Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 49
Capítulo LVIX / Capítulo LX




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LVIX

 

- Vic, já chega.

Quando eu achei que aquela faca penetrar-me-ia outra vez no braço, uma mão negra e enluvada segurou o braço de Victoria Barrington, impedindo-a de continuar. Eu ouvi, com um indescritível alívio, o som metálico dela caindo ao chão. Pingos de sangue mancharam o vestido já vermelho dela, e outros se espalharam pelo chão.

Meus braços formigavam, mas eu já pouco os sentia. Pequenos choques de dor espalhavam-se por cada nervo, e iam impiedosamente rasgando as células, uma a uma, anunciando sua chegada como uma campanha militar que destrói qualquer espécie de vida que encontre em seu caminho. Já sentia a consciência enevoando, um passo para o desmaio que viria em breve.

- A senhorita Baker vai morrer de choque se continuar a esfaqueá-la.

Contra minha vontade, Edward Shelser, que chegara, provavelmente, naquele exato momento, adquiriu as proporções de um santo. Porque, tão logo ele sussurrara aquilo, com aquela voz fria e controlada que lhe era característica, “Lydia Usher” pareceu recuperar a razão que perdera para a fúria animalesca de segundos atrás.

- Sim... Sim... Tem razão, sim... – ela passava a mão enluvada pelos cabelos, deixando um rastro pequenino de sangue que espirrou ali.

- Fique calma. Respire fundo. – pousou as mãos em seus ombros trêmulos.

Victoria respirou tão fundo, tão quebradiça, que eu achei que fosse se partir. E percebi o quanto ela, de alguma forma, estava em frangalhos.

- É essa maldita prisão. Está me dando nos nervos, Ed... – ela sussurrou.

- Logo, você vai sair. Fique calma agora.

Virando-se para mim, eu estremeci. Agora, os lábios vermelhos, antes crispados, estendiam-se molemente em um sorriso. Um sorriso de donzela, tão perfeito e hipnotizante que eu me perguntei se ela não foi possuída por algum demônio para ter uma reação tão extrema antes.

Victoria Barrington aproximou-se de mim, enquanto eu não conseguia mais deixar de chorar baixinho, e limpou o pó que se grudava em minha roupa, batendo de leve no vestido, com o mesmo carinho maternal de quando limpou minha testa.

- Perdão, Cora. – ela suspirou. – Acabei me descontrolando. Por um momento, senti minha consciência voar, e... Ah, perdão...

- Peço desculpas pela Vic, senhorita Baker. – Shelser sorriu-me. – Porém, espero que entenda que seria desperdício de medicamentos cuidar de uma pessoa que está aqui para ser morta.

Deixei-me pateticamente ceder ao peso de minha cabeça, o pescoço estalando no meio do processo, e baixei os olhos, vencida.

...Eles não esqueceram que iam me matar.

Eu ainda estava cercada de loucos.

Tive uma vã esperança, uma ilusão feliz de que eles iriam me perdoar, talvez reverem as acusações (que eu desconhecia). Não. Eu estava apenas me iludindo; o fato de estar naquela prisão já era meu atestado de óbito.

- Eu devia ter esfaqueado seu útero, não é? Que idiotice a minha ter feito isso com seus braços!... – ela lamentava-se, passando a mão por meu rosto úmido de lágrimas. – Vai ficar cicatriz... Minha nossa, sinto muitíssimo por isso.

- Por que...? – sussurrei.

Em verdade, eu já havia morrido há muito tempo, depois da segunda ou terceira facada, quando a consciência já estava pesando, envolvendo a sala em um labirinto intrínseco de pontos negros, que iam comendo cada metro dali, enquanto a outra parte, invisível para mim, ia devorando-me por dentro, fazendo até mesmo a dor ser uma lembrança do passado.

- Por que... Fazem isso...?

“Lydia” tocou-me no queixo, me obrigando a erguer os olhos para ela. Seu sorriso já não me inspirava confiança; pelo contrário, me fazia temê-la cada vez mais, e esperar invariavelmente um segundo descontrole.

Fiquei com medo de sequer falar-lhes. Pensava que minhas palavras, por menores que fossem, iriam irritá-los e piorar meu estado. Meus braços e meu corpo todo estavam trêmulos de dor, enquanto meus olhos pesavam cada vez mais, prontos para sucumbirem. Mas eu sabia que não podia fazê-lo. Se desmaiasse, seria meu fim. E, mesmo assim, nada do que eu fizesse iria me ajudar.

...Já estava morta mesmo.

- “O pentagrama é um símbolo do mal, quando reverso. Atrai espíritos malignos”. – ela me dizia, maquinalmente, sem uma entonação na voz. – “O símbolo da luxúria atacando os céus com seus chifres”.

Eu já havia lido exatamente isso.

- “O centro do pentagrama é, no Satanismo, referido ao lugar onde os anjos caídos estão”. – continuou, deslizando o dedo enluvado por meu rosto. – “Os Nephilim são descendentes diretos dos anjos caídos”.

No diário daquela mesma mulher. Ela estava-o recitando.

- “O hexagrama é mistério do mal, usado para rituais, para a contenção. É o talismã de muitas bruxas do ocultismo”. – e seu sorriso aumentava a cada oração proferida. – “É também o símbolo da unidade, de todos os planetas juntos”.

- Por descuido de Victoria, você já tem a resposta, senhorita Baker. – Edward Shelser sorriu-me. – Apenas... Junte as peças.

Tentei evocar em minha mente o cheiro de eau de toilette que aqueles pedaços de papel exalavam. Em minhas memórias, ainda lembrava de como imaginava Victoria Barrington sentada em algum lugar, o caderno sempre nas mãos, sempre pesquisando, sempre descobrindo e anotando tudo. De como as informações eram esparsas e desorganizadas e, mesmo assim, tinham ligações umas com as outras quase sempre.

Lentamente, lutando contra meu próprio torpor mental, como num quebra-cabeças, mãos invisíveis foram montando peça por peça, e pequenas réstias de luz escaparam da escuridão, iluminando um desenho. Aos poucos, os traços tomaram forma; as peças encaixaram-se.

Um suspiro abandonou-me, enquanto as correntes que me prendiam sacudiam-se em vão.

- Você... Você descobriu sobre “a outra vida” de Edward Shelser... E, muito provavelmente, contou-lhe isso... – eu gemi, incrédula. – Mas, ao invés de denunciá-lo... Você uniu-se a ele...

Pássaros negros encobrindo o segredo.

- Victoria, você... Vai levar adiante essa tradição, é isso...? – sacudi a cabeça, ainda mais assustada. – Por isso fingiu a própria morte? Claro, com a ajuda de Shelser, a Lei, isso seria fácil demais. Você enclausurou-se aqui para...

- Parcialmente certo, minha pequenina.

Finalmente abandonando meu rosto, a mão dela ergueu-se até a altura de seu peito, as costas de sua mão viradas para mim. Então, com movimentos delicados e calculados, ela foi tirando aquela luva.

Um amontoado de linhas foi se revelando.

E, quando finalmente a mão de um branco leitoso e de unhas perfeitas e vermelhas revelou-se, eu senti o dom da respiração abandonar-me: linhas negras. Linhas negras em ângulos perfeitos. Uma miniatura do terror.

O hexagrama e o pentagrama sobrepostos.

- Este é... O símbolo do “Rei”. – ela sorriu-me.

Para minha maior surpresa, Edward Shelser aproximou-se daquela mulher assustadora, e com a mesma calma, também tirou aquela luva que eternamente cobria as mãos.

O mesmo símbolo nas costas de sua mão.

- O símbolo que demonstra a soberania absoluta do “Rei” aos “marcados”. - ele completou. – Victoria também escreveu sobre isso. Não devia mesmo ignorar a simbologia das costas e das mãos, senhorita Baker.

- Sabe qual é o melhor nessa história, Cora?

Neguei, em silêncio, sentindo o suor frio brotar uma vez mais.

- É que nós também vamos te marcar! – e sorriu, radiante.

Como se fosse a palavra que faltasse, o cond Shelser pôs outra vez a luva na mão, enquanto dava meia volta e trazia para perto de nós o que parecia ser uma espécie de grelha.

Com um pânico que jamais poderia transcrever em palavras, percebi o calor dourado que emanava, as luzes vermelhas que coloriam toda a sala fétida e úmida, muito mais do que qualquer candelabro de velas. Pequenos riscos alaranjados chispavam, vindo aderir-se à minha roupa, outrora verde, que se coloria de um tom semelhante ao sépia diante de tal luz.

Um ferro estava descansando sobre as brasas, incandescendo a ponto de eu ouvir com uma clareza incrível o metal gemer, lambido pelas chamas.

- O que acha de “De Temeto Dios Tukos” só para, enfim, ser considerada filha legítima de Irisa Baker? – ele riu.

Estremeci, enquanto as lágrimas uma vez mais invadiam meu rosto.

- Por favor...! – gemi. Infelizmente, todo aquele sangue-frio me abandonou depois da primeira facada.

Eu já não era mais senhora da situação, e sabia disso.

- Isso, implore bastante. – “Lydia” passou a língua pelos lábios. – Isso torna tudo muito mais interessante, digno de uma tragicomédia.

 

LX

Contra meu próprio senso de lógica, eu estou sendo chicoteada pela chuva torrencial, ouvindo os trovões e o relincho dos cavalos ao longe. E, mesmo assim, em minha mente, só tenho as recordações daquele dia de sol e calor úmido, quando você me ensinou o seu ofício, Matt.

O cocheiro. Você cuidava dos cavalos, mesmo nem sendo esse o seu trabalho, como se eles fossem pessoas. Sempre admirei esse seu carinho por todos, seres vivos ou inanimados, seres que ficaram e os que até já se foram. Você era um bom rapaz, Matthew. Por isso, quem sabe, morreu.

Afinal, eu nunca fui uma pessoa admirável.

Ninguém chorará a minha morte. Pelo contrário, se sentirão, enfim, aliviados quando souberem que eu morri. Isso, se ainda me reconhecerem.

Do mesmo jeito que você me ensinou, eu puxo as rédeas dos cavalos, tão logo paramos diante da enorme construção que data desde a fundação de St. Helens. Com uma arquitetura que beirava o horror gótico, a mansão Shelser, se possível, era até mais ameaçadora do que a Sunderland, em sua fachada. E, de fato, por dentro ela era igualmente podre.

A noite se coloria de índigo profundo, derramando sobre nossas cabeças lágrimas pesadas e cristalinas. Um trovão ecoou, rasgando as nuvens com um som ensurdecedor que me fez encolher os ombros. Os cavalos assustaram-se, mas eu os controlei logo; não podia deixar que nos ouvissem, apesar de duvidar muito que o fariam com tamanha tempestade.

- Desçam, os dois. – bradei, batendo no vidro do coche.

- Senhorita Irisa... – Emma Shelser encarou-me, com aqueles seus olhos desconsolados.

- Eu vou ficar aqui, milady. Vou esperá-los.

Era uma boa menina, ela. Eu pensava, com nostalgia, como tudo seria diferente se alguém como Emma comandasse aquela família doentia.

...Possivelmente, você estaria vivo, Matt.

- Por favor, Irisa, proteja-se da chuva. – Mitchell, o meu outro menino, pediu-me, segurando o pulso dela, enquanto isso.

- Certamente. – assenti. – Não percam mais tempo ou ficarão igualmente resfriados, crianças.

Sorri. Sorrir era tudo que eu podia fazer.

Dar-lhes minha confiança e esperá-los. Infelizmente, eu não podia mais fazer e acontecer. Estava além das minhas forças.

- Voltaremos logo. – ele avisou.

- Cuide-se, senhorita... – e ela o seguiu.

Um aperto circundou meu coração ao imaginar aquela filha que eu criei com todo o coração jogada numa cela como aquela onde eu fiquei.

E parecia que uma mão invisível apertou-me a garganta quando pensei no que Edward Shelser já poderia ter-lhe feito.

Sem pensar, desci do coche e aproximei-me de um dos cavalos. Acariciei sua crina, distraidamente, e baixei os olhos.

E a chuva, aquele chão gelado e aqueles animais foram as testemunhas de minhas preces diáfanas.


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