Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 35
Capítulo XLIII




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XLIII

Quem não se lembraria do dia em que matou pela primeira vez?

Há coisas que jamais esquecemos. Uma delas é isso. Dentre as tantas, matar pela primeira vez... A sensação, o clima, os sentimentos... Nem o mais habilidoso e experiente dos assassinos esquece sua primeira vítima.

Noivas nunca esquecem da sua primeira vez, do primeiro sorriso do marido, da primeira vez em que ele, possivelmente quando namorados ou noivos, lhe disse “eu te amo”. Nenhuma mãe esquece da sensação de pegar o filho pela primeira vez, do primeiro banho, da primeira vez em que o sentiu mexer-se no ventre...

Primeiros, primeiros.

O número um sempre será o absoluto. O primo.

Depois de uma primeira vez, seja lá o que for, já não é mais o mesmo. É tudo diferente. O gosto da surpresa cessou. A excitação de medo e surpresa dissipa-se aos poucos, e deixa tudo com um prisma tão diferente.

Não que eu vá me tornar uma serial killer em busca de satisfação.

...Mas eu jamais irei esquecer a primeira vez em que matei.

Estávamos eu e você, lembra, Sirius? Sozinhos no terraço.

Nem se eu forçar a memória, sinceramente, não vou lembrar do que estávamos começando. Naquela época, tudo parecia como que embebido de sonho. Eram tempos em que não foram raras as vezes que acreditei estar apenas vivendo uma fantasia ruim, um pesadelo do qual me acordariam... Em breve. Eu esperava. Muito em breve.

Não vamos mentir, Sirius. Nenhum de nós estava raciocinando direito.

Chega de mentiras, não acha, irmãozinho? Acho que finalmente acabou. Victoria Barrington já chegou muito perto de descobrir e Cora Baker finalmente desenterrou esse segredo, que antes era exclusivo de Mitchell.

...De certo modo, eu aprendi esgrima para isso.

Eu queria te matar e matar o papai. Queria a cabeça dos dois no meu quarto, com toda a pompa, para que eu as admirasse e sentisse todo o ódio que quisesse, o ódio e todas as reações que vocês sempre me privaram de ter, naquela pele de uma delicada e comportada milady.

Eu tinha dezessete anos, Sirius. Estava envergonhada, assustada, desesperada... E muito, muito solitária.

Cheguei ao ponto de implorar ao Mitch que se deitasse comigo, que me amasse invariavelmente, que se casasse comigo e me protegesse de vocês dois pra sempre, ignorando até mesmo o fato de que ele jamais poderia fazer isso; Mitchell também é um ‘objeto’, assim como eu.

Talvez eu tenha arrastado esse gesto errôneo até hoje. Porque, tão logo eu me vi livre daquele nojo, corri mais uma vez aos braços do Mitch e implorei um casamento. Um casamento que, agora, não me pertence mais, e sim, a essa menina que está na minha frente, me encarando com olhos assustados enquanto eu conto toda a nossa história, meu irmão.

Que tipo de garota, nobre ou da plebe, iria gostar de ter um pai psicopata, um irmão ensandecido e uma vida dedicada a servi-los doentiamente, como se fosse a prostituta particular de ambos? Eu nunca fui diferente. Detestava aquilo, mas não sabia o que fazer para ver-me livre.

Tantas e tantas vezes quis fugir... Esconder-me, talvez até me matar.

Então, um dia, a luz: matar. É isso. Não precisava me matar. Eu podia matá-los e meu nível social me impediria de um destino cruel em cadeias.

Mas eu nunca me importei necessariamente em ser presa. Eu só queria matá-los e fazê-los me deixar em paz. Só isso. O resto seria conseqüência, algo que pouco me importava.

Pedi ao Mitchell e ele me ajudou. Ainda me lembro com nostalgia de como treinávamos arduamente esgrima, de como ele tentou demover-me da idéia de matar; eu não iria suportar o peso de uma vida. Não, eu dizia. Não, eu iria suportar tudo que viesse por causa daquelas mortes. Até mesmo o peso de uma vida.

...Tornei-me uma assassina no dia em que decidi isso.

Já não era mais uma alternativa perdoar meu pai ou mesmo você, Sirius. Eu os queria mortos ou mortos.

Eu fiz de tudo para evitar que Edward Shelser me... Mas não, ele era o meu pai, um patriarca, um homem grande e assustador. Eu jamais poderia me negar a fazer algo para ele sem dar-lhe explicação. Por isso, omiti meus sentimentos. Menti, aceitei participar daquela atração tragicômica ridícula, como se fosse algo natural.

Quis me sentir como você, Sirius. Você já havia se fundido àquela sujeira. Não sei como, mas você já não mais achava tudo aquilo absurdo.

Quis ser como você, meu irmão... Só naquele momento, eu desejei isso.

Não me lembro, indo contra a teoria que eu mesma formulei inicialmente, quantos anos tinha quando meu pai me violentou pela primeira vez.

Mas lembro-me de como, freqüentemente, íamos ao quarto dele. Às vezes, nem precisava ser ali. Eu cuidava sempre para que nunca houvesse ninguém quando ele queria algo comigo, mas sempre tinha medo de sermos pegos. Às vezes, lembra-se, Sirius? Você também estava lá. Papai obrigava-nos a fazer coisas com ele... E outras vezes, fazíamos coisas eu e você.

Era nojento. Era doente. E eu me sentia extremamente pesada depois que tudo terminava, depois que eu respirava com certo alívio.

Ora... Cora estremeceu. Ela é mesmo uma alma tão estranhamente pura, dá até um pouco de inveja. Tive de rir daquele seu rosto de criança desamparada. Acho que ela realmente surpreendeu-se com isso.

Mas forcei-a a continuar ouvindo. Eu gostaria muito de jogar tudo isso fora.

Aprendi esgrima. O suficiente para poder cravar uma espada em seu peito, Sirius. Sim, porque primeiro, decidi, seria você.

Lembra-se do que eu falei? Porque eu não lembro.

Só o que recordo é de como começamos a discutir. Você ficou alterado. Claro, nenhuma mulher ia contra você. Muito menos eu, sua irmã, um simples... ‘Objeto’.

Um objeto...

Lembra-se de que tentou me agarrar? Eu gritei, pedi que me soltasse, mas você não ouviu. Jogou-se em mim e parecia um animal.

Então... Você me violentou. Mas, não sei o que aconteceu, você não conseguiu ejacular e ficou ainda mais furioso. Arrematou-me com mais força enquanto me apertava o pescoço, e eu gritava, gritava, mas ninguém iria vir me ajudar. Eu já sabia desde o início.

...Sabe, Sirius, vou te confessar uma coisa, apenas para você, que já está morto e não pode mais me incomodar: eu preferia você, se fosse para escolher. Papai é violento e grosseiro. Você, ao menos, não era como ele. Doía e me deixava enojada, mas não era como ele. E isso já era muito.

Eu comecei a chorar, assim que você conseguiu o que queria e me largou. Estava vendo tudo preto, minha voz estava falha, muito rouca, e meu corpo tremia. Você tentou me matar, meu irmão...

E, então, fiquei irada. Acho que não raciocinei mais, porque corri, limpando as lágrimas, erguendo a barra do vestido rasgado, até o quarto, e quando toquei no florete, foi como se ele tivesse exalado um aroma tão inebriante que me capturou numa escuridão feita de ações.

Quando acordei, você tinha sangue na barriga, sangue no chão, e me olhava de uma forma tão ameaçada que eu soube o que tinha feito.

Olhei para meu florete. Estava encharcado de sangue.

...Eu estava matando Sirius Shelser.

Devia ter parado, não é? Qualquer pessoa normal teria parado. Mas não, assim que me dei conta de que tinha mesmo enfiado aquela espada no estômago daquele homem, não quis mais parar. Eu quis fazer de novo.

Foi a primeira vez. Ela é sempre a mais assustadora. Depois, tudo passa.

Ah, Cora, pare de me olhar desse jeito cheio de pena. Não gosto quando as pessoas sentem pena de mim.

Lembra-se do que eu gritei, Sirius...?

Eu me lembro. Falei tudo. Falei de como eu me sentia por ter um pai e um irmão que achassem natural que eu, uma familiar, alguém que eles deviam preservar, submeter-se às suas sandices. De como eu estava farta daquilo. De como me doía, de como eles me machucavam e de como sangrava por dentro e por fora... De como era degradante, doente, totalmente desnecessário.

Lembro-me até de ter brincado com você, meu irmão. Em lágrimas, eu me ajoelhei sobre seu corpo ensangüentado, depois de tantas perfurações (e admito, você foi um ratinho resistente!), e comecei a rir, um riso histérico e nervoso, e perguntei-lhe como era agora que eu estava por cima. Se era divertido, se ele estava gostando, se queria que eu penetrasse mais fundo, como ele fazia comigo.

Será que estava bom assim?

Meu vestido estava empapado de sangue quando Sirius Shelser parou de se mexer. O chão tinha uma poça bizarra que ia se alongando, a medida que meu irmão se arrastava para tentar fugir de mim. Meu florete também estava totalmente escarlate, o metal maculado.

Mas eu não estava triste. Nem assustada. Eu ria.

Com verdadeiro prazer.

Entretanto, foi com horror que divisei a silhueta de meu pai. Ele ouviu? Desde quando estava ali? Ele viu que eu...

Edward Shelser, aquele homem que se chamava ‘meu pai’, encarou-me, lavada em sangue, e desviou os olhos felinos para meu florete. Em seguida, encarou o filho favorito banhado ainda mais em seu próprio sangue, os olhos abertos, a boca escancarada num grito que nunca saiu. Morto naquele terraço, apenas com meus olhos e a lua como testemunhas. E, agora, com ele.     

Por muito tempo, eu achei que aquilo foi surreal demais. Ele estava ali? Ou não estava, era tudo uma ilusão?

...Não tive tempo de me decidir.

Agarrando-me pelos cabelos, meu pai ignorou todos meus protestos, todos os gritos e as luzes da casa ligando, possivelmente com alguém nos ouvindo. Ele ignorou tudo, com olhos neutros, um rosto totalmente neutro, uma pose impassível. Nem parecia estar sentindo qualquer coisa pelo assassinato que presenciou.

E, enfim, eu conheci de perto aquela prisão. Fui jogada naquele mesmo chão imundo e o cheiro de excrementos invadiu meu nariz. Milhares de olhos cegos e vítreos me encararam, e com horror, percebi onde ele me colocou.

Lembro-me de ter arranhado a porta quando o vi fechá-la e trancar, e pedido perdão inúmeras vezes, mas ninguém mais estava lá.

Dois anos, Sirius.

Por ter cometido fratricídio, por ter te matado, fiquei dois anos lá.

E fui oficialmente rebaixada à condição de ‘objeto’, quando meu pai gravou em mim a marca dignada aos pecadores. A marca igual à de Mitchell, igual à de Irisa Baker, igual a tantas outras que eu vira.

Dois anos depois, quando saí, eu descobri que em St. Helens instalara-se o boato de que eu viajara por causa da morte de Sirius. Ele havia sido elevado à condição de herói, e contava-se que havia sido assassinado enquanto resolvia um caso policial. Um herói sujo...

Eu estava mais uma vez sozinha. Desta vez, para sempre.

...Foi quando Mitchell me acolheu. E me agradeceu.

“Muito obrigado”, ele me sussurrou no ouvido, enquanto me abraçava tão forte que eu achava que fosse me partir. “Muito obrigado por ter matado Sirius, Emma.”

Emma... Ele me chamara pelo nome pela primeira vez.

“Mas eu só nos livrei de um carrasco. Ainda sobra o outro.”

“Nos livrou...?”

“Ele me marcou, Mitch”, respondi-lhe, agarrando-me mais à roupa dele. Doía como doeu fisicamente lembrar-me daquele dia. “Ele me marcou...”

“Eu sinto muito”, então, virou esta a frase que eu ouvi a partir de então.

Não foi mais ‘obrigado’. Foi ‘perdão’.

...Mitchell, eu nunca fiz isso por você. Mas, naquele instante, eu quis acreditar que tinha me sacrificado por sua causa. Passei dois anos naquele lugar e quase perdi a sanidade. Nem posso imaginar o que são dez anos lá.

Eu quis acreditar nisso, juro-lhe.

E, a partir daquele dia, eu também desejei treinar esgrima para sempre com você. Mas você não tem esses sentimentos por mim.

Somos apenas duas pessoas com uma mesma sina.

...Mas eu ainda acredito que aquele Mitchell que me pediu desculpas e me agradeceu com a mesma emoção é só meu.

Nem mesmo você, Cora, vai ter aquele Mitchell pra você.

...Essa é uma lembrança só minha.


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