Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 21
Capítulo XXVI / Capítulo XXVII


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo, por uma infelicidade que parece até plágio, tem referências a lot a série "Count Cain". Mas, por favor... O nome do rapaz ainda é Mitchell. XDDD *apedrejada*



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XXVI

 

O vento da noite uivava do lado de fora, trazendo redemoinhos de neve para a janela. A folhagem dançava, atordoada, boiando num túnel de claridade prateada da luz da lua. Uma cortina de névoa cálida cobria o banheiro iluminado, enquanto eu ajudava a senhorita Shelser com o banho.

A noite não fora o que se chama de “agradável”. A chegada repentina da milady alvoroçou as empregadas, atiçou boatos (que eu tive de ajudar mamãe a conter). E, depois disso, os humores só pioraram quando Mitchell não apareceu para o jantar, mamãe Irisa dizendo que ele alegava estar sentindo-se mal.

Eu sabia muito bem que ele não estava mal coisa nenhuma. Ele estava, como sempre, lambendo as suas feridas, pensando, provavelmente trancado em seu quarto.

...Odiava quando Mitchell fazia isso.

E perguntei-me que tipo de problemas aquela mademoiselle trazia para a mansão, o porquê de só sua presença e algumas palavras encherem tanto a cabeça do nosso senhor Sunderland de fantasmas.

- Ah... C-com licença, senhorita Baker, não é...?

A voz quebradiça daquela menina me despertou. Baixei meus orbes e encarei os seus. Ela estava encolhida, apenas o princípio dos ombros de um tom leitoso aparecendo.

- Pois não, milady? – forcei um sorriso.

- E-eu... Eu posso banhar-me sozinha, se não se importar...

- Não, não. Eu sou apenas uma serva, milady Shelser. – não que eu gostasse daquela servidão toda que tinha que demonstrar, mas era necessário. E acho que já estava me acostumando, o que tornava tudo mais suportável. – E, se eu não fizer o meu trabalho, lord Sunderland irá me punir.

Emma deu um daqueles seus sorrisos de matrioska. Ela parecia uma princesa de contos-de-fada quando fazia isso.

- Mitchell não faz isso...

Respirei profundamente, contendo a onde de ciúmes ridícula. Com que direito e com que segurança ela fazia aquelas afirmações?

- De qualquer forma... – voltou ao assunto. – Eu gostaria mesmo de banhar-me sozinha...

- Ah, mas, milady...

- Prometo que não irei contar isso para ninguém. Se alguém perguntar, a senhorita Baker foi de um comportamento exemplar. Ajudou-me em tudo!...

Ouvi o som da água na banheira recebendo os pés de Emma Shelser, que já começava a entrar ali.

- Está certo. Por favor, então, dê-me algo para fazer, milady Shelser. Não gostaria de apenas assistir. – pedi. De fato, queria qualquer coisa para distrair minha mente, antes que ela explodisse devido aos mil assuntos que circulavam sem ordem alguma por ali.

- Ah... A senhorita poderia... Arrumar minhas roupas. Pô-las nas gavetas. Não fizeram isso ainda. – sorriu-me, timidamente.

Se eu não estivesse vendo a cena com meus próprios olhos, jamais imaginaria que aquela mademoiselle de sorriso delicado fosse capaz de pôr a mão de um homem solteiro e sem nada a ver com ela sobre seu seio ou mesmo de fugir de sua casa, sem respeito algum, e vir pedir abrigo na casa deste mesmo homem.

- Farei isso. Com sua licença. – fiz uma mesura rápida, deixando a passadas rápidas aquele banheiro. Qualquer ar era melhor.

- Obrigadíssima...

Eu estava deixando o banheiro, já sentia até mesmo o ar fresco do quarto que, antes, era meu (e agora o meu era, graças aos céus, um sem nenhum boato de fantasmas), mas vi uma cena estranha, potente demais para gravar-se em meu cérebro, mesmo que os olhos tivessem uma fração de segundos para vê-la.

Emma Shelser estava baixando o vestido, de costas para mim. Sua mão erguer-se, até tocar em seu ombro, e parte dos dedos brancos de boneca encostaram-se a suas costas.

Uma série de riscos negros emaranhavam-se ali, atrevidos, contrastando com aquele pele branquíssima.

Um pentagrama e um hexagrama...?!

Fechei a porta, antes de poder responder a essa pergunta. E, em seguida, esfreguei os olhos. Minha cabeça latejava em algum lugar lá no fundo, anunciando um princípio de enxaqueca que não demoraria a vir. O mundo pareceu girar violentamente, determinado a me jogar de um lado para o outro, até que eu não tivesse mais escolhas.

Mitchell também era assim, foi a primeira coisa na qual pensei. Branco, com riscos negros contrastando tão forte em sua pele que era impossível não notar.

E também tinha aquela mesma marca imensa...

Emma Shelser também era marcada!

Assim como o lord Sunderland, assim como mamãe Irisa!

Eu senti-me enjoada, repentinamente. E fiquei com pena das mulheres grávidas, lembrando-me que os enjôos delas são piores e bem mais freqüentes (e juro que não sei de onde tirei este pensamento sem nexo).

Deus, por que todos os que me cercam têm essas marcas nas costas...?

Onde diabos eu havia me metido...?!

Algo em mim quis iludir-se. Foi apenas alucinação, culpa da tensão. Eu pensava nisso como num mantra, querendo mesmo que fosse apenas coisa da minha cabeça.

Mas aquele princípio de pentagrama e hexagrama sobrepostos estava vívido na minha mente, projetando-se em minhas pálpebras fechadas, assim como as inscrições... “De Temeto Dios Tukos”, “Malos Spiritus Sigillent”... Qual seria a daquela mademoiselle?

Ocupei-me mecanicamente em tirar e dobrar os vestidos perfeitos daquela princesa e guardá-los nas gavetas, enquanto o armário não era arrumado. Ela trouxera mesmo pouca bagagem para uma lady. Provavelmente, deve ter saído apressada.

Quando tirei um vestido verde-escuro, um livro caiu em meus joelhos.

Tinha uma capa verde, sem nenhum escrito. Pareceu-me uma bíblia, num primeiro momento e, movida de uma curiosidade infantil, enquanto ouvia o som de Emma Shelser banhando-se, abri aquele livro.

Arrependi-me no mesmo instante, eu diria.

...Aquilo não era uma bíblia.

Quase todos os dias tinham escritos e, junto deles, vários recortes e anotações. Alguns desenhos feitos às pressas também. Mais parecia uma espécie de compêndio, informações muito bem guardadas na bolsa daquela mademoiselle.

Mas não parecia pertencer à ela.

Folheei até a primeira página, buscando um nome.

E engoli em seco ao ler, naquela mesma letra que preenchia todo aquele diário (aparentemente), o nome “Victoria Barrington”.

- Isto é... O diário de Victoria...?! – sussurrei, incrédula. A quantidade de informações era absurda. Victoria deve ter dedicado muito de seu tempo naquilo. E, assim, nasceu minha dúvida.

Então, se era mesmo o diário de Victoria... O que estava fazendo as anotações secretas de uma falecida nas mãos daquela milady?

 

 

XXVII

Aquele grande salão oval estava submerso em uma profusão de luz e cores sóbrias. O dourado dos detalhes, o ebúrneo das estátuas de mármore, o escarlate apaixonado dos batons das ladies e das cortinas de fino material. Eu detestava aquele ambiente. Com toda minha alma.

Não havia paredes nuas ali. Como se elas precisassem estar sempre preenchidas de alguma coisa, qualquer falsidade que aparecesse e pudesse esconder a mácula de seus donos vazios. Quadros e esculturas enfeitavam cada ponto do local, transformando-o num circo de aberrações.

E, por fim, eles. As pessoas. Elas sim eram a dissonância real daquele lugar. As pratarias reluziam, polidas, o ambiente era fresco e a música era agradável... Apenas as pessoas que tornavam tudo aquilo um martírio. Uma espécie de inferno enganoso. Eu caminhava, abrindo espaço em meio àquele mar de mentiras.

- Oh... Quem é aquele rapazinho...?

- É o lord Mitchell Sunderland. Não o conhece?

- Sunderland? Da família Sunderland, aquela rica e nobre que comanda as atividades de manufatura e das fábricas?

- Essa família mesmo!...

- Oh, mas a família Sunderland não estava sem herdeiros? Afinal, o patriarca e a única filha morreram... E a mulher está a caminho da morte também...

- O lord Mitchell é o filho de uma amante! Ele é o novo herdeiro.

- Uma amante?! Ele é um bastardo...?!

- Só está assumindo porque a lady Sunderland não tem mais condições, ela está para morrer. É um golpe de sorte, porque não há mais quem possa comandar a família. Só restou ele.

- Ora!... Não parece até que foi planejado?

- Não é? Também pensei isso no começo! É sorte demais!...

- Não duvido, também. A personalidade do lord Sunderland é torta demais!... Aqueles olhos azuis e aquela aparência de príncipe perfeito enganam. Os boatos contam que ele é um demônio!...

- Sim... Também soube do incidente dos jardins internos da mansão?

- Que incidente...?

- Oh, não sabe disso também? – a segunda lady deu uma risadinha. – Querida, precisa estar mais informada! Uma das primeiras ordens deste lord Sunderland foi a de queimar todos os pertences pessoais da família.

- Nem posso imaginar o ódio de lady Becka... Naquela cama, sem poder fazer nada. Apenas sentindo o cheiro do fogo consumindo todo seu patrimônio...

Pobre Becka?, pensava eu. Ela recebeu a maior dádiva de todas.

Becka Sunderland iria morrer logo. Muito, muito em breve, eu esperava. Mas... Eu ainda iria estar vivo. Eu sim é que merecia pena.

Na verdade, eu sinceramente não me importava com a conversa das madames. Já me acostumara, fundira-me totalmente com aquele ambiente.

Murmúrios, boatos... Eles eram só um bando de ovelhas desgarradas, apenas pessoas com dinheiro e tempo livre, consumindo a si próprios num mar de ciúmes e ganância, almejando prestígio, dinheiro, poder...

Conseguiam ser mais deprimentes, ao meu ver, do que os heróis dantescos e ridículos que eu lia em minha biblioteca.

- Tenho pena do destino incerto dos Sunderland!...

- Não é? Onde já se viu, um bastardozinho ocupar o lugar de “patriarca”, de “chefe máximo”?! Aquele menino devia saber o seu lugar!

- Ah, se fosse comigo!... Com muita sorte, tornar-se-ia um empregado de serviços externos...

- Sem falar na idade. Não tem condições de chefiar uma família tão grande e nobre quanto os Sunderland apenas com quinze anos! Dizem que ele foi mantido em segredo por todos esses anos, isolado da sociedade. Então, não deve ter recebido a educação necessária!...

- Estamos numa era onde o título já não conta mais... Que tristeza...

Eu sorri. Gostava que falassem mal de mim. Fazia-me, por algum motivo, satisfeito. Como se fosse um trabalho bem feito.

Apenas por consideração ao meu espírito ainda infantil, deixei-me ser servido de vinho por um servente que por ali passava, e bebi em goles longos, com a máxima falta de educação que eu podia.

As pessoas me olhavam, eu podia sentir, e logo os cochichos retornaram ao rumo comum; falando ou não de mim, eles permaneciam pairando, como fantasmas.

Enchia-me de tédio participar daquilo. Festas vitorianas não são, exatamente, meu conceito predileto de “diversão”. Eu não buscava prestígio, lindas mulheres, fama ou dinheiro: eu só queria descansar. Um pouco de paz de espírito.

Era só isso que eu queria. Desde os cinco anos.

Talvez, por isso eu invejasse tanto Becka Sunderland: a morte era a paz. Era nunca mais ver ninguém. Era como dormir, mas com a inclusão do fato que me lembrou a ridícula estória da Bela Adormecida: adormecer, sem sonhos, por cem anos. Por toda a eternidade.

Eu queria muito tudo aquilo...

Deixei-me, então, andar sem nenhum rumo definido pelo salão, sem dirigir-me à ninguém. Ao erguer meus olhos, deparei-me com o lustre principal, destilando os fachos de luz marmórea em todos os presentes. O lustre tinha uma forma que me lembrava uma estrela; nesta hora, instintivamente, toquei em minhas costas.

Ironicamente, eu tinha duas estrelas nas costas. Sobrepostas, cheias de segredos, de significados sussurrados em noites (ou dias?) escuros, que fediam a esgoto e sangue coagulado.

Minha marca nunca sarou totalmente. Quando alguém a toca, ela arde um pouco, como se os dedos alheios fossem um novo ferro em brasa, tatuando um desenho a mais em cima daquele.

Meu medo da dor inimaginável que aquela lembrança formava contribuiu para os boatos sobre o lordezinho mal-educado e de personalidade distorcida, que evitava toques e palavras.

Sorri para mim mesmo. Eu estava adorando ser um lord. Era uma experiência enriquecedora, muito melhor que a monótona vida de um cidadão normal que eu teria, caso mamãe não tivesse morrido.

- Lord Sunderland! Venha cá, por favor!

Desviando os olhos do lustre que lembrava uma estrela torta, olhei na direção daquela voz conhecida, e divisei um grupo de lords e nobres. Eles conversavam, animadamente, mas pararam assim que ouviram o que me chamou gritar o nome “Lord Sunderland”. Não acho que gostaram disso, mas souberam ocultar bem em suas faces de gados apáticos.

Todos eram altos, e a maioria tinha um peso acima do aceitável, mas eram nobres, e era isso que importava. Eu era apenas uma criança de aparência frágil de enfermo e uma arrogância de homem maduro perto deles.

- Lord Shelser... Senhores... – cumprimentei-os, com uma educada e calculada reverência. Eles devolveram-me o gesto.

- Este é meu contribuidor, lord Mitchell Sunderland. O novo “patriarca”, como já devem ter ouvido falar. – sorriu.

O sorriso de Edward Shelser, o homem com a mão sobre meu ombro, o homem que me chamou até àquela roda de homens. Aquele sorriso era misterioso. Era sinistro. Tinha uma aparência turva de água parada, e afinava seus olhos ao levantar as bochechas, acentuando a aparência levemente felina.

Mesmo quando estava de bom humor, aquele sorriso era perigoso. Era como se ele fosse uma espécie de psicopata, um louco de algum folhetim romântico, 24h do dia. Como se ele fosse a alma mais torta da casa.

(E isso me lembrou a cantiga da casa torta, aquela da Mamãe Ganso que minha própria mãe cantava-me quando pequeno, que eu automaticamente relacionava a qualquer assunto relativo aos Shelser ou aos Sunderland).

- Soube que o jovem Sunderland esteve isolado do mundo vulgar por muitos anos, antes de estar aqui em St. Helens. – um daqueles homens comentou. Eu estremeci; certamente os boatos corriam com velocidade absurda por ali.

- Sim, também soube disso. E quem o tirou de lá foi o lord Shelser. É verdade?

Desviei os olhos daquelas pessoas, incapaz de proferir palavras que pudessem explicar a verdadeira tragédia.

E, então, senti a mão de Edward Shelser pousar em meu ombro, descendo um pouco por minhas costas. Ela tocou em minha marca. Aquele pentagrama e hexagrama tortos, aquela cicatriz torta nas costas de um menininho torto.

- Ora, não é que eu seja um herói, do jeito que falam... – o senhor Shelser riu.

Eu, Mitchell Sunderland, tinha quinze anos. E eu sabia meu lugar.

Repentinamente, vi-me transportado para aquela mesma sala. Aquela que mais parecia uma gruta, que pingava repetidamente, como numa tortura chinesa, quando chovia. Onde o guincho dos ratos e o som do caminhar frenético de baratas eram meus únicos companheiros. Onde o eco que uma boneca de porcelana fazia quando caía das prateleiras era tão alto que me fazia tremer por horas seguidas.

Como se eu estivesse mais uma vez lá, vi-me amarrado à superfície amadeirada. Correntes tolhiam minha liberdade, e eu sentia o metal das correntes fremindo contra a madeira. O som arranhado doía em meus ouvidos.

Eu estava de bruços, e só via diante de mim a escuridão obsidiana do chão. Mas ouvia a voz daquela pessoa.

- Você sabia que “Mitchell” é um nome escocês do século XV, e tem origem bíblica? Vem de “Michael”, o Arcanjo. Significa “Aquele Que É Como Deus”. – sua voz era quase que metálica. Sem nenhuma entonação de emoção. – Como alguém com este nome pode estar assim? Assim, tão manchado pelo “pecado primordial”? Você é como “Cain”, Mitchell Harpper.

Cain, o irmão de Abel, filho de Adão e Eva. Expulso do Paraíso porque matou o irmão por inveja porque Deus apreciou mais a oferenda do irmão. Punido com a vida eterna, sem que ninguém pudesse o matar.

Cain... O pecado original.

Michael... O grande arcanjo. O pecador.

- Você é como nós. É como um anjo, Mitchell. Um ser próximo do Senhor. Não devia ter nascido do pecado, não devia ser isso que é. – ele continuava dizendo. E eu só queria que se calasse um pouco... – Sua mãe pagou pelo seu pecado e seu pai está fazendo isso também. Mas você precisa pagar também, Mitchell Harpper.

Que pecado? Onde estava o meu pecado?

Só porque eu nasci? É este o meu pecado?... Nascer um bastardo e ser descoberto, tragado e jogado neste mundo de víboras e corvos?

É um pecado tão grande este de existir, que minha punição era viver em medo e agonia todos os dias?

- Mas saiba que, mesmo tendo cometido tamanho pecado, nós lhe amamos, Mitchell. Deus também lhe ama. Ele fez uma “marca” em Cain, o pecador primordial. Mesmo ele tendo feito o que fez, Deus o amava e fez nele uma “marca”.

Eu apenas ouvia, movendo meus orbes de um lado ao outro, buscando freneticamente os olhos daquela pessoa de voz tão morta.

Que espécie de pecado eu cometi?! Apenas me diga, me faça entender isso, e eu nunca mais falo nada! Só quero entender que pecado eu cometi!...”, eu implorava. Mas isso não passou de um pensamento falho. Eu nunca pude perguntar qual o meu pecado. Passei 10 anos pagando por algo do qual sequer tinha ciência.

- Por isso, também faremos uma “marca” em você. A marca dos descendentes diretos de Deus. Uma marca de perdão. Você será “marcado” para saber que Deus lhe ama. Que nós lhe amamos, Mitchell, mesmo você sendo este pecador infame. E para saber o seu lugar.

Eu vi, naquela penumbra levemente vaporosa, os pontos de sombra projetados pela luz vermelha e calorosa. Ouvi o som de metal, de fogo.

E, então, foi como se eu estivesse com mamãe, quando eu ainda era uma criança que achava que o mundo era apenas ridículo. Como se eu estivesse espiando-a na cozinha das casas daquelas ladies enfadonhas, fritando bifes.

Mas, desta vez, eu era a carne.

O som rouco do metal em brasa aderindo à minha pele foi, talvez, o som mais assustador que eu já escutei. Fez “tssssss”, e demorou, na verdade, até doer. Alguns segundos de pura descrença separaram minha face de pânico de um grito memorável de dor profunda.

Eu senti que toda a minha parte de trás estava ardendo, como se eu estivesse queimando no próprio Inferno. Meu corpo parecia querer partir-se em mil pedaços. Eu tentei me mover, mas fazer aquilo apenas aumentou a sensação de ardência. Os primeiros segundos foram os mais pavorosos; depois, tudo adquiriu um tom seguro de ilusão, como se a dor fosse distante, como se minha própria consciência fosse apenas uma lembrança ruim.

A dor era tanta que eu já não sentia meu corpo. E, então, aquele metal descolou-se dali, findou o beijo de dor e morte. O cheiro de carne queimada invadia minhas narinas, me fazia querer vomitar.

Era a minha carne que cheirava assim. Eram meus olhos que vertiam lágrimas. Aqueles gritos de agonia bruta eram meus... Eu é que estava ali, gritando e me debatendo como um animal. Eu é que estava agonizando, preferindo mil vezes que o chicote me fustigasse, como sempre, do que aquele ferro sobre minha pele.

- Um pentagrama e um hexagrama. O símbolo do mal reverso, a marca que indica os anjos desonrados.

Aquela mão asquerosa encostou-se a minha pele sensível, bem sobre aquela queimadura que ardia como se estivesse devorando aos poucos todas as camadas de derme que eu possuía.

- “Malos Spiritus Sigillent”. “Contenção de Maus Espíritos”. De agora em diante, esta será a sua “marca”, Mitchell. A sua marca de perdão, de rendição... E aquilo que indica a sua “posse”.

Os lábios daquela pessoa desceram até meu rosto úmido de lágrimas, e eu senti o toque áspero de sua língua traçando o mesmo caminho salgado, até meu queixo.

- Você é “algo” meu. É uma “propriedade”. Saiba desde já o seu lugar...

...É, eu sabia meu lugar.

Vi-me mais uma vez no presente, não contendo um suspiro que não sei dizer se foi de medo ou de alívio. Vi aquelas luzes iluminando-me, os rostos daqueles homens nojentos me encarando, seus sorrisos falsos, todo aquele ambiente opressivo, mas que não tinha a cor obsidiana da escuridão, não tinha a tênue luz das brasas. Nem os olhos cegos de bonecas, que observavam a tortura, que riam baixinho.

Eu sabia meu lugar desde aquele dia, quando recebi a minha “marca”. Quando fui punido por meu “pecado primordial”.

- Não, o senhor Shelser é realmente um herói. – falei, com um sorriso mortiço. Aquele sorriso que eu dignava aos outros. – Ele me salvou daquele lugar ruim. Devo minha vida a ele. E faço o que posso para retribuir.

- Vê-se que é só um menino... Mitchell, irá me deixar sem jeito... – Edward Shelser deu uma gostosa risada, como se estivesse gostando daquilo, e tirou as mãos de minhas costas.

Eu senti-me quinze vezes mais leve.

E sorri. O sorriso torto que aprendi a fazer naquele lugar escuro, durante dez longos e solitários anos. Porque, afinal, eu só podia fazer isso.


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