A Bela De Vermelho escrita por Last Mafagafo


Capítulo 1
Capítulo 1




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 Fome, maldita fome que eu tive naquele dia. Uma das desvantagens de ficar sozinha em casa enquanto a mãe trabalha o dia todo na aldeia é esta, a fome. E por causa dessa fome que eu saí de casa para atravessar a floresta até a Padaria da Vovó. Não é que não tivesse comida na despensa. Tinha, e muita, mas quando se tem 17 anos e uma saladinha não cai tão bem assim, ir até a padaria e comprar algum doce é mais que necessário, é indispensável.
   Minha mãe e eu morávamos sozinhas na floresta, nos arredores de uma pequena aldeia onde minha mãe trabalhava e eu estudava. Meu estudo era só pela manha, então, à tarde eu ficava sozinha em casa e quando eu tinha fome, ia até a Padaria da Vovó comprar um docinho. Não era tão perto quanto a que havia na aldeia mas ao menos minha mãe não percebia que eu saíra  de casa. Essa era uma de suas  regras :" Não quero saber de você andando por aí sozinha. É da casa pra escola e da escola pra casa. O mundo é perigoso e não quero nem pensar no que pode acontecer com você aí fora." sempre a mesma conversa, o mesmo sermão. Eu nem me importava, afinal, eu já era bem “grandinha”.
    Peguei alguns trocados e guardei no meu saquinho de algodão, atado a minha cinta, coloquei minha capa vermelha, a mais quentinha que eu tinha, sobre o fino vestido azul claro do dia a dia e saí. Também levava uma cesta. Depois que proibiram a distribuição de sacolas, essa era a única forma de carregar meu suprimento de açúcar da semana.
  Aquela tarde estava muito bonita, os altos pinheiros e carvalhos cobertos de neve eram dignos de admiração, tão bonitos... Até as árvores nuas, quase mortas sem suas folhas e flores, tinham magnetismo, graça. Demorou um pouco, mas eu cheguei à padaria. Não estava cheia, só havia eu, um homem de uns trinta anos e uma senhora em torno dos quarenta com dois filhos. Dona Doralice, a "vovó" me atendeu por detrás do balcão de madeira.
  - Menina Rubia! O que veio comprar hoje da vovó?
  -Hoje eu quero uma torta, do que a senhora tem?
  -Menina, leva a de maçã, acabou de sair, quentinha, quentinha.
  -Eu quero. E você fez alguma compota? Doce de abóbora, de nata, de doce de leite...
 -Tem das três, mas não são de hoje, não. Só a de abóbora que eu fiz ontem à noite, o resto é do inicio da semana.
  -Mesmo assim, eu quero todas. Vai durar pelo menos um mês.
  - Nossa menina, é festa?
  -Que nada. Não passa de gula.
  E foi desse jeito que me despedi da "vovó" para retomar minha caminhada. Já passava pelo meio do caminho quando senti um arrepio. Era com estar sendo seguida, vigiada. Senti tocarem meu braço e me virei assustada. Um lobo com porte de homem, uma fera assustadora me encarava. Pensei em correr mas  minhas pernas não conseguiram. Fui me afastando devagar,  porém tropecei e cai ao chão. Aquele era meu fim, fechei meus olhos e esperei a morte.
  Não veio. Olhei para o lobo e um sorriso sinistro brotou em seu rosto. Um sorriso que, apesar de terrível, mostrava simpatia.
  - Calma garota, não se assuste, não te quero fazer mal.
  - V-v-voc-cê fal-laa?
  - Claro que sim. Oras, só porque eu sou um lobo eu não falaria?
  - O que você quer de mim?- engoli em seco, tremendo de medo.
  - Sua presilha- ele estendeu as patas e a pequena rosa de cobre que prendia meu cabelo brilhava entre seu belo pelo castanho.
  Peguei-a e prendi novamente meu cabelo. Sorri e voltei a minha caminhada. Ele se pôs ao meu lado, como um cão, me acompanhando. Me senti um pouco desconfortável com sua presença e ele percebeu.
  - Tudo bem se eu for com você, não?
  - Não sei se e uma boa ideia.
  - Mas eu não vou te fazer mal.
  - Eu nem te conheço.
  - Artur Lobo. Agora já me conhece.
  Sorri, ele tinha um certo carisma sob suas garras e dentes assassinos.
  - Rubia.
  - Então Rubia, agora posso te acompanhar?
  - Sim, tudo bem. Mas porque quer andar comigo?
  - Que interrogatório!
  - É sério, por favor.
  - Difícil acreditar num lobo, né? Primeiro: não quero que ande sozinha, essa área não é muito segura, principalmente para alguém com uma capa vermelha bem "discreta". Pode acreditar, sou lobo, eu sei. Segundo: eu sou muito sozinho. Aqui não tem muito movimento e tentar falar com algum... humano nunca dá muito certo.
  -E por que falar com humanos? Você não deveria falar com os lobos?
  -É complicado, mas isso não vem ao caso.
  Fiquei bem curiosa. Mas, naquele momento, admito que senti pena do lobo. Sabia o que era estar sozinha. Não tinha amigas, as garotas da escola viviam na aldeia e se encontravam todo dia depois da aula, enquanto eu deveria voltar direto pra casa, sempre sozinha.
  - Eu te entendo... A única vez que consigo sair de casa e para ir a padaria, o resto do tempo eu fico sozinha. E não posso ir a aldeia, minha mãe saberia.
 - Então venha me ver. Gostei de você, é bem mais corajosa que os outros.
 - Mas eu tive medo de você.
  - E ainda assim me deu uma chance.
  Sorri. Já tínhamos chegado em minha casa. Me despedi e prometi encontra- lo no dia seguinte. E assim fiz. No inicio eram dias, logo um mês já havia passado e eu e o lobo estávamos cada vez mais próximos. Nos compreedíamos e nos dávamos tão bem. Nunca conheci ninguém como ele. Com o passar do tempo comecei a sentir sua falta, precisava dele. Meus sentimentos se confundiam, mas ama-lo seria impossível. Ele era um lobo e eu uma humana. Passei a guardar esse sentimento só para mim, e doía tanto! Mas  nosso relacionamento não poderia passar de uma amizade. Nunca.
  Fui encontra-lo mais uma vez. Não nos encontrávamos só a tarde, às vezes durante a noite também. Era madrugada, por volta das duas da manha. Estava de novo com minha capa vermelha, aquela que usava quando nos conhecemos. Sai pela janela e fui descendo devagar pelas vigas das paredes. Levantei o lampião a altura dos olhos e segui pelo caminho até a árvore oca onde costumávamos nos encontrar. Ele já estava lá, sentado como um humano, encostado na arvore. Eram nessas horas em que eu esquecia que ele era um animal. Ás vezes ele parecia tão humano...
  -Que bom que você chegou, já estava imaginando que você não viria hoje.
  -Tive que esperar até ter certeza que minha mãe estava dormindo.
  -Eu entendo...
  - Mas o que você tinha de tão importante para me falar? Seus uivos foram tão fortes que até assustou minha mãe. A gente tinha combinado que você seria mais discreto.
  -Não pude me conter, estava quase sufocando.
  -E então?...
  Ele segurou minhas mãos entre suas patas macias  e olhou no fundo dos meus olhos. Desviei, parecia que ele poderia ler todos os meus pensamentos neles. Ele puxou meu rosto e me fez encara-lo:
   -Olhe para mim. Eu tenho que te falar algo que venho adiando há muito tempo. Rubia, eu te  amo. Você mudou minha vida, eu não posso me imaginar sem você comigo.
   - Eu...eu..não sei. Eu tenho que ir.
   -Rubia!
  Eu corri em direção a minha casa. Estava escuro e eu mal enxergava. Ele também me amava, isso me assustava. Mas como? Era tão impossível! Tropecei e cai, meu lampião quebrou e se apagou. Ás cegas fui tateando as arvores até encontrar o portão de minha casa. No fundo da noite, calando o canto das cigarras, podia ouvir seu uivo, choroso, triste se misturando ao meu choro, tão triste quanto o dele. Subi até meu quarto, já me acostumando com a escuridão. E fiquei lá, enquanto meu coração pesava em meu peito, contraindo aos poucos, até que adormeci.
   Na manha seguinte, eu sai para ir a escola. Meus olhos inchados da noite anterior ainda estavam lá para me lembrar da declaração de Artur. Sai do quarto para encarar minha mãe na cozinha, roubei uma maçã da cesta e abri a porta, mas minha mãe se pôs perante mim.
   -Você não vai sair. Um lobo anda rondando nossa casa. Eu até chamei o caçador para se livrar dele. Depois você pode ir.
   Um caçador? Por que Artur foi tão tolo  de vir a minha casa? O caçador iria mata-lo e tudo por culpa minha! Tentei correr para fora de casa para avisa-lo, mas não pude, minha mãe me segurou e me prendeu no quarto. " É para o seu bem", disse e me deixou sozinha. Tentei avisar Artur pela janela.
  -Saia, por favor.
  -Eu não vou, não sem você.
  Ele não me entendia e eu estava me desesperando. Ouvi tiros, era o caçador. Artur olhou para mim, ele achou que eu o tinha chamado . Uma lágrima escapou dos meus olhos. Quebrei a janela e tentei sair, mas foi naquele momento que uma bala penetrou no peito de Artur, fazendo-o cair ao chão. Saltei a janelaquebrada ,corri até ele e me joguei sobre seu corpo.
   -Por quê? Por que você me traiu assim?
   -Eu não queria isso. Você não devia ter vindo.
   -Eu te amo.
   Ele segurou meu rosto e enxugou uma de minhas lágrimas. Seus olhos se fecharam devagar e seu braço tombou no chão. Ele estava morto. Me agarrei ao pelo dele enquanto lágrimas rolavam de meu rosto e iam depositar em seu peito.
  -Artur, não me deixe. Eu...eu...te amo.
  Naquele momento minha mãe e o caçador chegaram mais perto. Ela já iria me repreender quando um forte brilho brotou do corpo desfalecido de meu lobo e ofuscou a todos nós. Logo seu corpo se transformava, perdia os pelos, mudava a forma. Seu focinho desaparecia, restando em seu lugar um nariz humano. Na minha frente a fera desapareceu e deixou  um belo homem, jovem, cabelos castanhos , com os mesmos olhos do lobo, nu. Eu não pude entender o que acontecia, e muito menos o caçador e minha mãe. O jovem se levantou e sorriu para mim. O caçador lhe cedeu sua capa para que se cobrisse  enquanto o segurava minhas mãos da mesma forma que o lobo fazia.
  - Você me ama. Você disse que me ama.
  -Artur, é você? Como?
  - Sim, sou eu. Foi uma feiticeira, vingativa, amargurada, inconformada por eu tê-la repudiado por causa de sua feiura. Me condenou a rejeição pelo resto de minha vida. Mas seu amor me libertou.
   Ele me beijou ardentemente, de um jeito que me fazia sentir possui-lo e ser possuída por ele. O caçador assustado, perdido, jurou manter o caso em segredo e mais tarde chegou a desistir do oficio. Já minha mãe, foi mais complicado fazer com que ela entendesse. Claro que tive que contar toda a história a ela que ficou irritada com minha desobediência, mas por fim ela compreendeu e abençoou nossa união.
   Minha vida pouco mudou após aquela manhã, não deixei de morar com minha mãe, nem mesmo de frequentar a escola, mas nunca mais encontrei o lobo. Na árvore oca entre minha casa e a Padaria da Vovó não era mais o lobo quem me esperava e sim um belo humano, o dono de toda a minha vida.


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Notas finais do capítulo

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