Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 2
Capítulo I




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I

 

Mesmo sendo uma modesta, pequenina cidade britânica perdida no meio da neve e dos dias nublados eternos, aquela casa era suficientemente perfeita para insinuar doces ilusões nas mentes dos mais impressionáveis.

A densa névoa da manhã que a tudo cobria e ocultava era a única companheira das casas enegrecidas, algumas cheirando a mofo, outras ainda úmidas da temporada de chuvas. Para alguns, aquele tipo de cenário era enfadonho, triste. Poucas pessoas ficavam aqui se tivessem oportunidade de ir embora. O céu eternamente nublado e a neve e chuva eternas sugavam, como um vórtice, qualquer alegria.

Mas eu admito que gosto. Não vejo nenhum problema com este tipo de coisa.

Agora mesmo, graças à tempestade absurda da noite anterior, as janelas estavam impregnadas do bafo da manhã, aquelas gotículas pequeninas e translúcidas que ficavam na janela, tornando-a branca e não transparente. Eu gostava de desenhar qualquer coisa ali. Não que meus dotes de desenho fossem excelentes, mas era um bom passatempo.

Na verdade, nada em mim é excelente. Quando visto o traje das empregadas, um discreto vestido negro de punhos e colarinho branco, com um igualmente discreto avental, com alguns babados no ombro, eu pareço ter ainda menos curvas do que, de fato, possuo.

Claro que nunca me apaixonei por um homem, nem sequer algum me cortejou, mas este é um fato da minha vida que eu gostaria de consertar.

- Cora? O que está fazendo aí?

Virei-me. Deparei-me, assim, com a imagem de uma mulher perfeita. Cabelos acobreados e perfeitos, descendo em delicadas ondas pelos ombros e costas, até chegar à cintura.

Sempre quando eu a observava, pegava-me pensando que tudo nela parecia ter saído de um conto perfeito, de uma nobre boneca de luxo. Seu porte perfeito, sua pele translúcida, sua voz macia como seda.

- Ah, é a senhorita, mamãe Irisa. – sorri, sentindo-me leve tão logo ela apareceu em meu dia. – Achei que estivesse ocupada com o café-da-manhã...

- E estava. Gostaria de saber se também o está. – ela cruzou os braços, olhando-me gentilmente. Podia sempre sentir o quanto gostava de ser chamada de “mamãe” por mim.

A senhorita Irisa Baker era uma empregada daquela mansão, e quando eu tinha 12 anos, ela me encontrou na rua, num dia gelado e desesperador.

Desde então, ela manteve-me como sua filha adotiva, emprestando-me até mesmo seu sobrenome, fazendo de mim Cora Baker. Por mais que tivéssemos, entretanto, o mesmo cabelo acobreado, por exemplo, e a mesma pele branca, a ponto de podermos mesmo mentir que éramos mãe e filha legítimas, ainda sim, éramos totalmente diferentes.

Irisa era perfeita. Uma mulher cujo rosto de porcelana parecia congelado eternamente na beleza etérea da juventude. E, mesmo assim, seu porte, sua fala e todos seus gestos acompanhavam a austeridade de seus 31 anos. Ela parecia ser uma árvore, um salgueiro, com os pés fincados ao chão, eternamente indefinida naquela aparência perfeita.

- Estava ajudando, junto com Angeline, mas ela foi à frente.

- Com Angeline...?

Minha “mamãe do coração” tinha um certo dom: ela previa. Ela via. Talvez tivesse um sexto sentido. Quando ela arqueava sua sobrancelha ruiva, quando a bochecha rosada erguia-se um pouco, e seu rosto ficava excepcionalmente sério... Tudo aquilo era um sinal: problemas.

- Você estava com Angeline, que está cuidando do quarto de nosso senhor?

Disso eu não sabia...

Imaginei que Angeline, que é uma das criadas também, estivesse ajudando-a, como muitas fazem. O dono da mansão é exigente e gosta de variedade, por isso, para servi-lo em hora, o trabalho nestas partes do dia era extremo.

Na realidade, minha mãe tinha medo do nosso senhor Sunderland. Eu jamais o vira de perto nas poucas vezes que o divisei em algum corredor da mansão. E mamãe fazia o possível para que ele não percebesse jamais a minha presença.

- ...Mil perdões. – sussurrei. Nessas horas, não havia muito a se dizer.

Minha mãe descruzou os braços e relaxou a feição. Eu sorri; adorava-a daquele jeito, delicada e eternamente jovem, como uma deusa pagã mitológica. Ela era tão perfeita que eu sempre me perguntava, principalmente quando a via lavar, tão concentrada, a louça, ou a via dormir, como ela ainda estava ali, como mera empregada. Era tão bela que podia ser confundida com uma lady.

- Está bem, está bem. Apenas não chegue perto do quarto do nosso senhor. E nem vá para a sala de jantar agora. – alertou-me, naquele tom materno e sério que só ela sabia fazer. – Promete-me que não vai?

- Prometo, mamãe Irisa. Eu jamais a desobedeceria. – sorri igualmente, encostando a mão na janela de novo.

Irisa ergueu novamente a sobrancelha, segundos depois.

- Pare de desenhar na janela. Se continuar aí sem fazer nada, vão atribuir ao fato de que é minha filha adotiva. E mesmo meus poderes de governanta não poderão impedir um castigo.

Eu não consegui me segurar, e ri. – Sim, senhorita.

Isso aconteceu uma vez, na verdade. Ela me trancou no porão por um dia inteiro, me proibindo de comer. Eu podia ouvir com clareza os cochichos satisfeitos que silvavam por entre os corredores, certeiros, parecendo feitos apenas para que eu os recebesse.

Entretanto, à noite, quando o vento frio lambia a pele e o céu estava alcatrão e denso, minha mamãe me tirou de lá. E me deu um pouco da comida que ela havia pego das sobras do nosso senhor.

Lembro-me de que eu havia chorado o dia inteiro, achando que ela me odiasse. Mas só então eu vi aquela dor cortante em seus olhos verdes.

E eu soube, afinal, que doera mais nela do que em mim.

Acredito que foi naquele dia que eu a amei como mãe. Naquele dia que meus fantasmas, lentamente, um a um, começaram a se desprender de mim. De fato, os pesadelos onde eu reiniciava toda minha trajetória até chegar àquela rua estreita, cicatriz da cidadela, ferida e com frio, diminuíram.

Mamãe Irisa e as pessoas deste lugar, por mais que tivessem sido injustas comigo no início, me trouxeram força. E, principalmente, a possibilidade de futuro.

- Eu vou cuidar dos outros afazeres, está bem? Fique longe da sala de jantar, entendeu, Cora? – ela encarou-me, antes de, hesitantemente, virar-se, para seguir seu caminho.

- Entendi. – assenti de imediato. – Boa sorte, mamãe.

- Obrigada, minha pequena. – antes de deixar aquele corredor, ela me dedicou um suave beijo na testa. Eu fechei os olhos, sentindo sua pele quente contra a minha. Irisa Baker, mesmo sendo solteira e sem filhos, tinha o calor de uma mãe.

Depois que minha mãe foi, eu fiquei olhando-me pelo espelho embaçado.

Eu não era bonita, não mesmo. Não comparada a Angeline, minha mãe ou algumas outras empregadas, por exemplo.

Meus cabelos eram longos e ondulados, chegavam até o meio das costas. Tinham o mesmo tom acobreado, vivo e rubicundo, de minha mãe. Talvez, um pouco mais intenso. Quando era menor, tinha complexo por causa dele. Era sempre muito chamativo.

Minha pele também. Era branca, branca demais para uma empregada (talvez porque eu não fosse assim tão designada para serviços externos como as outras. Minha vida – que eu considerava ter começado desde meus 12 anos – resumiu-se mais de 95% a ficar dentro da mansão Sunderland). Meus olhos eram castanhos, a única coisa bela em mim, e eram diferentes dos invejáveis olhos oblíquos e perfeitos de Irisa. Não tinha muitas curvas nem era alta. Em suma, era uma criatura totalmente normal, sem graça até.

Às vezes, só às vezes, eu pensava que gostaria de nascer de novo. E trocar tudo que eu pudesse. Aquele vestido de empregada, preto e sóbrio, só fazia-me parecer ainda mais sem graça.

Mas eu logo parava de pensar em como gostaria de nascer de novo. Geralmente, pensamentos como este me carregavam inconscientemente à caminhos tortuosos que eu jurei nunca mais percorrer.

Decidi refrescar minha mente com um passeio pelos corredores clareados do tímido sol da manhã, tão prejudicado pelas nuvens plúmbeas que rodeavam o lugar.

A mansão Sunderland, uma grandiosa mansão, pertencente ao herdeiro de uma das quatro famílias mais poderosas de St. Helens, era tão misteriosa quanto a história de seu nome. Abóbadas escarlates e perfeitas, arabescos dourados, uma decoração sóbria e sinistra... Quando eu era pequena, tinha medo destes corredores sem nenhum retrato, totalmente nus e gélidos.

Toda esta casa inspira medo e respeito. É diferente de outros lares que ouço falar, que leio nos livros que afano temporariamente da biblioteca... É um lar morto.

A claridade do amanhecer infiltrava-se pela janela e iluminava delicadamente o chão, às vezes banhando-o totalmente, até aquele ponto ser um jogo de luzes e sombras intrínsecos, tão unidos que não se definia o quê e onde estavam. Quando eu abria as janelas, o sopro úmido da chuva e da neve encharcava meu rosto de vida. Mas, quando eu as fechava, imediatamente a atmosfera da mansão me devorava. Eu voltava a retesar os ombros, sempre.

Mamãe Irisa contou que, antes de eu chegar aqui, nosso senhor ordenou que queimassem todos os quadros, todas as esculturas, qualquer coisa que fizesse alusão a algum membro dos Sunderland. Hoje em dia, este lugar é nu, é incompleto... Diferente das outras mansões, ele não tem passado. É apenas uma construção enegrecida. Um cadáver de palácio.

Enquanto caminhava, ouvi um som vindo da grandiosa escada de mármore.

Virei-me em tempo de ver o que eu temia, pela gravidade do barulho; uma pessoa estava caindo. A escada era grande, e a queda podia ser feia, a ponto de machucar aquela pobre alma desavisada.

Corri, sem perceber quem era ou porquê estava descendo do segundo andar, exclusivo do nosso senhor Sunderland.

Graças ao fato de eu ser uma empregada, acostumada desde que fui acolhida aqui a trabalhar em várias tarefas, adquiri uma agilidade que, antes, não me era típica. E, agora, conseguir segurar uma pessoa na escada não era problema. Segurá-la, ao menos, porque quando toquei em seus ombros inertes, percebi o peso imenso daquele corpo.

Meu plano original era salvar aquela pessoa, mas parece que piorei tudo: eu e ela caímos pela escada, eu amortecendo sua queda, aquele corpo pesado me esmagando, e então, caímos no chão, lá embaixo.

- Ai... O que você...?

Prendi a respiração. Eu estava debaixo dele, na posição mais incomoda possível, com uma perna sobre sua cintura (ainda pergunto-me como ela foi parar bem ali...). Minha saia estava levantada, eu podia sentir pela brisa incomoda que antes não soprava ali.

- Você...

A voz dele era forte. Forte, segura de si, e ainda sim, surpresa. Não combinava com seu rosto. Não mesmo.

Era ele. Era Mitchell Sunderland, nosso senhor.

Eu o reconheci de imediato, mesmo só tendo visto-o de longe por toda minha vida e nunca trocado uma só palavra ou ouvido sua voz. Por isso, fiquei surpresa ao ouvi-lo. Eu sempre fantasiei que ele era uma figura fantasmagórica, um espectro que comandava aquela casa assombrada e tão morta quanto sua figura.

Por isso, vê-lo em cima de mim e sentir o quanto ele era quente, vivo, enfim, real... Aquilo me chocou de uma forma que eu não soube explicar.

Mitchell Sunderland era um rapaz alto. Talvez tivesse quase 1m90, se não isso. E, mesmo assim, seu corpo tinha uma aparência um pouco frágil, quebradiça, mesmo ele tendo músculos firmes. Talvez fosse porque sua pele era tão translúcida quanto a de um espectro. E talvez porque seus olhos da cor de hortênsias frescas da primavera estivessem surpresos, adquirindo uma tonalidade viva...

Eu nunca os tinha visto. Nada como aquela cor tão exótica. Alguma coisa em mim quis tocar sua pele, mas meu corpo não se moveu. Aqueles seus cabelos, macios e loiros como trigo, caíam por seu rosto doente. Eu sentia a cabeça enevoar e só então lembrei que ainda estava prendendo a respiração.

- Quem é você? – ele me perguntou, rudemente, apoiando o peso de seu corpo com as duas mãos no chão.

- Cora... Cora Baker... – sussurrei, totalmente vermelha.

Tinha esquecido completamente de que minha perna estava ainda circundando sua cintura, até que ele a tocou. Traçou um caminho sinuoso, desde o joelho até a parte interna da minha coxa, e eu segurei um grito.

Repentinamente, lembrei de minha mãe dizendo “para tomar cuidado com ele”.

- E você está com essa roupa de empregada por que? Acaso, trabalha aqui? – sorriu ainda mais. Mas, agora, seus olhos não tinham mais aquele brilho; pareciam até mais apagados, mais gélidos.

- S-sou uma empregada dos Sunderland... – eu sabia que não podia me mover, afinal, ele era o herdeiro único, mas aquela mão em minha coxa era... Assustadora.

Mitchell Sunderland parou e me olhou profundamente.

Tão profundamente, me auscultando em cada canto da minha alma, de uma forma tão impenetrável que eu virei o rosto.

Ele segurou-me o queixo com mais força, de um jeito que me machucou, e voltou a me analisar. Seus olhos me diziam “nunca te vi aqui, estranha. Mas gostei de você”. E essa mensagem subliminar me apavorou, de uma forma que eu ainda não havia aprendido a temer alguém.

E, tão rápido quanto durou aquela incomoda análise, ele ergueu-se, soltou minha perna e tudo o mais. Limpava sua roupa, até desviando seus olhos de mim. Como se nada daquilo tivesse acontecido.

- Levante-se, Cora Baker.

Com o corpo e os lábios tremendo, eu lhe obedeci. Meu peito doía como naquele dia, quando mamãe Irisa me achou num estreito beco daquela cidadezinha.

- E venha comigo. Tome café-da-manhã ao meu lado, sim? – sorriu, de uma forma quase que sádica. – Gostei de você.

- Ah... Senhor Sunderland, eu...

- E isso não é um pedido, querida.


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