Destino escrita por Eve


Capítulo 26
Capítulo Vinte e Seis




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XXVI

 

 

Mal tinha amanhecido quando Poseidon acordou. Aquilo já havia se tornado costume para ele. Todas as noites, dormia muito depois do sol se pôr, e todas as manhãs, acordava antes que ele nascesse. A insônia já quase não lhe era mais um incômodo, de tão habituado que estava a ela.

Atlântida tinha um ar diferente pela manhã. Naqueles momentos antes que o Astro-Rei despertasse, era tudo quieto e pacífico. Era possível ouvir o canto das primeiras aves e o ocasional movimento de pessoas no pátio do castelo. As ondas eram ritmadas e suaves, seu ruído como um plano de fundo reconfortante. A brisa gelada circulava pelo vale, agitando as árvores e despertando os sentidos. Aqueles sempre foram os momentos de que Poseidon mais gostara: Quando as pessoas, a natureza, e as construções pareciam ser como um só, unidas na espera do nascer do dia e compartilhando daquela mesma sensação reconfortante de que nada de ruim poderia acontecer. Quem conseguiria pensar em algum tipo de problema com o vento correndo pelos seus cabelos e os primeiros raios de sol despontando à Leste?

Poseidon conseguia. Por mais improvável que parecesse, o despojado Poseidon Valence, ali em um dos lugares que mais gostava, observando um de seus momentos preferidos do dia, ainda podia perder-se em seus pensamentos mais repudiados, questões aflitivas que já haviam passado a fazer parte de seu cotidiano. Uma delas repousava tranquilamente em sua cama, parecendo a própria imagem da paz. Ele havia dado as costas à Atena para poder observar o nascer do sol pela janela, mas sabia como ela estava: Dormindo tranquilamente, com as cobertas cuidadosamente ajeitadas por ele na altura da cintura, um braço repousando a seu lado e outro embaixo do travesseiro. Ela sempre dormia assim. E ele sabia disso porque sempre a observava dormindo, prolongando seus próprios momentos de insônia, assim como sempre a observava quando acordava. A manhã a deixava pálida e inocente, quando ela ainda jazia ali, com sua longa camisola branca e os cabelos ora dourados, ora prateados, soltos e espalhados pelo travesseiro.

No fundo, repreendia-se por essas tolices. Um homem como ele devia dedicar seu tempo a coisas mais produtivas, que não incluíam fantasiar sobre uma mulher que não se importava com ele. Mesmo que essa mulher fosse sua esposa. Que diferença fazia, afinal? Era tudo um contrato, um título, como ela mesma adorava dizer. E não era como se ele não pudesse ter a mulher que desejasse, na hora que desejasse, do modo que desejasse. Mas de algum modo, ter Atena dessa maneira distante e fria ainda era melhor do que ter qualquer outra dama a seus pés, fazendo todas as suas vontades. Era um pensamento doentio, e Poseidon tinha plena ciência disso, mas não o impedia de sentir o que sentia. Isso era o que mais o preocupava. Desde o momento em que a conhecera, havia ficado claro que ele possuía sentimento intensos por Atena, mais intensos do que era saudável, mais intensos do que ela jamais teria. E ainda assim, havia levado aquilo adiante, como se o simples fato de estarem casados mudasse alguma coisa.

Mas não mudava. Não mudava, e a cada dia que se passava todo aquele sentimento oculto parecia virar angústia, e Poseidon sentia-se como se fosse capaz de fazer qualquer coisa, abrir mão de qualquer coisa, para que ela ao menos percebesse. Para que ela ao menos soubesse que nada daquilo para ele era fingimento. Porque ele não diria. Não diria pois tinha medo da reação dela. Que se tornasse ainda mais distante, que passasse a olhá-lo com o mesmo desprezo que usara contra ele algumas vezes. Uma convivência tranquila era melhor do que o tormento da rejeição. E ele conseguiria lidar com isso. Conseguiria lidar com o fato de que ela estava bem ali ao seu lado, mas isso não fazia diferença porque Atena preferiria estar em qualquer outro lugar. Claro que conseguiria.

Talvez se repetisse isso para si mesmo muitas vezes, o pensamento se tornasse verdade.

...

 

O castelo começava a adquirir vida conforme a manhã ia chegando. Algumas alas já começavam a limpeza, a cozinha estava em plena atividade e servos circulavam pelas áreas de acesso com frequência. Após a seleção dos criados, assim que Atena começara a se sentir melhor, havia começado uma verdadeira renovação de Atlântida. Cômodo por cômodo, os servos sob a supervisão de Atena desocuparam, limparam e redecoraram quartos, salas e salões. O primeiro andar do castelo já estava absolutamente habitável e havia previsões de que o segundo seria concluído naquele mesmo dia. Ela ainda o ajudava com as questões do feudo, o que mantinha Poseidon livre de trabalhos acumulados, então ele estava praticamente sem nada de importante para fazer. Vagou pelas escadas, sem querer visitar seu escritório por hoje, e quando lhe pareceu o momento propício, desceu até a sala de refeições para o desjejum.

Começou a servir-se lentamente, prolongando cada ato o máximo possível. Seus pensamentos estavam muito distantes para que ele pudesse fazer qualquer coisa com agilidade. Sentou-se no seu lugar de costume, ao lado da cabeceira. Desde aquele primeiro dia, havia se estabelecido uma convenção estranha e silenciosa que determinou seus lugares à mesa: Atena sempre se sentava na cabeceira, enquanto Poseidon se sentava à sua direita. Não se incomodava com isso. Era apenas mais uma das coisas estranhas entre eles dois.

Atena apareceu pouco depois de ele começar a comer.

— Bom-dia.

— Bom-dia.

Ela sentou-se e também se serviu.

— Vai fazer algo de importante hoje? - Ele perguntou, arriscando uma conversa trivial.

— Estava planejando começar a reforma do terceiro andar. Logo teremos de fazer um baile e o castelo já deve estar pronto para receber convidados até lá.

Ele assentiu, não tendo resposta para o comentário.

— E você?

Poseidon deu de ombros.

— Nada de extrema necessidade. Não tenho muito que fazer no escritório, acho que visitarei a cidade hoje.

Ela ergueu as sobrancelhas. Poseidon já havia percebido que ela fazia muito isso. Sempre mexia as sobrancelhas quando falava, e mesmo quando não dizia nada, um arquear de sobrancelhas entregava o que ela estava pensando. Juntamente com seus olhos extremamente expressivos, Atena sabia fazer notar seu pensamento sem precisar proferi-lo em voz alta. Algo em seu rosto dizia que ela desejava falar algo, mas permaneceu calada. Ele já ia perguntar o que a incomodava quando um dos lacaios entrou e disse:

— Com licença, meus senhores. Há um cavaleiro às portas do castelo, e ele deseja uma audiência.

Poseidon franziu as sobrancelhas.

— Não fui informado de nenhum cavaleiro a caminho de Atlântida.

— Eu disse isso a ele, meu senhor, mas ele não escutou. Solicitou uma audiência com urgência e não tive coragem de contrariá-lo, pois parecia bastante ameaçador. Chamou os senhores pelos nomes, e além de tudo não é inglês.

Atena baixou o copo de vinho aquecido com um estrondo.

— Não é inglês? O que um estrangeiro faz em Atlântida?

— Ele não me disse, senhora. Mas pelo sotaque, diria que é da Espanha... Ou talvez da Itália.

Poseidon observou que Atena arregalou os olhos ao receber essa informação, como se de repente algo a ocorresse. Ela levantou-se rapidamente, ajeitou o vestido e disse ao servo:

— Nós o receberemos no pequeno salão, Richard.

O criado anuiu, e rapidamente retirou-se.

— Como assim o receberemos? - Poseidon perguntou, levantando-se e seguindo Atena pelos corredores. - Atena, não vou abrir as portas de minha casa a um estranho.

Ela não respondeu, apenas continuou andando.

— Atena, eu estou falando com você! - Gritou quando ela se distanciou ainda mais. Mas foi como se não houvesse dito nada, pois ela continuou andando e logo os dois encontravam-se no pequeno salão. O visitante estava parado no meio do aposento, analisando com olhos insolentes cada canto do lugar. Ele era tão alto quanto Poseidon, mas mais magro. Era visível que era um cavaleiro apenas por sua postura. Não estava de armadura, mas era acompanhado de uma espada embainhada. O jovem franzino a seu lado devia ser seu escudeiro. Atena parou a uma boa distância dele e sua expressão era a de quem via uma aparição vinda do além. Poseidon postou-se a seu lado, mas ela não pareceu notar. Ele presumiu que o tal cavaleiro desconhecido viesse até ele, mas na verdade, ele deu três passos largos e ajoelhou-se aos pés de Atena.

— Minha senhora. - O sotaque dele era definitivamente italiano. Observando-o de perto, concluiu que ele devia ter por volta de 20 anos, embora os cabelos castanhos encaracolados que emolduravam-lhe a face e a expressão insolente de seu olhar o fizessem parecer como o povo das fadas, sem idade definida. Ele podia ser mais velho que Poseidon ou mais novo que Atena e ele não saberia dizer.

Atena ainda não havia respondido ao cumprimento do cavaleiro, que levantou a cabeça, parecendo confuso.

— Não se lembra de mim?

Poseidon imediatamente decidiu que não gostava daquele homem. O olhar que ele dirigia a Atena era intenso demais para que fosse apenas respeito. Havia algo por trás daquele até então desconhecido.

— U-Ulisses? - Atena gaguejou, e imediatamente um sorriso faiscou nos lábios do cavaleiro ainda ajoelhado. - Oh, meu deus, não posso acreditar! Quando voltou para a Inglaterra?

Ulisses se levantou e falou:

— Cheguei ontem, milady. Vim vê-la imediatamente.

Antes que Poseidon pudesse sequer perguntar como os dois se conheciam, Atena se jogou nos braços de Ulisses. Ela o abraçou fortemente, e o cavaleiro a girou no ar. Os dois sorriam quando ele a pôs no chão.

— Eu senti tanto sua falta! Quase não posso acreditar que está aqui! - Ela falou. Poseidon imediatamente sentiu-se um forasteiro, parado ali no salão do próprio castelo. A evidente intimidade entre Atena e esse tal Ulisses fazia com que ele sentisse como se pudesse socar o visitante. Um ciúme corrosivo começava a se instalar em seu interior, e ver Atena abraçada àquele homem não ajudava muito. Tossiu não tão discretamente para chamar a atenção dos dois. Só então Atena pareceu lembrar que ele sequer estava na sala. Afastou-se lentamente de Ulisses, mas continuou segurando sua mão.

— Oh, me desculpe. - Ulisses falou com seu pesado sotaque. - O senhor deve ser Lorde Valence, não? Eu sou Sir Ulisses Visconti. Vim até aqui oferecer meus serviços de cavaleiro, em nome de minha senhora Atena.

"Minha senhora Atena"? Quem aquele insolente pensava que era para chamar Atena de "minha"? Ele estava prestes a recusar sua proposta e manda-lo embora quando Atena perguntou:

— Vai ficar aqui conosco?

— Sim, se me permitirem.

— Mas é claro que sim! Vamos, entre. Chamarei os servos para levarem suas coisas e você escolherá um aposento ainda hoje. - Ela começou a guiá-lo para dentro do castelo, mas Poseidon a impediu. Indicou com um gesto para que Ulisses seguisse em frente e segurou Atena onde estava.

— Pode me dizer quem é este homem?

Ela demorou um segundo para responder, pois sempre que tentava falar algo um sorriso escapava de seus lábios. Seu rosto estava corado e seus olhos brilhavam. Poseidon nunca antes a havia visto tão feliz, e o fato de que outro homem era a causa daquela felicidade fazia com que ele se sentisse quebrado por dentro, ainda que não despido de raiva.

— Ulisses é meu amigo desde que eu tinha doze anos. O conheci quando morava com minha tia e mais tarde ele ofereceu seus serviços à corte para me fazer companhia enquanto estudava. Mas ele é italiano, e teve de voltar à sua terra natal há dois anos. Eu teria sido sua noiva se... - E então ela calou-se, percebendo que falara demais. - Não importa. Se me der licença, tenho de ir providenciar tudo para sua estadia.

Teve vontade de dizer que não. Não a dava licença para seguir aquele homem, para instalá-lo na casa deles e inseri-lo em suas vidas. Mas nada falou, e ela saiu apressada, gritando para que Ulisses a esperasse. Poseidon estava tão chocado pela torrente de informações que não conseguiu segui-la. Um amigo de infância, aparecido do nada, iria morar no castelo a partir de agora? Ele o expulsaria imediatamente se não soubesse que Atena o odiaria para sempre se fizesse isso. E, por Deus, ela seria noiva dele caso não houvesse partido para a Itália!

Mas de repente, foi como se a luz divina houvesse sido derramada sobre seus pensamentos. A presença de alguém tão próximo de Atena, ali como um concorrente, o fizera perceber que não poderia continuar com aquela farsa. A partir daquele momento, lutaria pelos seus sentimentos. Faria com que ela notasse que Poseidon estava ali ao seu lado por escolha, não porque fora ordenado por seu pai. Faria com que ela o amasse. Ou pelo menos tentaria.


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Notas finais do capítulo

Adoro introduzir novos personagens à história, e acho que vocês já perceberam isso :) Enfim, notei um aumento no número de leitores desde o último capítulo, então queria dar boas-vindas a todos que são novos aqui.
Ah, e o que acharam do capítulo?



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