Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 28
Capítulo XXXIV / Capítulo XXXV




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XXXIV

 

O céu noturno desfazia-se em pontos de luz que brilhavam desordenadamente, formando desenhos criativos, porém secretos. Um véu de um índigo tênue amenizava o negrume que parecia engolir as estrelas.

Edward Shelser parou diante da mesa do chá, fixando os olhos felinos na mesma. O dedo passeou, distraído, pela superfície branca, como se esquecesse, só por um instante, que eu estava ali. Eu não quis dar-lhe a entender que eu continuava encarando-o, temerosa. Preferi o silêncio entrecortado do som dos grilos e do relinchar longínquo dos cavalos das carruagens dos lords e nobres.

- A brisa está ótima, não é? – repentinamente, o lord Shelser ergueu os olhos e fixou-os em mim, como se novamente fizesse questão da minha presença.

- S-sim... – concordei, estremecendo. – A noite está bem agradável, hoje.

Não sei se é porquê eu tinha uma visão mais animalesca dele (ou ameaçadora, pelo menos), mas Edward Shelser estava incrivelmente polido.

Em romances idiotas (que eu lia escondida, antigamente), os vilões ou antagonistas eram cruéis, desmedidos e destemperados. Edward poderia, muito bem, se passar por uma pessoa qualquer. Estranha, mas uma pessoa qualquer. Até mesmo Mitchell era alguém excêntrico, então sequer podia desconfiar dele.

Virei-me, devagar, muito discretamente, apenas para ver se ainda podia enxergar pela porta envidraçada Mitchell ou Emma.

Eles já saíram do quarto. Senti-me melhor vendo que eles não precisariam prestar atenção na minha cara patética de menina que finge estar sendo corajosa.

- A senhorita me deixou bastante surpreso, sabia? Muito surpreso mesmo.

Virando-me no mesmo instante, como uma criança que é pega fazendo algo muito errado, eu pus as mãos sobre o peito, temendo o que aquilo significava.

- Ah? Surpreso por que, lord Shelser?...

- Mitch disse “não” para mim. Pela primeira vez, ele foi contra uma ordem minha, ele... Reagiu. Isso me chocou tanto.

Ouvi-lo suspirar, dissimuladamente, encheu-me de uma raiva muda, que eu não fui capaz de sequer expressar no rosto.

- Viu, não viu? Quando ele tentou me tirar do quarto... Eu entrei e saí da casa dele sempre a hora em que eu quis... E, de repente, ele queria afastar-me da minha filha. – ainda encarando-me, ele abriu um sorriso cínico. – Não, da minha filha não. Ele quis me afastar da senhorita.

Engoli em seco, sem poder evitar o susto.

- Desde que ele a conheceu, mudou tanto. Nem imagina o quanto, senhorita Baker. É como água e vinho compará-lo antes e depois da sua vinda à vida dele. Mitch ficou realmente melhor. Ele está reagindo mais, agindo como humano...

- Se é assim... – sussurrei, encolhendo os ombros, assustada. – Por que está falando isso com tanto... Asco?...

Eu odiava aquela parte. Edward Shelser se aproximando de mim, eu sentindo aquela fragrância estranha, meio exótica que ele exalava. Eu apenas podendo olhá-lo nos orbes escuros, impotente, tremendo como uma criança, enquanto ele sabia de sua influência e divertia-se com a mesma.

- Bom... Talvez porque, sendo Mitchell Harpper uma “propriedade minha”, eu me sinta profundamente desafiado.

As pancadas em meu coração evoluíram de um ritmo frenético para um ainda mais desordenado. Eu senti-me tonta, achei que fosse desmaiar por falta de sangue igualmente distribuído no corpo, mas isso não aconteceu. Tudo o que aconteceu foi eu ficar parada, surpresa, os olhos arregalados e, quem sabe, pálida de susto.

Repentinamente, tudo me fez sentido.

Mitchell era uma “propriedade” de Edward. Eu pensei nisso só algumas vezes, mas logo esqueci por conta de tantas outras perguntas que tinha em mente.

Explicaria o brasão dos Shelser em suas costas... Explicaria mamãe Irisa na condição de empregada quando Mitchell encontrou-a pela primeira vez, ainda quando era uma criança.

Senti-me uma idiota. E, quase que ao mesmo tempo, totalmente ameaçada. Ainda mais do que antes.

- Foi o senhor... Que... Marcou as costas do...?

- Ele tinha uns sete anos quando isso aconteceu. Ou ainda tinha seis? – pensativo, aquele seu sorriso cínico perdurava no rosto aquilino. – Sim. Fui eu quem marquei Mitchell Harpper e o tornei uma “propriedade”.

Um estranho entorpecimento tomava conta de meus membros, cada vez me fazendo ter a impressão maior de que eu desmaiaria.

- Originalmente, Mitch era um presente de aniversário para Sirius, o meu falecido filho mais velho. Os dois têm uma diferença de sete anos. Sirius já tinha uns doze ou treze anos quando “ganhou” Mitchell. Sirius ainda era pequeno para marcá-lo sozinho, podia fazer algo errado e matar o presente... Por isso, eu decidi marcá-lo com o brasão da família, e torná-lo uma “propriedade” definitiva. Ele tornou-se uma “coisa”, o presente do meu primogênito.

Chocada, muitas perguntas passaram-me pela cabeça. Muitas afirmações, muitas reações àquele diálogo.

Mas tudo que eu fiz foi entreabrir os lábios. – É assim que o considera...? Nós estamos falando de “Mitchell Harpper/Sunderland”... Mas, ainda sim, um “humano”. Não é uma “coisa”, como o senhor diz... Isso é...

- Ele é uma “coisa”, querida. – Edward sacudiu lentamente a cabeça, aparentemente rindo de minha inocência. – No momento em que Alrick Sunderland, o pai dele, o trouxe deliberadamente para que eu fizesse o que eu quisesse com aquela criança, e eu o marquei com o símbolo do pecado... Mitchell Harpper deixou de ser um “humano”. Ele tornou-se um “objeto”, algo com o mesmo valor da panela onde minha comida é feita. Ele é só uma propriedade.

A verdade chocou-se contra mim com a força de cem homens.

Tudo estava ali, na minha frente. A subserviência de Mitchell quando Edward Shelser entrava em cena, o medo estampado nos olhos dele, o medo de Emma, a própria filha... A marca nas costas deles. Nas de mamãe Irisa...

Esteve tudo ali desde o começo...

E, mesmo eu me censurando e amaldiçoando um milhão de vezes pela ignorância, desejei ver Mitchell só mais uma vez. Quis esquecer que o lord Edward estava ali. Quis apenas ver Mitchell e abraçá-lo tão forte quanto eu podia, confortá-lo por todos os anos em que eu não pude protegê-lo.

Dizer-lhe que, de forma alguma, ele era um “objeto”. Não. Ele era um humano, era amado por muitos. Ele era um “humano”, e eu estava muito orgulhosa dele, por finalmente estar percebendo isso.

- O antigo senhor Sunderland... – mesmo assim, forcei-me a continuar, a engolir as lágrimas. – Ele... Ele sabia que isso iria acontecer, caso levasse Mitchell àquele lugar?

- Claro que sabia. Foi por isso que ele me deu aquela criança.

A resposta do lord Edward Shelser, aquela ameaçadora figura, foi tão rápida que eu me assustei, demorando a absorvê-la.

- Ele deu-a para mim porque considerava Mitchell Harpper um erro. Uma mácula que devia ser apagada. E ninguém melhor que eu para “apagar”. Mitchell nunca foi necessário. Ele só está aqui hoje, no topo dos Sunderland, por força das circunstâncias. Não porque alguém o deseja bem. – sorriu. – De qualquer forma, eu trancafiei aquela criança em um lugar escuro e solitário, um lugar muito especial, e a deixei lá, até dar-lhe um destino fixo. Pensei em matá-lo, mas então pensei que ele, com aquela sua aparência efêmera, podia ser um bom presente para Sirius...

Isso é mentira, pensei, com toda a força, como se aqueles pensamentos frenéticos pudessem alcançá-lo de alguma maneira. Eu o quero. Para mim, você é necessário, Mitchell.

- Sirius, em breve, teria que ocupar o meu lugar... Mitchell Harpper era um “objeto”, um “presente” ótimo para ele iniciar o aprendizado.

- Aprendizado...? – não sei porquê, mas aquela palavra me arrepiou. O tom no qual Shelser a falara indicava-me algo muito ruim.

Temi por Mitchell, mesmo sabendo que isso era passado, já havia ido embora há tempo demais. O lord Sunderland já passara por tudo isso que ele me contava, por mais doloroso e impotente que me fosse.

...Já era tarde.

- Temos uma tradição milenar em algumas coisas, senhorita Baker. Não é necessário mencioná-las agora, mas... Sirius iria herdar a liderança destas tradições, quando eu partisse. E precisava, desde cedo, aprendê-las. Um corpo subserviente à sua vontade, um bastardo marcado... Uma “propriedade”. Mitchell Sunderland foi nossa cobaia.

Senti algo preso na garganta. Algo queria que minhas pernas se movessem, mas eu estava totalmente paralisada.

- O que você... O que o senhor e o seu filho... Fizeram...?! – sussurrei, trincando os dentes de raiva.

Shelser apenas sorriu, como se aquilo não fosse nada. – Muitas coisas...

Eu vi a marca nas suas costas. Machucaram-no muito, fisicamente falando. Ele falou de “aparência efêmera”, “ser uma propriedade é...” e toda a sua pessoa me indicava que havia (os dois, talvez) abusado de Mitchell. E, por fim... Era só olhar para aqueles orbes cianos e o medo estampava-se na hora. Também feriram-no muito psicologicamente.

Ele era um sádico! Um louco furioso!

Eu senti-me cega de raiva. Sem pensar, avancei contra ele, em minha mente, imaginando quanta dor uma criança passa naquele tipo de mãos, sendo torturado de todas as maneiras, por dez longos anos. Era desumano demais...

- Você... Você é louco!

Entretanto, quando percebi, meu pulso estava sendo firmemente segurado pela mão enluvada de Edward Shelser. O mesmo tinha um brilho divertido nos olhos, com uma pitada de sadismo.

- Se eu fosse você, não contaria sobre nossa digníssima conversa para ninguém, senhorita Cora. Afinal, em quem acreditariam? Num patriarca das Quatro Famílias, que comanda os assuntos de segurança pública ou numa simples empregadinha cujas origens são desconhecidas e até duvidosas?

Gemi, sem conseguir conter minha voz, quando sua mão apertou mais o meu pulso, machucando-o. Ele estava fazendo de propósito tudo aquilo.

- E sugiro também que não fique no meu caminho e pare de se meter com o “meu menino”. – sorriu-me, cínico. – Quando Sirius morreu, Mitchell passou, automaticamente, a ser uma propriedade “minha”. Por isso, ele é todo meu agora. Você não tem o direito de interferir na nossa relação de senhor e escravo.

Uma enorme pressão aliviou-se de meu corpo quando finalmente tive meu pulso solto. Massageei-o, impotente, enquanto o via se afastar e abrir a porta da varanda. Mas, no último minuto, ele virou-se para mim.

Eu estremeci com aquele olhar tão gélido. – Vou estar de olho em você, Cora Clayworth. Fique atenta.

Há quanto tempo eu não ouvia aquele sobrenome...?

Deixei minha mão escorregar, lentamente, até cair ao lado de meu corpo. Minha mente enevoou-se, tão flácida quanto as estrelas parcamente brilhantes. Nunca saberia dizer quanto tempo fiquei daquele jeito.

 

XXXV

Ela sempre me pareceu alguém excepcionalmente frágil. Mesmo tendo atitudes tão fortes, algo em sua aparência também era muito quebradiço. Como se fosse uma daquelas tantas bonecas que eu aprendera a manusear com cuidado com o passar dos anos. Nunca a vira tão diáfana, tão derrotada.

- Cora! – chamei-a, e seu rosto ergueu-se até encontrar o meu.

A brisa fresca lambia meu rosto, trazendo-me a nostálgica sensação de quando eu passava madrugadas inteiras apenas observando o grande astro prateado no céu. Senti o doce aroma dos cabelos acobreados dela, o vento levando-o diretamente para mim. Vi-a erguer, lentamente, os olhos com um fraco brilho.

Por longos segundos, Cora Baker me encarou. Não mais do que isso. Não soube o que se passava pela sua cabeça, mas imaginei mil e uma coisas.

Aquele maldito do Shelser havia saído agora a pouco, e quando o vi bem longe, corri para a varanda, de onde Cora ainda não havia saído. E surpreendi-me ao encontrá-la tão apática, tão... Frágil.

- Cora... – sussurrei-lhe, com medo de que até a minha voz fosse o suficiente para quebrá-la.

- Mitchell? – ouvi-a responder-me.

Respirei aliviado. Ao menos, ela não estava apática. Ao menos, ela me reconheceu. Eu estava irado. Queria correr de volta, alcançar aquele lord maldito e socá-lo por tudo que a fez passar enquanto eu estive impotente, sem poder ajudá-la. Porque eu vi em seus olhos que ele deve ter-lhe dito muitas coisas ruins.

- Perdão... – baixei os olhos, envergonhado. Eu sabia que aquilo não adiantaria nada, mas precisava pedir-lhe.

- Não. Eu quem te peço perdão, Mitchell.

Surpreso, encarei-a. Quis fingir que não entendi a verdadeira essência daquele pedido, talvez agir como sempre o fazia, irritá-la e fazê-la voltar a ser aquela Cora por quem eu me apaixonei.

Não. Pateticamente, eu permaneci encarando-a, envergonhado de mim mesmo.

- Onde está a milady Emma? – ela perguntou, de repente.

- Na cozinha. Ela ficou nervosa demais e eu pedi que fosse tomar água com açúcar, um chá, qualquer coisa assim... – suspirei.

- Ah. Que bom que ela está bem, acho... – ela também suspirou.

De que adiantava ser um lord poderoso, uma pessoa assustadora, de ter toda essa força se... Se para proteger aquela menina, quem eu mais desejava manter longe de toda a podridão na qual fui atirado, eu não podia fazer nada?

- Sabe, Mitchell...

- Pois não?

Eu desejei ter alguma espécie de poder que me permitisse saber o que ela estava pensando. Era frustrante demais vê-la tão indefesa e não poder fazer nada para aliviar sua dor.

- Para mim, você é um “humano”.

Nunca entendi isso. Por que ela pensava tanto nos outros, se sabia que isso era ruim? Por que, mesmo com toda a dor que nunca demonstrava, insistia em acumular ainda mais sofrimento, em abraçar toda a dor alheia para si e, debilmente, tentar nos curar... Ou mesmo, apenas sendo ela mesma?

Senti algo preso em minha garganta e meus olhos arderam.

Quando percebi, eu tinha aquele corpo em meus braços. Achei que fosse parti-la em duas com a força de meu aperto, mas em nenhum momento diminuí-o. Continuei abraçando-a sofregamente, como se o mundo fosse desmoronar se eu não o fizesse invariavelmente.

- Perdão... – sussurrei, tolamente, no seu ouvido. – Perdoe-me...

- Eu é quem peço perdão... – devolveu-me.

Não. Não, Cora. Você não me deve nada. Não tem que me pedir nada. Eu sim é que a agradeço muito. Nada que eu faça será capaz de igualar-se a tudo que você me mostrou, ao que me deu e me fez perceber.

Você devolveu a minha “humanidade”. Aquela que eu julgava ter perdido quando me tornei um “objeto”.

Tarde demais percebi que eu estava chorando. Apenas quando ela afastou-se de mim, possivelmente porque alguma lágrima minha roçou nela ou em sua roupa, e tocou-me no rosto.

- Mitchell... Você...

- Eu sinto muito, Cora... – voltei a abraçá-la, escondendo o rosto na curva de seu pescoço. Meu coração estava doendo. Estava doendo tanto que eu tinha a impressão de que iria explodir. Fazia muito tempo que eu não tinha essa sensação.

Ela foi tão nojenta e detestável como da primeira vez.

- Você me deixa...

- O que?

De repente, foi a voz dela que estava ressoando diretamente no meu ouvido. Foi os braços dela que me envolveram tão carinhosamente.

- Cora...? – surpreso, deixei escapar aquela indagação inacabada.

- Quero conversar com você. Sobre muitas coisas. Temos muito que falar, sabe. Por isso... Você me deixa dormir em seu quarto hoje...?


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