Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 33
Capítulo XLI




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XLI

Nunca quis fazer parte desta família. Desde pequena, eu ouvia sobre os deveres de um Shelser. De como era uma nobre missão a de limpar as impurezas de St. Helens. De como éramos os escolhidos de Deus, desde prístinas eras purificando e varrendo os pecadores, como se eles fossem o pó de Sodoma e Gomorra. Meu irmão Sirius sempre acreditou nas palavras de meu pai.

Mas eu nunca o fiz.

Mamãe morreu muito jovem. Ela casara com meu pai, mas tão logo descobriu sua natureza, não suportou sozinha muito tempo. Eu fui fruto de um estupro, não de amor conjugal. Uma dupla humilhação por ter nascido mulher, tanto para minha mãe, a digníssima lady Charlotte Shelser quanto para meu pai, o assustador cond Edward Shelser. Tão logo ela deu-me à luz, entregou-se pacificamente às complicações do parto, falecendo na mesma noite.

Charlotte foi-me sempre uma figura que eu via em quadros e ouvia falar de Sirius e papai. Mesmo tendo sido uma mulher distante, uma vez que jamais a conheci de fato, tinha pena dela. Porque, desde pequena, eu adivinhei esse destino. Ninguém me contou do suicídio premeditado, do estupro, nem mesmo de sua loucura. Mas me contavam pequenas coisinhas que eu ligava e, com isso, formava um novo quadro, um vitral bem mais assustador.

Sempre tive medo de meu pai. Ele era um homem imenso e assustador, que somente com sua presença impunha respeito nos funcionários. Não mais se casou depois de mamãe, mas eu nunca entendi porquê não o fez.

Sirius estava sempre atrás dele. Sempre com papai.

Sirius era sua sombra, seu aprendiz. Sirius iria, um dia, levar adiante a missão incompreendida e secreta da família Shelser.

Desde tempos imemoriais, nós éramos os donos da lei. Nós cuidávamos do cumprimento da paz, ocupávamos o lugar de Têmis nesta terra, a titã da justiça. Éramos oficiais, militares, detetives... A personificação viva dos negócios que envolviam humanos e sangue.

Sim, minha vida resumiu-se assim. Um mar de sangue e humanos esquecidos.

A primeira vez que fui à prisão, eu tinha sete anos.

Lembro-me que minha primeira reação foi a de tapar o nariz, porque o fedor que exalava daquele quarto, uma mistura de mofo, esgoto que vinha sabe-se lá de onde e excremento de ratos causava-me até mesmo uma ardência nas narinas. Depois, me lembro de ter ficado assustada.

Sim, eu fiquei surpresa, porque havia um menino lá dentro. Ele estava encolhido na parede, com os olhos fixos num ponto qualquer, abraçando os próprios ombros, tremendo de frio, talvez de medo.

Não o culparia por ter medo. Eu mesma fiquei muito intrigada e assustada.

Como podia aquela criança loira como um querubim estar num lugar tão impuro? Como ela podia estar agüentando sem perder a sanidade ser olhado pelas inúmeras bonecas na parede, todas fixando seus olhos vítreos e cegos nele?

Nunca senti tanta pena de um ser humano antes.

“Papai, por que este menino está aqui?”, eu lhe perguntei. “Quem é ele?”

Tocando-me no ombro, papai entrou naquela cela junto comigo, fechando a porta amadeirada que fedia a mofo logo atrás de nós, com um rangido tétrico.

Aquele menino tinha os olhos mais azuis e brilhantes que eu já vira.

Olhos feitos de medo e alfazema.

“Esta criança chama-se Mitchell Harpper, Emma”, meu pai me disse, enquanto caminhava até aquele menino.

Eu quis protegê-lo, porque percebi que a criança (não sei porque o chamo assim se, hoje, sei que ele é dois anos mais velho que eu. Talvez porque ele estivesse tão frágil que parecesse um bebê) chamada Mitchell encolheu-se ainda mais.

Edward Shelser, o homem que se denominava ‘meu pai’, pegou Mitchell pela gola da camisa puída que usava e baixou-a. Tão folgada quanto estava, escorregou por seu corpo pálido e magro, e eu dei um passo para trás, assustada, deixando meu vestido perfumado de eau-de-toilette, algo tão diferente do fedor e da decadência daquele lugar, tocar a porta de madeira gélida.

Nas costas daquela criança, o brasão da família Shelser estava desenhado por baixo do que parecia ser uma coleção horrenda de marcas de chicote.

“O que é...”, sussurrei, sem acreditar.

“Este menino é um ‘prisioneiro’ nosso. Uma ‘propriedade’ nossa, Emma. É nosso dever como a família Shelser limpar sua alma de todos estes pecados que carrega”.

...Por que você não reage, menininho?, eu me perguntava.

Naquele dia, naquela prisão, na frente de um Mitchell Harpper totalmente submisso e silencioso, papai me contou muitas coisas. Fez-me descobrir um mundo que eu até então desconhecia. Um mundo que eu via desenhado nas costas daquela criança pálida como um espectro.

Um mundo que me enojou desde o primeiro segundo, mas que invariavelmente foi feito para me engolir.

Ele fez uma demonstração.

...E eu não gosto de lembrar da demonstração.

Depois daquele dia em que meu pai me levou para as prisões dos Shelser, ele contou a Sirius que eu já sabia. Sirius era um rapaz com seus já quatorze, talvez quinze anos. Ele já havia se fundido com a podridão daquele lugar.

Eu soube de tudo.

O pentagrama, o hexagrama, “Malos Spiritus Sigillent”, os Nephelim, anjos caídos, uma longa história, chicotes, rituais de tortura, expiação e perdão... Era uma estória doente, escrita com sangue e sofrimento, lágrimas e muita dor.

Desejei, naquele instante, não ser uma filha de Edward.

Mas, então, começou a minha dor.

Agora que eu já sabia de tudo, que já tinha idade para também participar daquela dança macabra, precisava ocupar o meu papel. O meu papel de concubina.

Servir meu pai e meu irmão tornou-se uma rotina.

Eu rezava todas as noites para que nenhuma empregada desconfiasse (apesar de eu achar que, no fundo, todos sabiam da natureza de meu pai e meu irmão, mas ninguém teria poder de revelar ao mundo isso) das coisas que me faziam realizar, das sandices que propunham, de toda a minha agonia e as noites intermináveis nas quais eu chorava baixinho, abafando os soluços na barra da saia ou num travesseiro fofo de penas.

Num daqueles dias feitos de fogo do inferno, eu vi em minha casa uma roda de empregadas cuidando do que parecia ser um rapaz.

Um belo rapaz, alto e de olhos tristes de alfazema.

“Mitchell Harpper!”, eu gritei na mesma hora. Reconheci a criança encolhida e submissa das prisões. Ele estava mesmo vivo?! Na minha casa?!

Aquela criança, agora, já era um rapaz muito distinto. E, quando seus olhos colocaram-se nos meus, minha alma palpitou.

Eu também tive medo de seu olhar, como tinha do de meu pai.

Eram olhos tão repletos de tristeza e frieza ao mesmo tempo, de uma aura que se tornava densa e formava uma impenetrável barreira ao seu redor, que fiquei automaticamente muda, sem conseguir proferir uma palavra.

“Não me chame mais assim. Eu sou Mitchell Sunderland”, ele me respondeu, friamente, num tom rouquenho que eu jamais tinha ouvido de seus lábios mudos.

As empregadas pareceram dar-nos licença, abrindo espaço para que eu me aproximasse um pouco mais dele.

“Sunderland?... Então você vai...”

“Alrick e Anne Marie Sunderland morreram. Becka Sunderland está para morrer também. A única alternativa lógica tornou-se eu. Logo, estou deixando o cárcere para viver em regime de liberdade”, explicou-me ele, num tom indiferente que eu senti que guardava muito rancor.

Respirei fundo, contendo a palpitação incômoda no peito.

“Então, você só deixou aquela prisão, mas vai continuar servindo ao papai...?”

“Enquanto eu tiver essa marca nas costas, Emma Shelser, e enquanto Edward Shelser tiver um corpo vivo e pulsante, eu serei um ‘objeto’, não um ‘humano’...”, confessou-me, parecendo indiferente também àquele fato. “Já estou suficientemente satisfeito que ‘meu senhor’ tenha deixado-me sair daquele lugar”.

O silêncio preencheu o hall de entrada, enquanto eu olhava sua figura.

Mitchell Harpper crescera e se tornara um distinto cavalheiro. Ainda era um rapaz, claro, mas ficara extremamente belo. Era muito mais branco que qualquer donzela que eu conhecia, talvez até mais pálido que eu. Tinha cabelos loiros muito bonitos e olhos azuis ainda mais belos. E, vestido naquele fraque negro de detalhes vermelho-sangue, parecia até mesmo um tuxedo, algum príncipe das trevas.

Eu fiquei feliz. De alguma forma, fiquei muito feliz. Éramos iguais, mesmo sendo tão diferentes.

Mesmo possuindo a liberdade, ainda éramos prisioneiros.

“Sunderland?”, chamei-o, tomada de súbita coragem.

“Sim?”, mas ele não se virou para olhar-me nos olhos. Nem parou de caminhar.

“Posso te visitar algum dia desses na mansão?”.

E ele fechou a porta na minha cara, sem jamais me dar resposta. Mas, ignorando isso, fui até sua mansão tão logo Becka Sunderland morreu, e surpreendi-me ao encontrar um lord arrogante e gélido como um iceberg, diferente totalmente daquela frágil e quebradiça criança que conheci numa prisão escura e fétida, quase dez anos atrás.

Houve um dia, quando eu estava com dezessete anos, em que estávamos bebendo, eu e ele, e eu passei da conta. Fiquei meio “alta”, e acabei “apagando”, porque jamais tinha bebido tanto vinho assim. E, então, eu falei. Destilei todo o veneno, toda a verdade. Eu lhe disse tudo. Dos abusos, da história doente de meu pai, do papel de Sirius nela, do meu papel nela... Eu falei do quanto isso me desgostava, do quanto eu só queria que todos eles morressem e me deixassem em paz, do quanto eu lamentava por Mitchell... E desmaiei.

Quando acordei, estava deitada na cama de Mitchell Sunderland, porque imediatamente reconheci aquele seu quarto de ar nostálgico e doentio para quem vinha de fora e não entendia seu histórico. Ele tinha trazido uma cadeira e estava sentado ao meu lado, calmamente lendo um livro.

“Mi...?”, gemi, mas logo apertei minha cabeça que ainda doía, possivelmente da ressaca, voltando a me deitar.

“Você me contou coisas muito interessantes enquanto esteve bêbada, querida”, ele me sorriu. Sorriu. Eu pude ver o sorriso, mesmo irônico, mesmo com uma pontinha de tristeza, daquele garoto chamado Mitchell Harpper. “Se não se importar, vou ajudá-la, como me pediu”.

“Ajudar? Eu pedi a sua... Ajuda?”, definitivamente, não podia mais tocar no vinho. Eu era um perigo quando bêbada, aparentemente.

“Conhece um esporte chamado esgrima, Emma?”

- Milady Emma?

Desperta pela realidade, eu me vi sentada ao banco, dedilhando o que parecia ser Für Elise, de Beethoven, no piano.

Virei-me, surpresa por ter sido pega tão distraída, e vi diante de mim uma jovem de cabelos ondulados caindo pelos ombros, numa cor exótica, como se o cobre tivesse sido derretido e se derramado por aqueles fios, aderindo eternamente a eles. Um par de olhos acastanhados me observava com um misto de sonolência e incredulidade, como se me ver naquele piano, naquela biblioteca escura e vazia, fosse mesmo uma novidade assustadora.

- Oh, saudações, senhorita Baker. – sorri-lhe. – Esteve dormindo até agora?

Ri discretamente quando a vi embaraçar-se e arrumar os cabelos, corando bastante com meu comentário.

- Não precisa ficar assim. Não foi ofensivo. – tranqüilizei-a, continuando a tocar a bagatelle que misturava nostalgia e euforia num só tom. – Fiquei preocupada, já que não a vi a manhã toda...

- Mil perdões, eu perdi a hora. – ela me disse, com uma mesura.

- Oh, não curve-se... – suspirei.

- Perdão.

- E não me peça desculpas.

Ouvi-a suspirar, e ri de novo. – Onde está o lord Sunderland?

- Saiu. Faz um certo tempo. Disse que tinha negócios muito urgentes e inadiáveis para resolver. Certamente voltará mais tarde, mas duvido que chegue para o almoço.

- Ah... Obrigada...

Percebi sua frustração por baixo daquele agradecimento. Sim, eu também estava frustrada com a ausência dele.

- Senhorita Baker? – repentinamente tomada do que me pareceu uma divina idéia, uma inadiável vontade, talvez um impulso incontrolável, chamei-a pelo sobrenome, sentindo uma parte de mim se arrepender no milésimo de segundo seguinte. Senti que errei uma nota de Für Elise graças a isso.

- Pois sim, milady?

- Vamos caminhar? – sugeri. – Nos jardins. Deixar a pele capturar um pouco de luz solar. Que tal?

- Mas... Mas a senhorita está tocando, e...

- Estou entediada.

E, apenas para que ela não tivesse mais desculpas, me ergui do banco, ajeitando o vestido vermelho e em estilo pompadour que estava usando hoje.

- Por favor, acompanha-me? Vamos conversar um pouco. Só ontem começamos mesmo a ficarmos sozinhas de verdade. Gostaria de tê-la como uma amiga.

- Ah... – vi aquela sua hesitação nata, mas no fim, acabei convencendo-a.

Afinal, eu saí com a mão dela presa às minhas daquela biblioteca.


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