada e, talvez, torturada até a morte. Se ao menos soubesse que ele estaria bem, já seria um bom consolo. Tolo, porém o suficiente.

Mas, Mitchell não recuou.

- Já disse que eu vou te matar com essa mesma arma que ousou ferir minha Cora. E essa decisão me obriga a não recuar, mesmo diante dessa dor.

Continuou vindo até nós, até que a própria lady homicida ergueu a sobrancelha, profundamente espantada.

- Você devia estar morto... – ela sussurrou, incrédula, depois do quarto (ou talvez quinto) tiro, quando meu corpo já não respondia mais ao meu estremecimento, num misto nauseante de pânico e agonia.

Ele apenas sorriu, confiante, para nossa surpresa.

- Você, mais do que ninguém, deveria saber do poder de uma convicção.

Quando a distância entre Mitchell Sunderland e Victoria Barrington podia ser medida com o esticar de um braço de algum deles, Mitchell fez exatamente isso, num gesto rápido que meus olhos, cada vez mais embaçados pelas sombras da inconsciência, não conseguiram acompanhar.

O corpo de Victoria oscilou e, lentamente, começou a afastar-se. Mas Mitchell não a deixou ir muito longe, logo a enlaçando mais uma vez naquele abraço que precedeu pingos vermelhos no chão.

Eu percebi, enfim, que a faca com a qual ela me ferira até o ponto das alucinações já não estava mais em sua outra mão, a mão nua e com o símbolo do reinado de vidro e cristais frágeis. O cheiro doce daquele perfume que sua toilette exalava esbofeteou-me, enquanto uma percepção que eu não queria considerar real, finalmente, veio acariciar a consciência.

Victoria caiu de joelhos ao chão, e a mão que segurava a arma, ainda com o dedo no gatilho, pareceu ficar repentinamente desprovida de forças, caindo ao seu lado, inerte como a de um cadáver.

Depois do que pareceram segundos intermináveis de silêncio, onde eu sequer me ouvia respirar, a voz de Mitchell fez-se ouvir:

- A percepção... O cérebro excita as percepções mecânicas que temos. Da mesma forma, a moral não passa de interesse e paixão. Na fonte de todos os valores, está o instinto da sobrevivência e conservação. O direito não passa de aplicação de força. – ele sussurrava, ainda mantendo Victoria colada a seu corpo. – Neste mundo, do jeito que você me ensinou, só existem uma centena de motivos justos e egoístas. Não existem nem “mocinhos” nem “vilões”. E quem faz prevalecer uma opinião... É aquele que detém a força. Não existe nenhum outro meio para isso senão a força.

- “Homo”... – ela sussurrou em retorno, fazendo-me ter a impressão de que havia destroçado em alguma parte daquela frase. – “Homo homini lupus”...

- O maior sofrimento de um ser pensante é ser desprezado. Então, este mesmo ser deseja a vingança e adquire o rancor. O rancor é irracional, porém é uma ferramenta de grande motivação. Ele procura vingar-se, mas jamais deseja a morte de seu adversário... Ele deseja o cativeiro. Para poder, calmamente, ler em seu olhar submisso e atemorizado o reconhecimento da própria superioridade.

Victoria deixou escapar um gemido quase que gutural, e eu tive a ligeira impressão de que ela realmente estava se partindo.

O sangue aos pés deles só aumentava, e me fazia sentir a cabeça dar voltas nervosas em seu próprio eixo.

- O direito de uma pessoa só tem limite quando se findar seu desejo e sua vontade. Não existem leis no universo; apenas a vontade do mais forte. Só isso. – continuou. – Por isso, eu a compreendo, Victoria Barrington. E a perdôo.

Um som de carne sendo perfurada trouxe-me à realidade. Mas, antes que eu pudesse sequer compreender de fato, um jato de sangue manchou a camisa de Mitchell de profundo escarlate, como se o vestido de Victoria estivesse derramando lágrimas e perdendo sua própria cor, a sua identidade, indo fixar-se no branco puríssimo e imaculado.

- Você...! – eu a ouvi dizer, uma última vez, enquanto seus olhos, até onde os podia ver, demonstravam o ódio que ela levaria.

- Meu objetivo foi mais forte que o seu. – disse-lhe, segurando-a pelos ombros para que não caísse ao chão.

Como se aquela frase tão comum e, ao mesmo tempo, tão esmagadora, tivesse sugado suas últimas reservas, ela deixou-se levar, como uma dócil ovelha. Os olhos desviaram-se do rosto plácido de Mitchell, aquele que ela tentou matar até então, e fixaram-se na arma que revelara ser de seu pai. E ficaram ali, como se aquele pedaço de metal pudesse evocar alguma lembrança na qual se agarrava com toda a força.

Com um último suspiro, eu percebi que Victoria morrera...

E a faca que antes me feriu estava cravada abaixo de seu peito, descendo em linha reta com um risco de sangue e carne aberta à força.

Por mais que ela não merecesse, algo em mim não se negou em sentir pena, ao menos, daquela pobre criança. Victoria não era má. Ao menos, não tão diferente de mim. Tudo o que ela fez foi importar-se apenas com o seu desejo, ignorando quantos iria ferir ou ter que matar no meio do processo.

Não era diferente, por exemplo, de uma criança que pisa numa formiga apenas porque a mesma teve a infelicidade de cruzar seu caminho. Em nenhum momento ela pensou na dor alheia, em todo o fardo que essa decisão a fez carregar, quase que inutilmente, quando ela poderia ter conseguido tudo isso por métodos muito mais demorados, mas muito mais honrados... Realmente, não era em nada diferente da falta de emoção de uma criança que sequer liga para uma formiga morta, quando ela estava levando comida que garantiria a sobrevivência das companheiras.

O mundo era assim. Homens, formigas e consciências. E, como disse Mitchell, é só uma questão de vencer o mais forte dos ideais. Por isso, mesmo que ela tivesse me subjugado e desejado acabar com minha vida... Mesmo eu sendo tola por sentir isso, e eu sabia do fato, ainda sim, enchia-me de desgosto ver alguém tão jovem ter sua vida finalizada por um motivo tão infame, quando ela podia ter sido tão diferente, só mais uma pessoa influenciada não tão negativamente pelo meio.

Dediquei-lhe uma prece silenciosa, finalmente entendendo minha própria frase, proferida naquele fim de tarde. “Se você não fizer isso, quem mais o fará?”.

...Victoria estava sozinha desde o dia em que nasceu, afinal.

Ainda sob o efeito do susto, percebi tardiamente quando Mitchell remexeu nas roupas do cadáver e tirou dali uma chave de aparência delicada e plúmbea.

Como se aquilo tudo fosse apenas mais uma ilusão, não acreditei quando suas mãos tocaram nas minhas, por mais que todos os poros de meu corpo gritassem com todas suas forças que aquilo não podia ser um sonho, nem quando meus pulsos sentiram o rufar de um ar desconhecido neles, sem mais nenhum metal aderindo à pele. Assim foi, momentos depois, com meus tornozelos.

Vi-me livre. Incrivelmente livre.

- Mi... Mitchell...? – e, então, sussurrei, incrédula. Poucas partes de minha consciência queriam acreditar que aquilo era real.

- Eu demorei. – ele me respondeu. – Desculpe.

Naquele instante, achei que Victoria esbofetearia mais uma vez meu rosto, acordando-me de uma nova e cálida ilusão. E, então, eu encontrar-me-ia presa, com Edward Shelser e ela me encarando. Porém, nada daquilo aconteceu. Tudo que me restou foi a impressão de calor e seus olhos me encarando.

- É você...? – sabia que aquela era a pergunta mais óbvia e a mais tola de todas, mas foi tudo que ocorreu-me.

- Eles te machucaram a ponto de sequer me reconhecer, Cora?... – sussurrou-me, com um olhar tão receoso que me fez rir.

Não me importei, temporariamente, com o fato de que estávamos os dois a sangrar como idiotas, com um cadáver próximo de nós, num lugar fétido e escuro, em cujas paredes úmidas e retorcidas num negro que beirava uma sensação esmeraldina sussurravam promessas de dor e agonia eternos.

Naquele momento, eu apenas ri, enquanto apertava-o contra mim como se o mundo fosse realmente se desfazer em brumas amargas mais uma vez.

- Desculpe... – devolvi. – É que você fez uma cara tão...

- ...Eu quem peço desculpas. – porém, sua voz estava séria, e ele não sorriu mais depois que me disse aquilo.

- Não é preciso. – sacudi de leve a cabeça. – Você chegou bem a tempo... E me salvou... Como sempre... Bem a tempo.

Uma onda nostálgica de dor assaltou-me quando ele me abraçou com ainda mais força, tocando de leve seus lábios nos meus. Mas não era aquele tipo de dor angustiante que rasgava tudo que encontrava, quando fui esfaqueada, por exemplo. Era uma dor por não ter podido fazer nada; presa em impotência, restou-me vê-lo me salvar, como uma donzela em perigo. O papel que eu mais detestava serviu perfeitamente para mim.

Porém, apenas por um instante, eu quis dar-me um presente e esquecer tudo aquilo. Concentrei-me apenas no calor de seu corpo contra o meu, ainda que as roupas úmidas da chuva me congelassem até a alma (em adição ao frio que já sentia pela perda de sangue). Quis apenas ficar daquele jeito por quanto tempo nos permitissem; e soube que, apesar de tudo, aquele era um dos momentos mais felizes de todos. Numa irônica prisão, numa situação assustadora e, ainda sim, era feliz.

- Houve um momento em que achei que estivesse morta... – ele me confessou com uma voz abafada, enquanto escondia o rosto na curva de meu pescoço. – Pensava em me deixar morrer se isso acontecesse...

- Eu também achei que você fosse morrer depois de...

E, então, a realidade.

- Mitchell, você ainda está ferido! – e, com uma delicadeza que quase me achei não possuidora, toquei em seu abdômen, que se manchava cada vez mais do líquido vermelho que pingava ao chão.

- Você também está, boneca. – replicou-me, com um sorriso irônico.

Bufei, visivelmente irritada. – Não ouse discutir comigo!

- Vamos sair daqui, está bem? – ele continuou sorrindo, o que, de certa forma, apesar de minha irritação por ele estar ignorando minha preocupação (de novo), me aliviou. – Segure-se em mim. Está frio e meu casaco está com Emma.

Encostando os lábios em minha testa, ele a beijou. – Vou te tirar daqui, certo?

- Tudo bem, apenas vá logo, por favor... – implorei, enquanto pensava no quanto mais ele agüentaria perdendo aquela quantidade absurda de sangue sem desmaiar ou morrer.

Erguendo-me no colo, Mitchell foi caminhando devagar, deixando um rastro de sangue tão vermelho quanto o vestido de Victoria para trás. Uma última vez, divisei a silhueta dela, esbelta e perfeita até mesmo na morte, enquanto aqueles olhos azuis tão perfeitos que lhe eram característicos espelhavam o vazio etéreo da inconsciência eterna. E, depois disso, engolfada na escuridão tênue daquela prisão, Victoria Barrington desapareceu de minhas vistas para sempre.

Quase às cegas, Mitchell foi subindo os degraus de volta à superfície comigo em seus braços, uma vez que a claridade do fogo em brasa e das velas que iluminavam lá embaixo roubava apenas alguns poucos centímetros da escuridão. Tudo que encontrei foi o silêncio e os pingos de sangue e água caindo ao chão ao mesmo tempo, num ária bizarro e assustador.

Lá em cima daquela escadaria de pedra, na presença daquele fedor que acompanhava-nos onde quer que estivéssemos, adivinhou-se a presença de uma porta. Possivelmente, a mesma porta que trouxera Mitchell e Emma Shelser até ali, e por onde eu entrei, inconsciente. Atravessando com passos vacilantes o poço de escuridão, ele tocou na maçaneta e empurrou a porta, abrindo-a com um gemido cavernoso que ecoou em meus ouvidos.

O cheiro de terra molhada invadiu minhas narinas, de imediato. Olhei em volta, mas só o que vi foi uma casa vazia, uma mansão tão bela quanto a dos Sunderland, e uma porta de entrada entreaberta, de onde se podia ouvir o ricochetear violento da chuva no chão. Foi para lá que nos dirigimos; lentamente, enquanto eu pensava nas pobres empregadas da mansão e no susto que tomariam quando vissem aquele rastro de sangue saindo das profundezas do ventre da morada.

Quando os violentos cristais de água caíram sobre meus ombros, os braços, fragilizados pela dor e fadiga, foram os primeiros a arderem diante de tal tortura da natureza. Forcei-me a abraçar as costas de Mitchell com mais força, cerrando os olhos, apenas para não lhe dizer nada, não ser um incômodo ainda maior.

- Está doendo?... – perguntou-me, porém. Eu sabia que não poderia esconder muito tempo algo dele.

- Não... – insisti, emendando uma mentira. – É só o frio...

- Vou colocá-la na carruagem e acharemos algo para te secar. – e, enquanto dizia aquilo, apertava-me mais em seu abraço. – Agüente só mais um pouco, sim?

- Sem problemas... – sussurrei.

- Boa menina. – acariciou meus cabelos. – Continue assim só mais...

Antes de completar a frase, Mitchell caiu de joelhos no chão, erguendo uma porção de água que alcançou a barra de meu vestido. Assustada, toquei-lhe no rosto e ergui-o para que me encarasse, e pude ver o quanto a palidez da morte estampava-se ali; assustei-me, achando que a chuva tivesse-lhe roubado a cor. Ele estava mais branco do que eu jamais imaginei.

- O que aconteceu...?! – perguntei, tomada de súbito pânico. – Dói algum lugar? São os ferimentos das balas?!

Ao tocá-lo na testa, tive um susto.

- Você está quente...!

- Minha imunidade... – sacudiu a cabeça, pondo uma mão sobre a boca. – Não são os ferimentos das balas...

É claro. Como eu fui imbecil.

Mitchell estava debaixo de uma chuva torrencial, entrou em um lugar, de certa forma, aquecido, e depois, abaixo mais uma vez de chuva torrencial. Antes disso, saiu naquela manhã gelada. Mais do que lógico que seu sistema imunológico, eternamente fragilizado por nunca ter tido chances de se desenvolver devidamente, iria reclamar tudo aquilo com uma febre terrível.

Só ouvindo seu arfar, pensava no que podia fazer. Ajudá-lo a se arrastar até a tal carruagem, levá-lo à milady Catherine e esquecer tudo aquilo (não antes de procurar Emma, claro). Enquanto eu fazia aquilo, me sentindo uma tola por não agir e tirá-lo debaixo da chuva de uma vez, ouvi passos.

Meu sangue congelou, impedindo-me de mover até mesmo os lábios, em surpresa. Mitchell também se retesou, eu senti. Lentamente, com uma força que não sabia que possuía, virei-me, e divisei diante de nós uma silhueta negra, imensa e de olhos assustadores.

- Ora... Os dois ratinhos saíram da toca também?

Edward Shelser tocou em seu florete manchado de sangue, olhando-nos com uma diversão tão óbvia no olhar que eu estremeci.

- Aquela Emma... Teve o que mereceu por nos atrapalhar. – ele dizia, enquanto deslizava o dedo pela superfície maculada da arma. – Espero que você não me decepcione e seja, ao menos, um inimigo aceitável, Mitch. Levante-se e vamos resolver isso, sim?


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