Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 30
Capítulo XXXVII




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XXXVII

Stuart Clayworth tinha duas certezas em sua vida: ele iria morrer daquele mesmo jeito, na mesma situação, um humilde e órfão sapateiro. A outra certeza, a mais forte delas, era que, além de Eccleston, tudo o que existia era o fogo e as trevas do Inferno. Essa idéia lhe fora plantada pelas irmãs do Orfanato onde viveu até os dezoito anos, que lhe superprotegiam e ensinavam-lhe a temer a Deus e, também, temer qualquer coisa que não fosse Deus.

Os sapatos que produzia eram famosos na tão pequena cidadezinha. E ele próprio era igualmente bem-quisto. Era um cristão exemplar. Ia à missa quase todos os dias (e os que não podia ir, rezava no canto da loja, um local mais discreto, sem que ninguém pudesse-lhe perturbar em seu transe religioso) e, graças às irmãs do Orfanato, ele sabia recitar trechos da Bíblia como ninguém.

Seu preferido era a história de Qayin e Havel, os nomes hebreus originais de Cain e Abel, os primeiros filhos de Adão e Eva. Cain, o fazendeiro, matou Abel, o pastor de ovelhas, depois de ter a sua oferenda rejeitada por Deus e a de seu irmão ser aceita por Ele, assim cometendo o primeiro assassinato da humanidade. Esta parte da Bíblia podia ser recitada de trás para frente, de qualquer lugar que alguém quisesse que Stuart Clayworth recitasse. Ele até mesmo lembrava-se do cheiro das páginas amareladas deste trecho.

Porém, mesmo debaixo de toda aquele respeito divino, Stuart via-se, às vezes, falando sozinho, procurando Deus. Ele pedia um amor. Apenas isso. Um amor. Uma mulher que lhe fosse bondosa, gentil, de boas prendas e que pudesse dar-lhe filhos. Mas ele nunca esperava que Deus respondesse às suas preces, porque, com tanto pecado e agonia no mundo, a sua dor era uma insignificância.

Certo dia, apareceu em sua sapataria uma bela mulher.

Ela trajava um estranhamente provocante vestido verde, com um generoso decote. Tinha no pescoço uma fita negra, o mesmo negro que enfeitava os detalhes do vestido da luxúria. Tinha delicadas luvas negras, mas Stuart Clayworth podia ver que, por debaixo delas, as mãos daquela mulher eram mãos de princesa, com unhas longas e bonitas como as de uma duquesa.

A segunda coisa que o sapateiro percebeu eram os cabelos. Não estavam presos, não escondiam nenhuma vergonha, como as das outras respeitáveis mulheres. Eram cabelos longos, ondulados e vermelhos. O vermelho do pecado e da luxúria. O mesmo vermelho dos cabelos da prostituta Maria Madalena.

“Boa tarde”, disse ela. “Gostaria de comprar um sapato.”

A voz daquela moça era penetrante, delicada e rouquenha. Era a voz mais bela que Stuart Clayworth ouvira.

Ele descobriu de fontes confiáveis que aquela mulher se chamava Ceres Valerie, uma descendente de franceses que, desde que chegara a Eccleston, mostrara suas excentricidades sem nenhum pudor, tais como usar vestidos que mais se assemelhavam aos de uma prostituta e de ter um cabelo chamativo e exibido para todos. A pele daquela mulher era bem cuidada como a de um bebê, e aqueles seus olhos verdes convidavam ao pecado.

Quatro dias depois daquele encontro, Ceres Valerie aparecera mais uma vez à sapataria do jovem Stuart. O mesmo engoliu em seco. Da última vez em que ela entrara ali, ele purificara todo o seu local de trabalho, orara em cada pedacinho da sapataria, como que afastando todo o pecado impregnado naqueles cabelos vermelhos, naquele corpo branco.

“Boa tarde”, ela disse outra vez.

Vendo que, desta vez, ela não fora direto ao assunto, Stuart Clayworth corou. Era um jovem que saíra a pouco de um mundo onde era protegido por Deus e as mulheres que serviam a Ele. E, agora, estava jogado no mundo do pecado e do desamparo, sendo tentado por um demônio em forma de bela mulher bem à sua frente, que estava manchando seu local de trabalho e sua mente.

“Ah... B-boa tarde...”, ele devolveu-lhe, sem jeito.

“Estava me sentindo sozinha. Posso ficar aqui, olhando seus sapatos?”

O demônio de vestido luxurioso não esperou-o responder. Apenas brincou com uma mecha de seus cabelos fogosos e, divertida, passou a analisar aquelas pequenas obras de arte com couro.

Aos poucos, Stuart Clayworth viu que ela percebera que ele era uma pessoa tímida e que estava com medo de sua presença. Então, ela sorrira-lhe docilmente, como uma pomba, e conversara com ele de igual para igual. Falara-lhe que seus pais faleceram e que seu tio roubara-lhe a herança. Contou que, agora, ela não podia mais voltar à Londres, e que morava em Eccleston, numa pequena pensão, apenas tendo como tesouro aqueles seus vestidos que roubara antes de sair, praticamente expulsa da capital.

Stuart viu-se, repentinamente, tentado a continuar a conversa. Ele não a viu como um demônio, apenas por um momento. Viu-a como uma mulher, como olharia para qualquer moça que passava na rua. E, muito mais surpreendente que isso, viu-se conversando com ela, engolindo o temor.

Falou-lhe de sua educação religiosa primorosa. Falou da solidão do Orfanato, de como Deus o ajudara a superar isso. De como conseguira ser aprendiz de sapateiro quando saiu do Orfanato e, agora, cuidava da sapataria que era daquele mesmo homem que foi seu professor. Contou que não sentia falta dos pais porque não se lembrava deles (eles morreram quando ele era muito pequeno), mas sentia-se triste por Ceres.

Ao fim daquele dia, quando ele percebeu que o sol já estava desaparecendo no horizonte, ele viu que não queria que Ceres Valerie fosse embora.

Para sua surpresa, a moça ruiva filha do pecado apenas sorriu-lhe.

“Você me deixa vir olhar seus sapatos de novo amanhã, senhor Stuart?”, e foi com espanto que percebeu que ela já lhe tratava como ‘você’ e ‘Stuart’.

“Cla... Claro. Venha quando quiser, senhorita...”

Naquela noite, o sapateiro não conseguiu dormir direito. Foi assaltado por sonhos doces entremeados de pesadelos que quase lhe roubaram o ar.

A sua Maria Madalena passou a visitá-lo praticamente todos os dias. E ele descobriu, conversando com ela, o quanto a descendente de franceses era discriminada por sua aparência exótica e aquela sua vida sem pais ou homens fixos. As outras mulheres tinham medo dela, acusavam-na de tentar roubar-lhes o marido e a vida perfeita. Mas Stuart Clayworth sabia, de alguma forma, que Ceres Valerie não era esse tipo de mulher.

Ela era uma pessoa embebida de solidão, que também pedia à Deus apenas alguém que não a traísse nesta vida. Ela era como Stuart.

Em Novembro de 1828, Ceres Valerie aproximou-se de Stuart Clayworth, num dia acinzentado e com o chão cheio de neve, e beijou-o na boca. O humilde sapateiro sentiu de perto o perfume exótico dela, o calor de sua pele, e sentiu também, pela primeira vez, a alma livre; ele não temia mais a reprovação de Deus por beijar uma mulher fora do casamento. Temia, sim, perder aquele único momento onde achou que fora levado ao Paraíso.

Stuart Clayworth viu-se irremediavelmente apaixonado (como suspeitava) por aquela mulher de aparência perfeita (que veio de algum lugar muito distante e cheio de pecado, muito além das fronteiras de Eccleston, mas que não era um demônio), e quis casar-se com ela.

Teve medo de que Ceres o rejeitasse por ele ser apenas um humilde sapateiro, mas ao contrário do que imaginou, viu aqueles orbes esmeraldas encherem-se de preciosas lágrimas.

“Eu... Eu aceito...”, ela respondeu-lhe, tocando o rosto dele com a ponta dos dedos eternamente enluvados. “Mas é claro que eu quero.”

Assim, no ano de 1829, ela tornou-se Ceres Clayworth, e a sapataria de Stuart começou a não vender mais tanto quanto antes.

Mas o jovem não se importava. Ele preferia um milhão de vezes estar com a sua ‘Maria Madalena’, a sua menina exótica dos cabelos acobreados. E passava os dias suspirando, sonhando acordado no balcão de vendas, enquanto distraía-se desenhando mentalmente os contornos do corpo pálido e perfeito da esposa. O quanto se sentia feliz quando ela tirava as suas luvas e lhe tocava com as mãos nuas.

Aquele fora o ano mais feliz de sua vida. Tinha uma esposa gentil, tinha a vida cheia de sentido que sempre desejou, e agradecia sempre por isso. Em 1830, porém, aquela sua felicidade apenas aumentou: veio ao mundo a sua criança.

Uma menina diminuta e que chorava muito.

“Posso dar-lhe o nome...?”, perguntou a exausta Ceres, depois de um parto que durara quase um dia inteiro.

“Mas é claro, querida. Escolha o nome que desejar”, ele respondeu, embebido de orgulho, afagando os cabelos exóticos dela.

“Cora. Na mitologia, Ceres, a divindade com o mesmo nome que eu, é a deusa das colheitas. Ela tem uma filha chamada Cora, que depois vira Perséfone. Enfim... Claro que o nome romano é Proserpine, mas Cora é tão melhor, não é?”

Stuart achou aquele nome extremamente pagão, mas não fez objeção alguma. E, assim, aquela criança ficou sendo chamada de Cora Clayworth.

A vida continuou naquele mesmo ritmo tranqüilo e cálido. Ele continuou não vendendo mais sapatos como antes, e descobriu que haviam aqueles que falavam mal dele pelas costas agora, mas não se importava. Ao menos, pensava, ele ainda tinha o amor de Ceres. Agora, tinha a vida que sempre pediu a Deus.

Sua esposa fê-lo conhecer coisas que nunca achou que iria pedir, coisas que achava que incitavam pecados, coisas proibidas. Conheceu as máquinas fotográficas (e quando tiraram uma foto de sua família, ele temeu que fossem perder suas almas), conheceu os doces, conheceu até mesmo o gostinho da ambição, de querer subir e dar uma melhor condição de vida à esposa e filha.

Ele conhecera todo um “viver” que não achou ser possível, em todos os vinte e três anos de existência.

Uma certa noite, sem maiores explicações, ele teve um sonho.

Um homem parou ao seu lado na cama e sentou-se ao seu lado. Ele tinha os cabelos loiros e encaracolados, os olhos azuis como o firmamento, e estava trajando uma túnica de vaporoso branco celeste.

Um anjo!, pensou Stuart. Deus mandou um anjo à minha casa!

O anjo dignou-lhe um belo sorriso quase que inumano, e contou-lhe o quanto Deus estava triste por Stuart Clayworth abandonar a fé que tinha antes. Ele não ia mais à Igreja, não mais rezava nem agradecia a Deus por tudo que tinha. O anjo misterioso estava trazendo a mensagem do profundo descontentamento de Deus por ele ter se jogado ao pecado do desconhecido e da luxúria daquela mulher e esquecido o que verdadeiramente importava.

Stuart lembrou-se da história de Maria, visitada por um belo anjo, talvez tão belo e irreal quanto aquele, e o mesmo anunciou-lhe a gravidez de Jesus Cristo. Talvez, aquele anjo também estivesse ali em seu quarto considerando-o digno daquela honra: daquele aviso de que Deus estava decepcionado com sua pessoa.

Stuart Clayworth acordou de madrugada, coberto de suor e pânico, e não conseguiu mais dividir a cama com Ceres Valerie. Naquele dia, ele saiu muito mais cedo do que de costume, e foi “dar uma volta por aí”.

Três dias depois, ele foi consumido totalmente por seu próprio pecado. E, buscando o perdão de Deus, ele eliminou de sua vida aquele demônio. O violento assassinato de Ceres Clayworth foi motivo de fofocas de donas-de-casa ociosas pelo resto dos tempos naquele calmo subúrbio.

Para Ceres, o pesadelo acabara antes mesmo dela perceber que estava num. Mas, para Cora, o martírio estava apenas começando.

Ninguém jamais soube porque aquele homem não foi preso. Tudo indicava que quem matara aquela francesa exótica foi exatamente o marido. Mas, talvez, foi por isso: porque, como um alívio coletivo, aquelas pessoas viram o “pecado” exterminado. A ameaça estava eliminada, de qualquer forma, mesmo que de uma maneira brutal.

Duas mudanças operaram-se para sempre: Stuart Clayworth enlouqueceu. E Cora Clayworth mudou completamente.

Até então, ela foi uma menina normal, sem preocupações ou temores. Mas, agora, ela não podia mais contar com ninguém. Ver a mãe ser morta pelo pai foi um choque grande demais. Mas ninguém queria saber daquilo. Ninguém importava-se com sua mãe, além dela. Todos agradeciam, mesmo que sem palavras, o pai ensandecido. E, agora, ela estava sozinha com ele no mundo.

O que antes o pai amava nela, agora era motivo de horrores. No Orfanato, Stuart Clayworth vira os padres baterem inúmeras vezes, às escondidas, nas crianças. Isso era tão normal quanto respirar. Por isso, procedeu do mesmo jeito, envolto naquela sua convicção de que aquela criança era filha legítima do pecado: ele a espancava de formas homéricas, e parava apenas quando sentia que se tocasse só mais uma vez naquela criança a mataria.

A primeira vez em que Cora Clayworth apanhara foi quando o pai apenas a olhou e sorriu. Um sorriso torto de alguém destroçado por dentro.

“Esses cabelos vermelhos...”, ele sussurrou, se aproximando dela. “Só pecadores têm esses cabelos.”

Quando o pai puxara-lhe os cabelos até ela achar que desgrudaria o couro cabeludo, a pequena revidou, tentou soltar-se, e então, o terror: o primeiro tapa. O som foi horrível, ecoou na casa vazia. E então, como que inspirado, ele continuou. O segundo, o terceiro... Uma sucessão de socos e pontapés.

Ela quase não conseguia manter a consciência quando ele finalmente parou. No chão, uma mancha amarelada de vômito. Depois do quarto chute, ela não sentiu mais nada, mas antes disso, não conseguiu manter a comida no estômago.

Cora desmaiara enquanto tentava tirar aquele cheiro que impregnava o seu quarto. Desde a morte da mãe, ela precisava cuidar das tarefas, senão a casa viraria um lixo. O pai não ligava mais; ele passava os dias na sapataria e, depois, ia para a missa. Lia a Bíblia, enfurnado no quarto; qualquer coisa, mas nunca se preocupava com o mundo ao seu redor.

E, quando acordou na manhã seguinte, Cora viu todo seu quarto repleto de crucifixos. E, quando se aventurou a sair dali, aterrorizada, viu a casa sendo devorada pelos mesmos. Não sabia de onde haviam saído tantos, mas só viu aquelas luzes douradas insinuando a purificação e a desordem ali dentro. Ela encontrou o pai semeando-os na cozinha. Às lágrimas, perguntou se o pai finalmente enlouquecera de vez. E, assim, levou sua segunda surra.

Cora Clayworth foi proibida de pedir ajuda. Uma filha do pecado e do demônio que instalou-se em Eccleston não merecia socorro médico.

Por isso, ela saía raramente de casa, uma vez que sempre estava tão cheia de hematomas que era impossível não ser reconhecida naquelas ruazinhas, vítima de olhares piedosos e assustados de senhoras e outros passantes.

Stuart Clayworth pensou muitas vezes em expulsar aquela criança de casa, mas então se lembrava que seus negócios iriam despencar ainda mais se esse escândalo se espalhasse. Além disso, as crianças eram seres que Deus muito prezava, mesmo as crianças do pecado. Ele não podia simplesmente livrar-se daquela menina.

O homem adquirira o hábito de buscar a solução para os problemas nas Sagradas Escrituras, lendo-as até o amanhecer, quando assim podia. Ele queria ver mais uma vez aquele anjo loiro, aquele que lhe anunciou que Deus estava decepcionado; queria vê-lo de novo e ser elogiado, pedir conselhos sobre o que fazer com aquela filha do pecado.

Numa certa noite, Stuart Clayworth teve um sonho com os cabelos de fogo de Maria Madalena. Eles balançavam ao vento e tinham um exótico aroma.

Quando acordou, no meio da noite, rumou ao quarto da pequena Cora e agarrou-a pelos cabelos, mostrando a tesoura de metal enferrujado que tinha, que o seu professor falecido dizia ser a tesoura com a qual a sua avó cortava cordões umbilicais de recém-nascidos.

Com a boca amordaçada pela potente mão do pai, Cora viu, debilmente, a cascata de cabelos acobreados que possuía caírem, mecha por mecha, no chão.

“Só pecadores têm esses cabelos vermelhos”, o pai repetiu.

Amanhecera em choque, com um cabelo tão curto quanto o de um menino. Ela mesma, em meio às suas lágrimas e soluços que sacudiam o corpo, precisou encontrar forças (e coordenação) para picotar o que sobrara deles de forma que ficasse com uma aparência aceitável, com os fios em comprimentos iguais.

Agora que não tinha mais as madeixas que lhe cobriam os hematomas e o olho roxo quando ia comprar pão, enfrentou, pela primeira vez, corada de vergonha, o olhar da esposa do padeiro.

“Minha nossa!...”, exclamou ela, como a criança previu. “Minha pequena! O que aconteceu com você?!...”

“Caí”, simplesmente respondeu. “Eu queria comprar pão, por favor.”

Cora Clayworth crescera assim: tendo seus cabelos periodicamente cortados e seu corpo quase que diariamente castigado por algum pecado terrível e abominável por Deus que ela desconhecia, mas que enlouquecera o pai.

Certa noite, quando ela tinha nove anos, Stuart Clayworth padeceu de uma terrível febre. Cora achou que fosse ficar órfã, e cuidou do pai, mesmo tendo ele feito tantas coisas ruins a ela. Em algum lugar de sua mente, a raiva não era maior que a culpa por ela ter sido a pessoa que o deixou daquele jeito. Ela merecia os crucifixos apontando sua origem pecaminosa, ela merecia as sessões de espancamento, merecia ter os cabelos cortados, ser humilhada... Era uma expiação. Quem sabe, o pai se sentisse mais feliz fazendo isso.

Ela sabia o quanto o pai fazia esforços, com a ajuda daquele Evangelho, em aceitá-la como sua filha de sangue, em ter algum amor por ela. Cora Clayworth sabia que Stuart estava se esforçando. Por isso, resignada, deixava-se apanhar.

No quinto dia daquela febre que o devorava, ele teve uma visão. Por um momento, ele viu diante de si a esposa. Não aquela pecadora dos cabelos vermelhos, a mulher que o levara à ruína moral... Ele viu aquela Ceres Valerie por quem se apaixonara, a mulher que conhecia um mundo muito além de Eccleston, o mundo de fogo e trevas do Inferno que ele evitara, mas pelo qual fora invariavelmente seduzido. Viu diante de si aquele sorriso radiante, as mãos eternamente enluvadas que só se mostrava para ele nos momentos de intimidade. Aquela mesma esposa que o jogara para sempre naquele poço de luxúria e desespero.

Ele lembrou-se de como devia purificar o mal: o santo mel. O pecado e a santidade entrelaçaram-se, e ele já não sabia o que estava fazendo. Quando acordou daquilo que lhe pareceu uma possessão, a pequena Cora Clayworth, aquela que ele devia chamar de “filha”, estava no chão, com lágrimas silenciosas saltando dos olhos e o sangue manchando o vestido e as coxas.

Cora passou a, invariavelmente, ter medo do pai. E por três anos, aqueles momentos de lucidez e os de depravação moral total e irrestrita intercalavam-se. Cora achou que era seu pai quem estava possesso de demônios, não ela. Ele a chamava de “Ceres”, urrava como um animal e a machucava. Nenhuma criança precisa ser um gênio para saber que aquilo era pecado. O pecado original e o pecado do incesto. Ela plantara, para sempre, o pecado na cabeça do pai. Deus jamais perdoaria seu pai e nem ela. Ela e aqueles seus cabelos vermelhos malditos...

Mas a garota permitiu. Permitiu que ele continuasse. Permitiu afogar-se igualmente no pecado, e escondeu para sempre aquele segredo dos outros.

Até aquele dia...

Quando Cora Clayworth tinha doze anos, não houveram mais recriminações afiadas e nem violência. Houve o estupro e as mãos cravadas em seu pescoço. Então, ela as sentiu fecharem-se como garras. E compreendeu o intuito de assassinato. Ela não sentiu mais a vida apagar em enganos e culpas. Mas soube que seria apagada, tão logo viu o olhar de fogo do pai.

Talvez Deus quisesse vê-la sofrer mais, porque a deixou escapar daquele aperto de ferro. Tossindo, a criança tentou abandonar a casa, fugir e gritar por ajuda, mas não conseguiu. Deixou, ao invés disso, a gaveta de talheres cair aos seus pés. E, enquanto era enforcada e perdia, lentamente, o brilho da consciência, viu o instrumento reluzir. Ele a chamou. A mão atendeu-o, sem que tivesse controle sobre as ações do próprio corpo.

Veio o grito, a agonia e o sangue. E, depois, a liberdade.

Afogado no próprio sangue que se precipitava para fora do talho aberto na garganta, Stuart Clayworth caiu sobre o corpo da filha do pecado que ele contribuiu para criar. A parede manchou-se de um escarlate profundo, tão acobreado quanto os cabelos dela.

Acometida repentinamente do pânico de sua própria agonia, depois daquele frenesi quase ilusório, ela percebeu: não tinha mais volta. Ela, Cora Clayworth, não importava o motivo, matara o próprio pai. Que pecado maior que esse podia haver...?

O fogo...!, pensou, então. O fogo que purifica...!

Cora fechou a calça do pai, pondo o membro dele de volta para dentro, sem olhá-lo, e depois o colocou em posição de defuntos (as mãos sobre o peito, como diziam que devia ser). Correu para o quarto e pegou a fotografia de sua família, dos tempos em que ela não havia sido corroída pelo pecado. Talvez achasse que aquilo não tivesse pecado nenhum, então, não merecia ser consumida. Apertando-a firmemente contra o peito, ela deixou que uma faísca alaranjada caísse aos seus pés.

Deus disse que o fogo purifica. Foi Deus quem disse. Então, ela iria purificar. Purificaria seu pai, sua casa e todo o pecado dali. Cora Clayworth não ficou para ver sua casa pegar fogo, os crucifixos derreterem, a madeira ceder e o corpo morto lá dentro tornar-se algo disforme e semelhante a carvão. Ela fugiu antes disso. Para bem longe. Para além das fronteiras de Eccleston, onde o pai acreditava só haver demônios e mares de fogo.

Não podia nunca mais voltar para Eccleston. Ela estava condenada ao Inferno. Fazia planos de encontrar o Diabo e pedir que ele a pusesse no mais profundo nível de sua morada. Queria ser punida todos os dias.

Mas tudo que encontrou foi neve, carruagens e algumas casas de camponeses pelo caminho (e a maioria tinha bois que procuravam pasto debaixo da camada branca e puríssima). Nenhum mar de fogo, nada de trevas do inferno. Só a sede, a fome e as lembranças que a faziam vomitar no meio do caminho. O cheiro do fogo consumindo e purificando...

Quando chegou no que parecia ser uma nova cidade, ela percebeu que havia perdido a foto da mãe, do pai e dela, quando era pequena e sabia sorrir. Sem lugar para ficar, apenas mais uma órfã jogada às traças, não demorou a ser vencida pelo frio e a fome. Na noite anterior, mendigos tentaram violentá-la, mas tudo que conseguiram foram a exaustão por terem-na espancado e tentarem correr atrás dela.

A dor do frio e dos hematomas foi demais. E, no meio de duas casas naquela cidadezinha feita de terror e solidão, ela caiu, sem mais forças para continuar de pé. Esperou pacientemente o Diabo vir recolher sua alma, porque sabia que Deus a desprezava.

“Oh, meu Deus!...”, entretanto, o que conseguiu foi aquilo. “Minha criança, está tudo bem...?!”

A mulher com os mesmos cabelos de Ceres Valerie. A mulher que ajoelhou-se ao seu lado e quis ajudá-la. A mulher estranha e exótica que perguntou seu nome.

“Cora...”, e, por algum motivo, alguma compreensão divina, aquela criança soube que nunca mais iria precisar carregar o nome ‘Cora Clayworth’ consigo. Nunca mais o pecado a perseguiria ali. “Eu sou... Cora...”

Aquela criança desmaiou tão logo sussurrou aquilo. E só acordou três dias depois, numa cama limpa e cheirosa, com um prato de comida quente esperando-a.

“Eu chamo Irisa Baker, pequenina”, aquela moça apresentou-se, depois de dar-lhe comida na boca e cobri-la outra vez. Ela tinha o sorriso mais perfeito que Cora jamais vira. O sorriso de um anjo, mesmo tendo os cabelos da cor do pecado como os dela. “De onde você vem? Como foi parar naquele lugar, daquele jeito?”

O fogo. O sangue virginal. Os olhos da loucura.

Cora sacudiu a cabeça, e simplesmente respondeu, ainda no seu tom rouco de enferma: “Não tenho mais casa.”

Eu pus fogo nela. Mas... Não sei porque a queimei. Quando percebi, já estava fugindo, ela quis completar. Mas nunca o fez.

“E pai e mãe? Não os têm?”

Mais uma vez, a criança sacudiu a cabeça.

“Hum...”, depois do que pareceu ser uma eternidade, Irisa Baker colocou a mão na cabeça daquela pequena. Cora sentiu-se como que abençoada com aquele ato. Alguém que a tocava sem nojo ou temor e que não a olhava reprovadoramente. “Será que você gostaria de ficar comigo, Cora? E, já que não tem sobrenome, será que você aceita o meu, como se fôssemos mãe e filha? Que tal?”

Os olhos acastanhados baixaram-se, subitamente humilhados perante tamanha bondade, quando ela era só uma criança maldita e não a merecia. E, copiosamente, ela viu-se chorando no segundo seguinte.


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