À Francesa escrita por Nana San


Capítulo 14
Capítulo 8




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O sol estava quente, cada vez mais cruel. Esquentava desde as maçãs do rosto até os calcanhares dentro das meias. Usar tênis no verão não é uma atitude muito esperta, mas ela achava os pés particularmente feios.

Na verdade, tudo estava feio, até o sol tinha virado o sorriso para que ela não visse - mesmo que sorrisse para todos os lados. Ela estava acanhada, triste, sentindo-se derrotada. Que fazer agora? Era só um pedaço de papel, um número e uma dívida. A prova, a nota e o que ela devia para o próximo semestre.

Tudo a contrariava naquele dia. Igor estava cada vez mais bobo e a mulher da cantina mais cabeluda - ou será que era ela a intolerante? O dia estava quente demais, ela suava demais e falava de menos. Não devia explicações a ninguém sobre seu humor e também não teria paciência para ouvir alguém calculando suas taxas hormonais. 

- Sorte que é... Segunda-feira. - Suspirou arrependida.

Logo agora? Logo agora que podia ver Eduardo não tinha a menor vontade de caminhar todo o percurso até o asilo, mas iria. A qualquer custo e de qualquer maneira chegaria lá para visitar seu tímido... Tímido o quê? Paciente? Não. Amigo? Será mesmo que eles eram amigos? 

Os amigos dividem experiências, contam as angústias, dão conselhos e brincam. Nesse caso, ela era ainda a única a se pronunciar.

- De 'vovô postiço' que não vou chamá-lo. - Disse recolhendo os cadernos, a prova e a bolsa, retornando para dentro do prédio. 

Encheu a garrafinha de água e tomou duas belas goladas. O líquido desceu refrescante pela garganta, leve. Pode parecer bobo mas, as vezes, a água é o melhor dos remédios. Voltou para a sala e terminou de assistir as aulas.

Almoçou e seguiu para o metrô com a garrafa cheia.

Assim que desceu as escadas viu uma pequena aglomeração em volta da plataforma. Mulheres com os dedos apontando rostos de homens que gritavam e inflavam os peitos. Deu para ouvir algo parecido com 'bunda' e 'tarado'. Não foi difícil de adivinhar...

Lívia não tinha tempo, mas também não queria ficar um minuto ouvindo aquela confusão, enfiou-se no meio da roda e interrompeu o falatório.

- Esperem! O que está acontecendo aqui? - Gritou.

- Esse velho gagá passou a mão em mim! - Disse uma garota de mini saia.

Apontava para um senhor que aparentava uns cinquenta anos. Estava vermelho como um pimentão, sendo abanado por um rapaz engravatado que tinha alguns traços em comum. Talvez filho, neto ou sobrinho.

A suposta bulinada vestia roupas que não caberiam numa menina de 10 anos, quanto mais cobrir completamente sua barriga e bunda. Lívia deduziu que o vagão estava lotado e numa das paradas aconteceu o 'acidente'. Como poderia ter sido de verdade as afirmações da garota.

- Ela estava praticamente se esfregando em mim! - justificou o senhor.

No estado em que ela estava era difícil afirmar se ele era um velho tarado. De todas as possíveis suposições, na pior das hipóteses, a mais provável era que a menina estava tentando fazer alguma graça para o rapaz, não recebeu atenção e armou toda aquela bagunça por raiva.

- Olha, pessoal, vamos pedir desculpas? Acho que ninguém aqui tem tempo - e gosta - de ficar batendo boca no metrô. Mulheres nos vagões especiais por favor...

- Você acha que é quem, minha filha? Se intromete na conversa dos outros e ainda quer mandar? Isso não vai ficar assim não! 

O problema não foi resolvido até um guarda chegar e convidar a garota a se retirar. É claro que ela esperneou e deu mais meia dúzia de gritos, mas no final das contas a aglomeração se desfez e todos entraram no vagão aos cochichos.

- O senhor aceita um pouco d'água? - Ofereceu.

- Ah, eu ficaria muito grato. - Respondeu o rapaz tomando a iniciativa pelo senhor.

Foram trocando algumas palavras pelo caminho, mas nada que possibilitasse o reencontro dos dois. 

- Bem, eu vou descer aqui. - Anunciou Lívia colocando a alça da bolsa nos ombros.

O trem parou e no instante em que ela se levantou sentiu dedos roçarem em sua coxa.

- Mas já? - Perguntou o garoto sorrindo maudosamente. 

Não pensou duas vezes. Virou uma bofetada no rosto que o fez virar o pescoço. 

- Abusado! - exclamou - Não tem vergonha?

Não deu tempo de falar mais nada. As portas iam se fechar se não saísse. Chegou no asilo ofegante, sem água, estressada e triste. Bateu na porta duas vezes e foi recebida por Eduardo que segurava um canivete na mão livre.

- Não queria incomodar. - Disse assustada.

- Não vai. - Disse ele segurando-a pela mão, puxando-a para dentro do quarto.

Trancou a porta e guardou o canivete no bolso. Bateu o pó das mãos e sentou na cama.

- Quer beber alguma coisa? Tem fome? - Perguntou cordialmente.

- Aceito um copo d'água.

Ele pegou uma jarra de vidro de dentro do frigobar e pôs a mesinha, ao lado da poltrona. 

- Você me parece tensa. - Disse ele quebrando o silêncio.

- Impressão sua. - Mentiu, servindo-se.

- É mesmo? - insistiu Eduardo, desconfiado.

Ele a olhava de todos os angulos, mexendo a cabeça.

- O que está esculpindo agora? 

Sua tentativa de desviar do assunto não foi bem sucedida. Eduardo ignorou sua pergunta e permaneceu calado, observando-a.

- O que foi?!

- Não minta para mim, Lívia. 

A frase era bem séria, mas ele não parecia chateado. Esperava ouvir o motivo de sua má cara. 

- Quer mesmo saber? Não é do seu interesse... - Suspirou.

- Pode começar. - Disse empurrando-a para as costas da poltrona.

- Fui mal numa prova, perdi um anel que gosto muito e um cara foi abusado comigo hoje. Pronto, falei.

- Que tipo de abuso? - Perguntou levantando uma sobrancelha.

- Passou os dedos na minha perna. 

- Onde, Lívia?

Agora ele estava muito mais sério.

- Aqui, mais ou menos. - Disse ela apontando para o lugar perto de onde realmente foi - Mas, Eduardo, esqueça isso. Minha raiva já vai passar. Tem algo para me contar?

- Você acha que eu tenho? - Respondeu erguendo os braços para o teto. Jogou-se no colchão e começou a enrolar os dedos nos cabelos.

- Eduardo? - chamou - Eduardo? Estou falando com você! Ficamos uma semana sem nos falar, não é possível.

- Minha vida não é tão emocionante como a sua. 

- O quê? Foi você que pediu para eu te contar! Vai ficar emburrado sem motivo? Está pior que meu irmãozinho! Não vai adiantar ficar bravo. Isso acontece todos os dias, o mundo lá fora é assim, e você estaria muito mais atualizado se vivesse do lado de fora do quarto.

As palavras saíram sozinhas, desenrolando-se pela língua sem freio. Eduardo ficou paralisado, ela mal havia entrado em sua intimidade e já ultrapassava os limites do bom senso.

- E o que você quer que eu faça? 

- Que me acompanhe na festa junina do asilo. 


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