Stunde Null escrita por Luís Silva


Capítulo 1
Stunde Null


Notas iniciais do capítulo

Esta história é contada apenas neste capítulo, pertencendo ao gênero "One Shot".



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Stunde Null


A História Mundial não é o solo em que germina a felicidade.

Períodos de felicidade são, na História Mundial, páginas em branco.

George Wilhelm Friedrich Hegel



Cidade de cinzas. De pedaços. Um macabro e sangrento quebra-cabeça. A Alemanha tinha ruído, se despedaçado em sua mediocridade exposta para todo o Mundo ver após a segunda Grande Guerra. O céu era sempre acinzentado. As nuvens, desnutridas e desoladas. No alto, um cenário bucólico. Na terra, um cenário defeituoso. Por mais que se andasse por inúmeras ruelas, não se conseguia encontrar mais vida na nação derrotada. Por entre os enormes montes de entulhos e restos de sonhos, um garoto andava com um cão em seus braços. Já era noite e não havia luz. A lua pendurada em cima de suas cabeças pouco se importava com aquele monte de desespero. Ela tinha se cansado. Por mais que irradiasse no céu em sua forma mais linda e completa, não haveria luz capaz de transmitir vida para o mar angustiante.


– Lammert... – Falou Sofie há alguns metros atrás do garoto que carregava seu cachorro, caminhando lentamente, pendulando para lá e para cá. Estaria acompanhando-o se não estivesse interceptada por uma única mão traçada em uma luva de lã grossa, pertencente ao terceiro e último humano vivo naquele lugar, um garoto de sardas em brasa, alto e magrelo.


O Ortwin solitário ajoelhou-se, deitou o cão acinzentado no chão de fuligem e, exausto, levou os cotovelos ao terreno imundo. Uma lágrima rolou preguiçosamente até o seu queixo, perdendo-se nos pêlos do animal quando se descolou de seu genitor, que apressadamente confeccionava novas esferas límpidas e brilhantes. Maldita ironia, aquela. O meio que transmitia tristeza trazia à tona a matéria mais pura existente nos corpos humanos que ali ainda sobreviviam. O dono do cachorro, ainda em lágrimas prateadas ergueu a cabeça e sorriu, apertando a terra de destruição em seu punho direito, fazendo-a pulverizar em meio aos dedos.


– É melhor aproveitarem a Guerra! – Berrou, entorpecendo em seu corpo as mais variadas sensações. Medo, revolta, dor, nostalgia, felicidade, dor, dor. Dor. Este último sentimento, se é que podia ser classificado sentimento, efervescia potencialmente sob os outros. Seus companheiros, afastados, viram suas mais variadas partes do corpo entrar em choque, arrepiando-as. – A paz... – Sua voz já não tinha toda a potência de antes, já era tragada pelo sentimento da Stunde Null. - Será terrível.


Abraçou o seu pobre cão, explodindo em choro. Que chorasse, chorasse muito. Que todos os alemães parassem um minuto e chorassem. Talvez fosse um mar de lágrimas a solução de todo aquele caos.


[ ~ ]

Como tudo começou.

Stunde Null, a Hora Zero.

Europa, Alemanha, Adorf.

Primeiro de Maio de 1945


Alguns diziam que se olhassem a Terra do espaço, ela estaria negra, como uma laranja apodrecendo em ritmo acelerado. O planeta azul? Boato. O mundo estava sem cor. As pessoas não queriam ver cores. Principalmente os alemães. Ninguém queria alimentar os olhos. Todos estavam famintos, exaustos e é claro, com seus egos feridos, destroçados. A Segunda Grande Guerra ainda não tinha acabado, mas estava tão perto que nem mesmo os mais astutos ousavam cogitar uma data. Na nação alemã, especificamente, ela tinha ruído no dia 30 de Abril, quando o Führer se matara com um tiro no meio da cabeça. Talvez, até mesmo seus seguidores e adeptos tenham comemorado a morte do líder nazista. A guerra ainda se estendeu até o dia 8 de Maio, mas sem Hitler e com seus exércitos dizimados, só restou à Alemanha render-se.

A cidade de Adorf fedia pólvora. Seus bueiros, inundados de fuligem e destroços, faziam das ruas sujas e precárias, sem mencionar as poças de sangue por todo lado. As poucas casas intactas, ou estruturalmente capazes de abrigar algum tipo de vida, ficavam apinhadas de gente, mas não eram famílias. Eram lascas de família. Uma mãe solitária, sem marido e filhos. Um filho mais novo, único sobrevivente de oito irmãos. Pequenos restos, pequenos pedaços. Tudo se resumia à deficiência. Ou quase tudo.

Alguns ousaram dizer que aquilo só podia ser milagre. Os que já tinham perdido a fé invejavam aqueles abençoados. O bairro Wandsbek. Era um bairro de três ruas, lado a lado, cada fileira composta por onze casebres. A rua da direita foi demolida em três minutos. A rua da esquerda, em três segundos. A do meio? Intacta. As onze famílias que ali viviam, correram para seus abrigos subterrâneos, podendo ouvir tudo. Aquela espera era agonizante e até o barulho da demolição e explosões cessarem, tinha feito daquelas pessoas, mortas. Ninguém acreditava que dali sairia.

Com um terço entrelaçado na mão, Frau* Ortwin rezava baixinho, apertando a mão de seu filho com força. Não passava para o garoto sentimentos de coragem ou tranqüilizantes. Tinha tanto ou mais medo que o menino que, espremido com ela atrás de caixas de madeira fria, via os olhos da mãe oscilarem na escuridão. Ela rezava pela vida de sua nação. A cada explosão, ela orava ainda mais rapidamente. Suas preces nunca parariam se um toque-toque de sapatos não rugisse pelo assoalho da sala. Engoliu um “Mas livrai-nos do mau” e trincou a mão do pobre garoto com um apertão trêmulo.


[Frau: Dona, Senhora. Título dado às mulheres casadas ou de idade.]


– Где крысы? – “Onde estão esses ratos?!”, Ralhou uma voz estúpida, que calou os batimentos dos alemães escondidos no porão oculto. Bateram suas botas pela casa, derrubando talvez a mesa de jantar que tremeu o chão do lugar.

– Должно быть не бежал, эти дома не имеют подземных убежищах. – Falou uma segunda voz também impaciente, batendo o cano da possível arma pelas tábuas. Frau Ortwin e seu filho não tinham entendido, mas o russo havia acabado de dizer que a casa não parecia ter o abrigo onde eles estavam escondidos. A mulher, fatigada, afrouxou seus olhos sempre sofridos e deixou que lágrimas caíssem sobre o nariz gelado do filho.


Os dois soldados ainda vagaram pela casa, chutando paredes e tateando o chão. Era noite e estava muito frio. Se aquelas pessoas decidissem ficar ali por muitos dias, a mulher e o garoto morreriam de fome, ou mesmo de frio, que alastrava pelo corpo dos ocupantes do abrigo.


– Мы Outta сюда, мальчик. – Disse um deles. E tudo se silenciou. Tinham ido embora. Frau Ortwin ainda chorou por vinte minutos, tempo aquele de total silêncio entre os dois. Tempo esse que eles ainda não se sentiam plenamente vivos. [i]Sobreviventes[/i].


– Mama. - Assobiou o menino no pé da orelha da mulher, numa voz quase grunhida.

– Hm. – Sonorizou ela, no sentido literal da palavra.

– Conseguimos. – Arfou Lammert, o filho.


Ela, nada falou. Estava apavorada demais. Era ousadia demais cantar vitória na nação apodrecida. Ousadia? Não. Ilusão. De qualquer maneira, Lammert era só uma criança e ela era só a mulher de um homem talvez, àquela altura, espatifado como pedaços de carne dada aos cães. Seu marido, ou ex-marido, pois ele não dormia na casa há dias, nem compartilhavam do amor de sempre, estava pela rua. Pela guerra. Um bêbado na Alemanha invadida pelos russos.


Rezou.

Era impossível não tricotar mais alguns cem terços pela alma daquele patife.

[ ~ ]

Beber, cair e levantar. E correr. Muito. Quando seus pés abarrotados de neve gritassem que tinham chegado à velocidade máxima, era hora de entornar mais um generoso gole de rum da garrafa pesada e companheira de guerra daquele homem e bater recordes pessoais. A única medalha que ele poderia levar daquela maratona seria gabar-se anos depois, numa tarde tediosa de outono. Ele corria para onde apenas o barulho de seus pés já não fosse escutado. O chão era pisado quase que falsamente, pois a velocidade que ele estava dava a idéia de estar flutuando, e quando a rua se transformava em uma corrida de obstáculos, ele vacilava, caindo facilmente.

Na sua terceira queda, quando ele não conseguiu salvar sua garrafa de rum, quebrou dois dentes com a colisão no asfalto gelado. Devia ter cortado a gengiva, pois logo o gosto forte de seu néctar foi acoplado ao metálico e tempestuoso do sangue.


– Merda! – Cuspiu as palavras vestidas de sangue.


A rua estava escura e silenciosa. Quando ele fixou-se por alguns segundos num mesmo ponto – ato esse não tão preciso, pois ziguezagueava para lá e para cá, debilmente – pôde notar que as portas estavam abertas, pertences caídos pela rua e, dentro das casas... Pessoas. Sorriu aliviadamente, surgindo na porta da casa em sua frente.


– Saudações, companheiro! – Tossiu ele, passando as costas da mão na boca vermelha. – Tem uma garrafa de- E parou, atordoado. O homem com quem falava, figura que ele tinha visto pelo canto da porta, tinha um furo arredondado e grosseiro no meio da testa, dando a vista da parede pelo buraco macabro. Estava morto, com um tiro na cabeça. Seus reflexos alterados, ainda que estivessem fadados ao erro, não eram suicidas. Seu ouvido zumbia fino por conseqüência dos tiros incessantes, mas lhe avisou que alguém chegava desesperadamente. Ele se jogou ao chão, levando o defunto consigo.


Miséria, o homem ainda estava quente! Ou simbolicamente quente. Haviam alemães quentes? Bem, para um bêbado, uma pedra de gelo poderia ser comparada a maçãs que estava tudo bem. Para um bêbado em risco de morte, uma pedra de gelo era quase a mesma coisa que uma fagulha de uma vistosa fogueira. O corpo do morto “abraçou” Herr* Ortwin, pingando sangue em sua testa enrugada de nojo. Tentou parar sua respiração, mas seus pulmões asfixiados não podiam lhe ajudar agora. Estavam retomando o ar que lhes faltavam. Alguém entrou no casebre, fungando de uma maneira estranha, barulhenta e persistente demais. Herr Ortwin, temendo o pior, ergueu um pouquinho as pálpebras, vendo um animal acuado e com um ferimento horrível nas costas. Ele tremia olhando para fora, visivelmente apavorado. Johann Ortwin jogou o cadáver para o lado, fazendo o sinal da cruz ao lembrar que o sujeito já tinha morrido. O animal se voltou para ele, com os dois olhos esbugalhados brilhando na escuridão da casinha.


[Herr= Senhor; Seu. Título usado para homens casados ou de idade.]


– Calminha. – O alemão falou, contendo a respiração apavorada do animal. Olhou por algum tempo e pôde reconhecer: um cão. Seus pêlos, arrepiados de medo, eram foscos, num tom de cinza suave. Duas grandes orelhas caíam em frente à sua cara musculosa. – Deve ser difícil para você, não? – Sussurrou Johann, arrastando-se para frente, com todo o cuidado do mundo – ou que sua embriaguez permitia – para não fazer o animal sair pelas ruas latindo de pavor. – A briga é dos humanos e suas costas acabaram sendo castigadas... – Já estava defronte ao animal, que ainda não tinha parado de tremer e sangrar. – Eu sinto muito, amigo.


O cão, recheado de dor, não podia correr dali como fizera nas últimas horas. Correndo pelas ruas, esquivando de tiros, gritos, corpos dos humanos que antes ele gostava de fazer companhia. Por que brigavam? Não havia comida para todos? Não, não era aquilo. Seu dono, agora mais um corpo ensangüentado em alguma sarjeta imunda, mesmo pobre e desabrigado, nunca passara fome pelas ruas da cidade gelada. Então devia ser território! Era óbvio que os homens estavam se matando por que alguns intrusos estavam ignorando as demarcações humanas, ignorando que, o território de um indivíduo, é o território de um indivíduo. Mas, em todos os anos de sua vida, transitara por lugares diferentes e a imensidão alemã o deixava abismado. Então por qual razão os humanos brigavam, afinal? Por que naquela noite todos haviam resolvido usar canos de metal assassinos, que ainda rompiam seus tímpanos a cada explosão? Por que não podiam dançar e jogar pedaços de carne para ele, e então, na hora de dormir, apertar seu corpo grandão contra o corpo dos humanos, sempre amarrados a panos e vestes que protegiam a pele fina e frágil de seu amo e seus amigos? Por que doía respirar?

O homem em sua frente, com a barba a fazer e fedendo a algum cheiro forte e desagradável, colocou seus dedos frios sobre sua cabeça e sorriu, assim como seu dono fazia sempre que eles podiam. Então, quando ele acarinhava-o, ele abanava o rabo. Mas só pediu a seu corpo para realizar o gesto, porque naquele instante, suas patas desprendiam-se do chão. Seus olhos embaçavam e sua língua que transpirava aflita, pendeu para o lado, sendo interceptada por um braço que o envolveu.

Pelo menos, agora poderia descansar.


[ ~ ]


Já devia ser a sexta hora seguida que Lammert Ortwin se perguntava quando ele sairia do esconderijo, com sua mãe que continuava a mover os lábios, com as pestanas cerradas e feições sérias. Às vezes, sua barriga roncava rebeldemente, cansada de fingir-se de morta no meio das caixas de madeira.


– Frau Ortwin? – Chamou alguém da superfície, fazendo a matriarca arregalar os olhos para o jovem filho. – Lammert? – Perguntou a mesma voz, andando pelo teto, que para o visitante era chão. Agora começava a andar mais rápido, talvez pensando que eles estavam mortos. – Frau Ortwin, sou eu, Emeric.


Lammert livrou-se dos braços da mãe e voou para as escadas, abrindo a porta improvisada do abrigo. A estrutura do chão era feita de madeira, e a abertura para o abrigo subterrâneo se encaixava perfeitamente na formação do assoalho. Aquele tipo de esconderijo tinha sido feito em todas as casas da rua, depois de Johann Ortwin, o bêbado que agora se escondia numa casa longe dali, muito dizer que todos precisavam se esconder das bombas que cairiam sobre suas cabeças. O pessimismo do homem, adjetivo atribuído categoricamente por todos no começo, fez o matrimônio com a mulher que agora subia pelas escadas atrás de seu filho, finalmente cair em terra. Quando Lammert respirou o “ar de verdade” que invadia a casinha pela fresta da porta, memórias voaram em frente a seus olhos de medo, que também focavam um velho com um bigode de morsa que o puxava, claramente aliviado ao vê-lo vivo.


– Graças ao bom Deus. – Disse o Herr Emeric Ivo, abraçando-o. – Frau Ortwin, graças. – Arfou o velho, dando tapinhas calorosos nas costas da mulher.

– Como está lá fora, Herr Ivo? – Perguntou Lammert, passando os olhos pela casinha em que crescera. A mesa que ficava no cômodo cozinha/sala estava caída no chão, com o vasinho de uma florzinha tímida tombado perto da pia da cozinha, com suas pétalas despedaçadas em sua volta.

– Lá fora está horrível. Todas as famílias estão escondidas em suas casas, reviradas, futricadas. Que caia um raio em minha cabeça, mas Johann salvou a vida dessa gente. – Confessou, coçando o topo da cabeça pelada. Lammert e Fritzi se entreolharam por alguns segundos, mas a mãe se virou rapidamente para o lado, deletando a chance do filho pensar que ela sentia pavor de imaginar onde estaria seu marido, ou ex-marido, não sabia bem.

– O Führer já fez algum pronunciamento? Deu alguma solução? – Perguntou a mãe nazista, que contava sempre com seu líder supremo para velar por suas frágeis vidas.


Três alemães desolados. Três segundos de pura perplexidade. Três palavras assassinas:


– O Führer caiu.


Hitler tinha se matado dois dias atrás e agora, se a cidadezinha de Adorf já estava ciente da notícia, o mundo também já sabia.


– “Aproveitem a guerra... – Vociferou Emeric Ivo, citando a frase de um sujeito que todos os moradores daquela rua conheciam. Johann Ortwin. – A paz será terrível.”


As memórias que Lammert tivera quando emergira do esconderijo? Estavam num tempo que eles consideravam horrível. Mas dizem que memórias são atemporais. Portanto, por que não também as palavras?


Três meses atrás


A família Ortwin, aos olhos dos vizinhos, era uma família perfeita e exemplo para o bairro Wandsbek inteiro. De todas as três ruas, eles transpareciam perfeição logo na fachada da casa. Como era de praxe na Alemanha Hitlerista, as casas eram iguais e sem cor e tinham um único significado: abrigar pessoas. Não havia o quarto da mamãe e do papai, muito menos o jardim na frente da casa, em sinal de boas vindas. Porém, no peito de Adorf, no bairro esquecido onde só haviam três ruas alinhadas e uma estrada que levava ao resto da civilização, rugia uma casa azul da cor do céu. A porta era amarela brilhante, como o sol nas figuras dos livros de histórias que apareciam de séculos em séculos por ali. Imagine só. Sujeira e resquícios da guerra por toda a parte e uma casa pintada de azul cor de céu, com pequenos arbustos que delimitavam o caminho para entrar na moradia. Às vezes, por pura revolta, os vizinhos chutavam terra nas paredes, para trazer aquela família de volta à realidade. Então, pacientemente, Frau Ortwin pegava um balde com uma esponja áspera e ia limpar os ferimentos na pintura. Foi num desses dias de limpeza que Johann chegou animado da vendinha que tinha ali perto, com uma planta em mãos. Parou em frente à porta, balançando feito um pêndulo com as extremidades dos pés.


– O que é isso em suas mãos, Johann? – Perguntou a mulher agachada, que limpava os ferimentos de terra na sua casinha de paredes de céu.

– Ahn, isso? – Perguntou ele, apertando o enorme papel de aparência envelhecida com a mão. – Ordens do Führer. Vão construir abrigos subterrâneos nas casas que estão colaborando efetivamente com o Nazismo. Você sabe, doações, alistamento no exército, a Juventude Hitlerista... Sorrir para o Nazismo de bom grado. – O homem exasperou em intervalos, calculando quantos além de sua família receberiam o abono. – Graças, aqui na rua todos receberão os abrigos. Os Liutpald poderiam não receber, você sabe. – Disse ele, abrindo a porta e adentrando pela sala simplória, com um sofá rasgado e uma televisão robusta em sua frente, desligada como sempre.


O objeto luxuoso tinha sido comprado depois de anos de economia. Os Ortwin eram donos da lojinha no fim da primeira rua, onde se vendia pão aos que morriam de fome e cigarros aos que morriam de esperança. Com a chegada da Guerra, o negócio que já não era bom se tornou impossível, pois ninguém tinha dinheiro para comprar aquelas extravagâncias – se bem que os cigarros sempre eram procurados por homens e mulheres na surdina, e tragados com pressa, com vergonha. Até que um dia Johann Ortwin cansou de esperar por clientes que nunca chegavam e quando apareciam, só podiam lhe implorar por alimento, já que o dinheiro não existia por ali. Fechou o estabelecimento e entregou as chaves ao dono, um velho louco chamado Dirk, que tinha fornecido o lugar para nunca lhe faltar comida nem álcool. E aquela troca, que era o sistema de pagamento entre as duas partes, funcionava muito bem, obrigado.


– Os Liutpald devem muito a nossa família. Se não fossem nossas ajudas, aqueles ruivinhos já estariam mortos de fome. – Dizia Johann, analisando a obra dos abrigos. – O pai deles vai para a guerra e deixa os filhos com a mãe louca. Irresponsáveis...


Fritzi Ortwin apertou as mãos contra o peito e ficou em silêncio, pois gostava muito de Frau Liutpald. Mal sabiam os Ortwin que do lado de fora da casa, uma mão tinha se imobilizado na maçaneta, escutando a conversa deles. Uma outra pessoa, que seguia o paralisado Lammert Ortwin com sua mão direita envolta no objeto metálico, se virou e começou a andar apressado para o fim da rua larga.


– Menno! – Gritou Lammert, correndo atrás do menino. Ambos estavam bem vestidos, com roupas derivadas das militares, mas infantis. Uma faixa vermelha envolvia o colarinho e ia até o meio da barriga da veste branca um pouco suja de barro. A bermuda negra ia até o começo do joelho de ambos e não tinha tanta imponência quanto à parte de cima da vestimenta da Juventude Hitlerista. – Menno, ei! – Chamou Lammert, puxando-o pelo braço. Menno Liutpald olhou para o amigo com raiva, gotas pratas dançando dentre suas sardas de fogo. Era um garoto magro e ruivo, com orelhas pontudas e boca estreita. Gostava de dançar e cantar, mas ultimamente, com a ida de seu pai para a Guerra, preferia desenhar as mais variadas formas que Hitler deveria morrer. Desenhos esses que sempre se mantinham longe de olhos errados, ou seja, todos os olhos possíveis. – Menno, meu pai não sabe o que fala! – Lammert gritou. Era um típico ariano. Loiríssimo, magro e com um par de olhos azuis escuros. Seus cabelos eram bem cortados, aparado drasticamente pelos lados e um pouco mais volumoso no topo, com uma franja magrela que ia até o meio da testa.

– Seu pai nos ajuda e cospe em minha família. Tem pena de nós. – Disse Menno, enfurecido. – Mas por que ele não está na guerra, Lammert? Por que você não está sofrendo tanto quanto eu com o seu pai no meio do inferno? – Perguntou o menino, fazendo o pequeno Ortwin olhar para ele incrédulo.

– Queria que meu pai estivesse correndo risco de vida para... Que eu sentisse a dor que você sente? – Indagou, amortecido.

– Eu queria que seu pai olhasse para mim e para meus irmãos como alemães, Lammert. – Respondeu o ruivo de cabelos esfarrapados. – Mas ele só sabe olhar para nós com aquele olhar de caridade. Quando meu pai voltar, eu olharei para seu pai com os olhos de desprezo dele. Por que ELE NÃO VAI TER VIVIDO A GUERRA. – Já berrava o Liutpald, fechando os olhos. – Por que foi um maricas e preferiu brincar de casinha com a sua mãe!


O sangue de Lammert ferveu e seu braço foi o primeiro a agir sozinho. Apertou o punho e alvejou o ruivo com um murro certeiro no meio do queixo, fazendo-o tropeçar e cair na neve suja da rua lamacenta.


– Parem! – Gritou uma menina se colocando no meio dos dois, com trajes idênticos aos deles, mas na versão feminina. Tinha cabelos loiros bonitos e olhos tão azuis que os de Lammert pareciam réplicas fajutas quando se contrastavam. – Lammert, pare! – Pediu, abraçando o loiro que ainda tentava atacar o amigo caído no chão.

– SEU MALDITO! – Explodia o filho Ortwin, cheio de ódio. – Porco ingrato, hipócrita! ACHA QUE A ALEMANHA ESTÁ SENDO INJUSTA COM O SEU PAPAI? – Ironizou Lammert, fazendo uma voz débil. – Por isso desenha o Führer enforcado, o Führer queimado, o Führer decapitado! Nega o próprio sangue!


A menina que parava Lammert Ortwin se chamava Sofie Waldeburg, era filha única e seguia as normas nazistas e nunca dizia o que pensava de nada. Sua mãe lhe ensinara bem. Mulheres deviam cuidar da casa e da moral da família, ou limpar paredes de céu de vez em quando. Com os dois amigos, ela podia dizer que queria viajar pelo mundo, aprender a sapatear e então ser livre, mesmo que fosse por alguns minutos sapateando, ou por uma vida toda conhecendo lugares que não fossem lotados de neve e frio. Sofie se voltou para Menno, surpresa.


– Não pode fazer isso, Menno. – Disse ela, tão baixinho que somente eles ouviriam. O nazismo não podia ser desafiado daquele jeito, imagine! – Aonde estão esses desenhos?

– Guardados? – Ríspido, ele disse. – Escondidos, ocultados? – Falou abruptamente, tomando impulso para erguer-se.

– Não deviam existir. – Disse ela, dando uma mão para alçá-lo na subida.

– Não se meta na minha vida. – Crispou os lábios e bateu na roupa nazista, já de pé, desejando sair dali, mas não sem antes olhar para o herói Ortwin. – O nazismo é uma chacina. Uma dizimação. E vocês aplaudem. – Ele dizia cada frase às tragadas, cada uma numa respiração só. – E vocês tatuam suásticas em seus peitos, mas se tivessem seus pais na Guerra, sentiriam o que eu sinto.


Mas o que aquele jovem alemão de catorze anos queria era “simples”: Retirar o nazismo da veia alemã. Que o nome Hitler fosse apenas memória e a guerra somente um tempo a ser esquecido. Menno era como uma flor num jardim imensamente similar. No meio de tantas flores iguais, os pequenos detalhes como uma falha numa pétala ou uma coloração mais contida se tornavam imperceptíveis. Ele não sabia, mas tinha sorte em estar num jardim tão imensamente igual. Muita sorte.


[ ~ ]


A vida alemã acabou. Exceto Herr Ivo, ninguém saiu de casa por cinco dias seguidos. Lammert passava a maior parte do tempo olhando para a porta-assoalho, esperando por seu Papa. Às vezes, naquelas horas do dia onde seu coração palpita mais forte e sua alma orquestra uma diversidade enlouquecida de pensamentos enterrados, ele ia até a alça que servia para abrir a passagem sutil, mas Mama o abraçava pelas costas e lhe dava um beijo na orelha. Então ele chorava, impotente. Então ele voltava, descrente. Dormia tranqüilo, como um simples e alemão menino. Os sonos estavam imunes ao desespero da Stunde Null, também pudera. As circunstâncias que levavam alguém ao sono era a total e absoluta fatiga.


Foi numa manhã que tudo acabou. Ou começou, dependendo do ângulo tomado. A angústia da espera, acabada. A hora Zero alemã, iniciada. As cortinas daquele teatro melancólico e de mau gosto foram introduzidas quando, com um movimento brusco, a abertura de madeira que levava à toca bem-bolada alemã engoliu os dois com a luz matinal não tão forte, mas os olhos já tinham se acostumado ao breu empoeirado do esconderijo. Homens fardados desceram marchando, trazendo com o barulho de suas botas, o pânico de não ter para onde correr.

O plano de Hitler não tinha uma via de escape. Um plano B, por assim dizer. Você se escondia e rezava para não te acharem. Engraçado como aquilo era uma imitação pífia e grotesco do esconde-esconde que Lammert fazia nas ruas de Adorf nas sextas-feiras pela noite. Se assumirmos esse formato, o pegador agarrou o braço da mulher que estava mais branca e magra do que o habitual e a jogou contra caixas de madeira, que a receberam com um baque quebradiço. O filho foi pego pelos cabelos louros e jogado para um segundo soldado, que o abraçou com fervor, triturando os ossos dos braços que foram drasticamente amarrados nas costas do segundo pegador. O menino urrava, mas o que era o grito de uma criança no meio de uma rua rodeada de entulho? O que era o grito de um jovem alemão na Segunda Guerra Mundial?

Lammert foi amarrado facilmente com a ajuda de mais dois soldados que cheiravam a gim. Levou um chute bruto na boca, que cuspiu sangue pelo assoalho da casinha em que engatinhara pela primeira vez. Depois de atado, jogaram-no num monte de... Pessoas. Tão atadas quanto ele. Sofie Waldeburg, sua melhor amiga e sonhadora. Olhos antes azuis cristais, fechados. Envergonhados. Baixou os olhos pelo corpo da menina e o que viu tinha que ser mentira. Tinha que ser.

O fecho de sua calça pesada estava aberto, violado. A roupa íntima por baixo, manchada de sangue. Lammert Ortwin mordeu os próprios lábios com a raiva que sentia por aqueles homens que estavam um andar abaixo, fazendo o mesmo com a sua mãe. Junto à amiga que permanecia de olhos fechados, num semblante dolorido, estavam toda a família Liutpald e os pais da menina. Também estavam Herr e Frau Kaiser, Dirk que tinha se escondido com eles e Herr Ivo e sua mulher, com a filha doente – a garota tinha nascido fraquinha e o corpo não parecia ter desenvolvido. Tinha um jeito atrofiado – e ela, mesmo visivelmente deficiente, possuía um corte feio no canto da boca e parecia ter sido esbofeteada, já que seu rosto estava inchado e roxo nos cantos dos olhos.

Sofie abriu os olhos, talvez apenas por saber que agora estava na casa de Lammert. Abriu-os com demora, com pesar. Olhou tristemente para os olhos azuis escuros do menino que estava à sua frente, abaixando os próprios olhos para sua virilha, atirando uma gota furtiva assim que concluíra o ato.


Ninguém ouviu a pequena conversa dos dois, mas ela foi rápida e clara:


– Está tudo bem.

– Não está.

– Está sim, Sofie.

– Ele cuspia em mim enquanto me violentava.

– Está tudo bem.

– Eu quero morrer.

– Não quer.

– Como vamos viver agora?

– Vamos acreditar.

– Em que?

– Em não acreditar em tudo que estamos acreditando agora.


Fazia frio.

A porta se abriu.


[ ~ ]


Era um belo dia para se pescar. O lago estava azul, o sol não radiava com tanta força, então suas nucas estavam a salvo. O cão cinza fosco corria pela beira do rio, latindo com força, já que os peixes pulavam para fora da água e caíam pelo chão da mata. Seu dono, um velho barbudo e carinhoso, apanhava os peixes e colocava numa sacola que nunca parecia encher-se. Os mais graúdos e com carne mais rosada, ele jogava para o companheiro de língua para fora, que engolia a comida numa abocanhada.

Depois, empanturrados de peixe, o velho deitava-se debaixo de uma árvore gigante, que fazia uma sombra perfeita de boa! Ele chegava de mansinho, pousava sua cabeça calva no dorso do cão e passava suas mãos marcadas pelo tempo pelas orelhas grandonas dele.


– Depois, me lembre de lhe dar aqueles ossos que sobraram do jantar. Ainda devem ter gosto de porco, não? – Dizia o velho, rindo. O cão riria, se pudesse. Riria tanto que seria o cão mais risonho do mundo.


E o mundo, claro, seria perfeito. Mas aquilo era só um sonho canino.


Remexeu-se, sentindo uma fisgada nas costas e um acariciamento no topo ossudo da cabeça. Voltou a dormir, como fizera na maioria do tempo durante os últimos dias. O homem, não mais bêbado, cuidava dele. Tinha até amarrado um pano em volta do corpo fosco, apertando sua barriga vazia com força. Juntando o que tinha separado, como o homem bem dissera durante uma lucidez vaga e imprecisa após a soneca canina. Aliás, mesmo que estivesse mesmo acordado, nada teria sido entendido em totalidade. Os cães não conversavam com os humanos. O idioma era diferente, estrangeiro. Mas os cães entendiam mais do que qualquer um o que as pessoas precisavam. Então, numa conclusão sempre tão abestalhada, os humanos diziam que os cães entendiam algumas palavras. Mas cada cão entendia mesmo era o coração de seu amigo, apelidado por dono.


Logo, estava ele correndo atrás de lebres deliciosas, que se tornavam bifes assados instantaneamente após a mordida. E havia milhares de lebres, muitas delas! Chamou seu dono aos latidos, pulando com toda a felicidade que seu coração severamente mais intenso que o do homem podia proporcionar.


– Arf, au, arf, arf, arf! – Dizia, empolgado. – Au, au, au!


Veja como somos abençoados, meu amigo!

Veja como somos abençoados!

[ ~ ]


A casa dos Ortwin permanecia calada. Todos os alemães em que residiam nela, agora mais ou menos um terço do bairro, viram um homem adentrar no aposento arrastando os pés, desviando o olhar das pessoas que estavam caídas pelo chão, feridas, humilhadas, acabadas.


– Poupe essa rua, por favor. – Pediu este homem recém-chegado, com um uniforme verde musgo, com uma suástica desfiada no braço direito. – Nossos abrigos estão superlotados. Estas pessoas podem continuar morando em suas casas, a maioria deles são crianças e mulheres. – Dizia o alemão, mas não na língua em que eles se comunicavam. Era um dialeto diferente, que aqueles russos fardados entendiam.


O russo olhou para o alemão com desconfiança. O que ele dizia era verdade, além de ordem dos seus superiores. Eles não deveriam abrigar pessoas com casas nos albergues que estavam por toda Alemanha. Elas, as abençoadas que não tinham perdido as casas, deveriam se virar. Olhou para o fundo da passagem subterrânea e o amigo agora arriava a calça e subia as escadas com uma língua pendendo pelos lábios de felicidade. Atrás dele, uma alemã com os olhos pregados no chão e mãos em seu ventre. O terço enrolado em sua mão balançava debilmente, tão inocente no meio do caos.


– Vamos aceitar. – Disse o russo, fazendo o restante de sua tropa começar a caminhar-se para fora da casinha. O estuprador ainda apertou as nádegas de Frau Ortwin e riu com gosto. Ela continuava encarando os próprios sapatos.

– Deliciosas bocetas as que vocês tem, alemãs. – Assobiou o soldado russo de cara magra e queixo protuberante, com um furinho no centro. Acendeu um cigarro, retirado do bolso frontal da uniforme e baforou uma cortina de fumaça fétida na cara do porta-voz alemão que mais parecia um anjo para aquelas pessoas. – Vou passar aqui mais vezes para conferir a validade das suas mulheres.


O único alemão que entendia o que aquele patife dizia desviou o olhar do diabo, mas aquilo era algo que somente ele fazia, pois todos os outros, amarrados e jogados pelo chão como sacos de batatas, metralhavam o homem com olhares de puro ódio. Ele riu e, seguindo os outros que já estavam na rua de fuligem em frente à casinha de paredes de céu, começou a sair, mas não sem antes pisar com brutalidade no tornozelo de Menno que berrou de dor em meio a seus irmãos mais novos que começaram a chorar. Sua mãe, biruta da cabeça, ainda olhava para sua genitália, que tinha sido invadida pelo mesmo russo que tinha violentado as outras mulheres do lugar, restando somente a frágil Anelie Ivo, a menina doente, que não tinha sido estuprada, mas carregava as marcas da maldade do exercito superior no rosto inchado.


– Desamarre eles, dona. – Ordenou o alemão que seguia os russos pelo território que antes eles podiam chamar de inimigo. Agora, para aqueles homens estrangeiros que abusavam de suas mulheres e batiam em suas crianças, a Alemanha era um circo mirabolante e prazeroso.

– O QUE VAI SER DE NÓS? – Gritou Herr Ivo temeroso. O homem alemão arrumou seus cabelos amarelos para trás e olhou para o céu nublado acima da Alemanha.

– Que Deus nos proteja. – Sussurrou, saindo da casa com passos arrastados.


Frau Ortwin livrou seu filho em silêncio, evitando passar os olhos por qualquer pedaço humano dentro daquele lugar.


– Mama. – Disse o menino, sem emitir muito som.

– Que Deus nos proteja. – Arfou a mãe, tremendo tanto que o laço que prendia Sofie nem mesmo se movia. Seu sangue borbulhava em suas veias. As lágrimas salpicavam sua retina. Sua língua queimou e ela não pôde se conter mais. Era o fim de mais de quarenta anos contendo-se. – QUAL DEUS? QUE DEUS? – Berrava a mulher, cravando as unhas no rosto. Assustada, viu seu terço preso em seu pulso, quando tinha as garras afundadas no topo da cabeça. A cruz que pendia na extremidade solitária do terço de carvalho apareceu entre seus olhos, batendo em seu nariz.


Diziam as pessoas dentro da casa dos Ortwin que algum diabo tinha tomado conta do corpo de Fritzi Ortwin. Mas aquilo era somente desabafo. Retaliação. Ela agarrou o instrumento da fé e puxou com toda a força com as duas mãos, cada uma exercendo força para um lado. O terço explodiu e suas bolinhas voaram para todos os lados, atingindo pessoas e objetos.


– EU NEGO ESSE DEUS! – Exclamou, esvaziando seus pulmões. Todos olhavam pra ela pasmos. A mulher mais beata que eles conheciam estava sorrindo agora. Sorrindo enquanto lágrimas pulavam pelos seus lábios contorcidos para cima. Não se podia dizer que ela estava feliz. Ou triste. Não se podia afirmar nada naquele momento.


Dez horas depois, quando todos já tinham voltado para suas casas, mais lá pelo despertar de Lammert de um sono rápido e revigorante, o menino encontrou uma Frau Ortwin agachada pelo chão, recolhendo bolinhas de carvalho. Ela ouviu o salto da bota do filho e se virou, com o rosto manchado em lágrimas.


– Pode me ajudar a encontrar? – Perguntou, baixinho. O menino sentiu seu coração apertar e agachou-se, em sinal de que sim, ele ajudaria. Sua mãe estava mais jovem do que nunca. Tinha exalado uma bagagem pesada e incômoda de desaforos, temores, revolta. Seus cabelos loiros escuros estavam apinhando as costas magras e seu nariz pontudo parecia guiar o rosto com aparência mais velha do que a real idade dela. Era uma bela mulher alemã, mas com vinte anos extras, por pura falta de viver. Teria Sofie, um dia, o mesmo rosto prematuramente envelhecido?


Mas a porta se abriu, novamente. O vento frio invadiu a casa. O cheiro de suor misturado à sangue entorpeceu as narinas dos Ortwin. A mãe foi a primeira a avistar. Lammert, dois segundos depois, também viu.


Johann Ortwin em frente à porta, com um pano volumoso envolvendo um cachorro de olhos pratas terrivelmente lindos.


– Graças a Deus estão vivos... – Arfou o patriarca, colocando o cão no assoalho, pois mãe e filho já o agarravam com toda a força que tinham. Fritzi não chorava, como o filho, mas tinha seus dois olhos glaciais aliviados. Com um arfar alto, todos se voltaram para um cãozinho robusto que se livrava dos panos em que viera enrolado. Abanou o corpo, batendo as orelhas na cara, libertando a língua para o lado da boca meia aberta.


Johann, Fritzi e Lammert se desvencilharam e voltaram-se para o animal. Como se escolhesse o novo dono, moveu suas patas musculosas até a frente do garoto e lambeu a mão do jovem alemão, que se virou para os pais, sorrindo abobado.


– Bernt. – Disse o filho, abraçando o cão.


Ali, começava a amizade de Lammert Ortwin e o dogue-alemão-azul, Bernt.

Ali, começava a ruína de toda a família.

Ali, começava a Guerra no bairro de Wandsbek.

Ali, começava a Stunde Null.


[ ~ ]


21 de Maio de 1945

Adorf, Alemanha.


Bernt já tinha as costas perfeitas. Sofie, há três dias, não precisava colocar a mão entre as pernas para disfarçar o sangue que escapulia por ali ao mínimo esforço. Menno parara de desenhar Führer derrotado, uma vez que o diabo já tinha se matado. Desde então, ainda que a rua em que morasse fosse regida pela tristeza, o garoto de cabelo de ferrugem conseguia assobiar fervorosamente enquanto passeava com Lammert, Bernt e Sofie. O cão de pêlos metálicos desprovidos de brilho amava acompanhá-los pelas caminhadas longas, aonde iam até o bosque. Lá, ficavam conversando, às vezes riam. Fugiam da Stunde Null. Ao fundo da relva, passava um rio de água turva gelada, mas para Bernt, a água só era um pouco teimosa. Seus pêlos cinzentos ignoravam o frio e a sensação de congelamento que seria certa na pele humana; ao animal era um estímulo para continuar agitando-se. Lammert via toda a baderna do amigo como um jeito de demonstrar que estava feliz. Seria fácil se todo alemão pudesse enlouquecer num riozinho, rindo a plenos pulmões, tendo a felicidade injetada à bom gosto nas veias de sangue mórbido.


– Lammert. – Disse Sofie, penteando os fios dourados com os meios dos dedos. – Meus pais não querem que eu ande com você. – Ela dizia aquilo com uma extrema insegurança. Menno revirou os olhos; já tinha ouvido aquela história na noite anterior, quando fora jantar com os Waldeburg.

– Eu... Não entendo, Sofie. – Disse o loiro, olhando o rosto abaixado dela.

– Eles não concordam com o seu pai estar autorizando você criar o Bernt. Meus pais acham que isso é cuspir na própria sorte.

– Mas temos suprimento o suficiente para alimentá-lo! – Retorquiu Lammert, chateado com a família de Sofie.

– Se sobra comida em sua casa, falta no prato da família de Menno. – Falou a menina, automaticamente. Ela não o encarava. Encarava apenas o discurso de seu pai, fuzilando suas idéias.


Lammert abriu a boca novamente para falar, mas não conseguiu dizer o que pensava. Era duro e egoísta demais: “Menno não é da minha família!”. Mas era tão verdade que o ácido daquelas palavras arrasou sua garganta. Menno tinha os olhos colados ao chão, mas não por que os Ortwin preferiam tratar de um cão ao tratar de sua família. Por que a Alemanha estava arrasada, mas nem por isso Lammert Ortwin conseguira ter por sua família uma relação normal, além da caridade.


– Todos pensam assim, não é? – Indagou Lammert, com o ácido mareando pelos dentes cerrados.

– Sim. – Falou Menno, com um outro tipo de ácido na boca: o da vergonha. – Mas não quero que Bernt seja largado por aí, Lammert. Eu gosto dele. – Apressou-se a dizer, mas não ligava para o cão. Ele só não queria esmola. – Não se sinta culpado.

– Sofie?

– Eu... – Arfou ela, desamarrando-se das amarras que a aprisionava. A primeira amarra foi a de demonstrar felicidade no olho do tufão. Então, sorriu. A segunda foi desprender-se das idéias de sua família. – Eu não acho que isso seja um pecado, Lammert Ortwin. – E a terceira e última, a da opinião própria. – Se não fosse o cheiro, Bernt seria um cão perfeito.


Mal sabia Bernt, que chegava do lago naquele momento, com um peixe no meio da boca robusta, que ele acabava de receber a carta de alforria daqueles dois garotos. Como se importasse. Jogou a caça no meio dos três garotos, esperando que eles abanassem algum rabo, pois ele nunca chegara a encontrar um rabo no corpo humano. Coitado deles, pensava o cão. Como demonstravam se tinham gostado ou não?


– Obrigada, Bernt. – Sorriu Sofie, acariciando sua cabeça. Ele sim abanou o rabo com prazer. Os três se levantaram logo após, batendo as mãos pelas vestes. O peixe ficou ali, caído. Latiu. Ora essa!


Os três se viraram, sem entender. Apontou a caça com o focinho e olhou para eles, aguardando. Menno quem estava mais perto, pegou o peixe e colocou no bolso da calça marrom-avermelhada.


– Vou guardar para o jantar. – Disse descontraído, lambendo os beiços. Bernt riu, de sua forma.


Lammert, depois de andar um pouco, chegou a pensar que Menno talvez estivesse dizendo a verdade. Varreu o pensamento deprimente de sua cabeçorra amarela, dando ouvidos à Sofie que narrava uma história interessante.


Horas Depois

Bernt assistia Frau Ortwin rebolar enquanto preparava o jantar com seus olhos prateados movendo-se com rapidez, seguindo cada pequeno ato da mulher. Já amava aquela família. Até mesmo Fritzi, que no começo tivera receio em aceitá-lo, agora fazia uma porção de batatas para o cão, que devorava o banquete e comia os restos dos outros pratos. Seria uma vida completa se não fosse pela falta de seu antigo dono, que nunca o deixava com fome se houvesse comida. Nunca o deixava com frio se houvessem cobertores. O que aquela família fazia era igual e era perfeito. Johann Ortwin, o anjo que o acolhera, estava debruçado na mesa de madeira, tragado ao cheiro delicioso das batatas cozidas. Lammert, seu amigo mais querido da casa, estava no cômodo que era seu quarto. Algo estava estranho, ele costumava passar o tempo todo deitado com Bernt, traçando os dedos por dentre os pêlos curtos e grossos.


Alguém bateu à porta. Algo diferente dos Toc Toc costumeiros. Eram pontapés. Fritzi apertou as batatas nas mãos magrelas, com a boca afrouxada. Johann ergueu-se num pulo, sendo copiado por Bernt. O pai abriu a porta, irritado.


Lammert chegou um pouco mais tarde. Quando Bernt já rosnava. Quando Johann já dava um passo para trás. Quando Fritzi procurava por um terço no bolso do avental, mas encontrando apenas o vazio. Quando a mãe de Menno já estava dentro do hall, por assim dizer, da casa. Com um peixe fedorento pendurado na altura de seus olhos, com uma escolta de vizinhos aos seus calcanhares. Lammert fuzilou Bernt com os olhos, mas o cão apenas se retraiu ao vislumbrar uma tocha crepitante do lado de fora. Tochas?


– O que houve, Frau Liutpald?

– Houve um peixe, Herr Ortwin! – Falou a mulher exaltada. Ela tinha cabelos cacheados ruivos, lotados de fios brancos explodindo para fora da onda que fazia o seu corte. – Seu filho... – Gritou a mulher, apontando o dedo para Lammert que já tinha entendido tudo. Bernt rosnou, paralisado. – Seu honrado e querido filho deu um peixe idiota para meu filho! Nos humilhou, como vocês vêm fazendo todo o tempo! Esse cão, essa mulher que cozinha batatas todos os dias! O senhor se entregou à bebida quando nós não concordamos com as suas idéias!

– Mas ainda assim todos estão vivos, graças aos abrigos subterrâneos que o Führer indicou! Eu não fiz nada além de convencê-los a permitir a construção dos abrigos.

– Nos obrigou! – Gritou alguma voz no fundo da rua. Johann sentiu uma de suas veias do pescoço arderem.

– Mas todos estão vivos, não estão? – Gritou Herr Ortwin, olhando para sua mulher que assentiu. – Vocês estão procurando algum motivo para nos punirem. – E o homem suspirou, arrasado. – Sempre nos odiaram.

– Queremos justiça, Johann. – Intercedeu uma nova voz. Herr Ivo, com seus bigodes de vassoura. Tinha um semblante de impaciência no rosto inchado.

– Eu vejo mesmo! – Ironizou ele. - Tochas acesas, um mini-exército. Justiça? – Perguntou Johann, com um gosto desagradável na boca. Gosto de guerra.

– Frau Liutpald, onde está o Menno? – Observou Lammert, olhando pelo grupo de ranzinzas. A mulher colocou um braço para fora, acenando que o trouxessem. Lammert viu no aceno uma quase ordem, do tipo que ele fazia a Bernt quando ele não era um bom menino. Lentamente, a luz recém-arrumada da casa dos Ortwin pintou o rosto do amigo. A primeira reação foi desabar o maxilar. De repente, ele tinha ficado imensamente pesado. Menno tinha as maçãs do rosto sempre encovado infladas, vermelhas num tom berrante. Cinco dedos estavam perfeitamente registrados no rosto dele e por todo o pescoço também haviam marcas de espancamento. A mãe de Menno tinha lhe dado uma surra. Ela, com violência, jogou-o para frente da procissão, deixando-o frente a frente a Lammert. Os olhos terrosos do menino ascenderam com vergonha, encontrando os azulados de Lammert depois de alguns segundos.


– Diga a ele por que está assim, Menno. – Zumbiu a mãe atrás, chutando-o na canela. Era totalmente louca. Ele gemeu e disse, sem olhar para o amigo.

– Que eu queria ser filho dos Ortwin pelo menos uma vez na vida.


Fritzi levou as mãos esqueléticas à boca fina, que estava aberta surpresamente. Johann tinha olhos de pesar. Lammert olhou para o companheiro de tantas aventuras na Juventude Hitlerista. No bairro de Wandsbeck. Na Alemanha nazista e hipócrita. Não podia acreditar.


– Me desculpe, Menno... – Arfou o filho dos Ortwin. Ele tinha o sangue em brasa nas veias estufadas na pele pálida. – Você é como um irmão para mim. – Podia ser meio deficiente, mas Menno sorriu. Rapidamente, a mãe do menino o puxou pelo colarinho e jogou-o para o público silencioso às suas costas. Ninguém dentro da casa veria, mas Sofie seria a primeira a abraçar Menno e dizer que estava tudo bem.

– Nós chegamos a um consenso. – Pigarreou o Herr Ivo, erguendo a vassoura abaixo do nariz de batata. Diversos olhos fuzilaram o cão em estátua no canto da cozinha precária.

– O cão não tem culpa.

– Estamos em crise, Johann! – Berrou a mãe de Menno, trêmula de fúria. – Meus filhos passam fome e você alimenta o cachorro! Não o queremos aqui. Ele fere os princípios que a Alemanha está nos ensinando para superar a Stunde Null.

– Bernt nunca fez nada de errado para ninguém que seja! – Exclamou Lammert, sentindo a visão embaçar. Bernt nunca tinha feito nada de ruim, pelo contrário...

– Ou o cachorro, ou... – Ameaçava agora o Herr Waldeburg, pai de Sofie. – Peço que saiam desse bairro, Herr e Frau Ortwin. – Claramente, aquilo tinha sido esquematizado antes. Ensaiado. – Não queremos que vão embora, então... – Ele aparava incansavelmente o suor que escorria pela testa franzida. O velho Dirk, único sobrevivente das outras ruas por ter acreditado no homem que agora era coagido, emergia no pelotão de pessoas com um saco típico de batatas. Um saco espaçoso e resistente. Uma prisão.


Bernt foi agarrado por Lammert, que se jogou pra perto do cachorro já com lágrimas traçando o seu rosto de pavor. O que Bernt pensava?


Dois dias atrás

Dois rios delimitavam a cidade de Adorf. Weisse Elster, o rio preto. Schwarze Elster, o rio branco. Weisse e Schwarze também eram, coincidentemente, as tonalidades que Bernt tinha aquelas lembranças. Em preto e branco. E fora num dos vales que mais se dividiam por esses rios que se passava um dos melhores momentos que tivera ao lado de Lammert. Também estavam presentes Menno e Sofie. Eles só corriam, rindo dele, que vinha logo atrás, latindo ruidosamente. O cão, sempre curioso, tinha se enroscado a uma relva de aparência espantosa, depois de farejar com ardor algum vegetal parente do cipó, mas apodrecido e num verde musgo horrendo, ocasionando em seu entrelace nas vinhas. Realmente era de se assustar, e Bernt podia correr o quando quisesse, mas a vegetação estava presa em sua anca e patas traseiras. Na verdade, Bernt já estava adorando vê-los correr dele, os três explodindo em risos. Até que Lammert parou e pulou o mais alto que seus pés lhe proporcionassem. O menino tinha chegado ao máximo de felicidade que podia guardar. Bernt não entendia muito bem o dialeto dos humanos, mas as palavras naquele momento foram exatas e gigantes.


“Ich Bin der König der Welt!”

Eu sou o rei do mundo!


Fechou os olhos, podendo sentir cada vibração da voz do amigo naquele dia. Eles eram os reis do mundo. Somente eles...


O ambiente em que ele estava, de volta à casa dos Ortwin, era repleto de gritos e protestos. O cão não ligava. Eles eram os reis do mundo. Sentiu os braços que o agarravam serem tirados dele, perdendo um tanto da paz em que mergulhara nos últimos segundos. Um velho de pelagem estranha sob a boca apertada em dentes o engolia com um saco negro enchendo seus olhos de prata arregalados por uma escuridão sem volta. Fim.


[ ~ ]


A cabeça tinha trincado. Lammert só tivera essa sensação quando finalmente abrira os olhos. Focalizou Sofie e Menno, agachados à sua volta. Não havia civilização ao seu redor. Apenas o céu vazio e a floresta silenciosa.


– Bernt! – Chamou, levando um choque por tantas partes do corpo que ele arfou, sem ar.

– Nós... Lamentamos, Lammert. – Sussurrou Sofie, ficando em silêncio logo após. Menno puxou um saco negro já furado. Amassado. O rosto de um cão fugia pela boca. Olhos fechados. Orelhas caídas, inanimadas. O pêlo cinzento colorido de vermelho enxaguado. O coração de Lammert Ortwin apertou tanto que só lhe restou abrir a boca e chorar com força. Sofie e Menno também choravam quietos.

– Conseguimos arrastar você para cá. – Lammert percebia que Menno dizia aquilo com uma dor que escapava por sua respiração. Não mencionara Bernt, mas seu cãozinho estava ali aos seus pés, morto.

– Como ele morreu? – Foi o máximo que o garoto loiro conseguiu dizer. Já resgatava o amigo do recipiente negro e imundo. Sofie fungou e tomou à voz.

– Pauladas. Eles prenderam sua mãe em um dos quartos... Seu pai foi desacordado da mesma maneira que Bernt e você... Foi horrível. – Suas palavras falhavam em meio aos soluços. – Eu sinto tanto, Lammert...


Ele sabia que seus amigos não tinham culpa. Nem mesmo Menno. Só que a dor vencia a realidade. A dor o cegava e o injetava a não sentir mais nada. Tomou o cão em seus braços e começou a andar. Seus amigos vinham atrás dele, velando o seu andar derrotado. Um funeral ao acaso. Um funeral de um cão culpado ao acaso.


Lammert se encaminhou à primeira rua, que dava o caminho da clareira em que ele tinha acordado. Não havia nada nela além de restos. Montanhas de restos. Viu um canto já propício a uma cova, estaria ele esperando um novo morador? Bernt merecia um leito muito melhor, mas também merecia uma vida e um fim deveras melhor. Mas aquilo era Stunde Null. O resultado da Guerra perdida pela Alemanha. O resultado do nazismo. O resultado da inveja de alemães que não podiam olhar para casas e verem paredes de céu. Ou ter batatas no jantar. Até mesmo uma televisão que não funcionava, mas que todos viam nela, além de um objeto luxuoso, a diferença daquela família à realidade de suas vergonhosas vidinhas. Afinal, os Ortwin tinham culpa em não estarem submergidos à Stunde Null? Soluçou uma laranja na garganta sufocada.


– Lammert... – Falou Sofie há alguns metros atrás do garoto que carregava seu cachorro, caminhando lentamente, pendulando para lá e para cá. Estaria acompanhando-o se não estivesse interceptada por uma única mão traçada em uma luva de lã grossa, pertencente ao terceiro e último humano vivo naquele lugar, um garoto de sardas em brasa, alto e magrelo.


O Ortwin solitário ajoelhou-se, deitou o cão acinzentado no chão de fuligem e, exausto, levou os cotovelos ao terreno imundo. Uma lágrima rolou preguiçosamente até o seu queixo, perdendo-se nos pêlos do animal quando se descolou de seu genitor, que apressadamente confeccionava novas esferas límpidas e brilhantes. Maldita ironia, aquela. O meio que transmitia tristeza trazia à tona a matéria mais pura existente nos corpos humanos que ali ainda sobreviviam. O dono do cachorro, ainda em lágrimas prateadas ergueu a cabeça e sorriu, apertando a terra de destruição em seu punho direito, fazendo-a pulverizar em meio aos dedos.


– É melhor aproveitarem a Guerra! – Berrou, entorpecendo em seu corpo as mais variadas sensações. Medo, revolta, dor, nostalgia, felicidade, dor, dor. Dor. Este último sentimento, se é que podia ser classificado sentimento, efervescia potencialmente sob os outros. Seus companheiros, afastados, viram suas mais variadas partes do corpo entrar em choque, arrepiando-as. – A paz... – Sua voz já não tinha toda a potência de antes, já era tragada pelo sentimento da Stunde Null. - Será terrível.


Abraçou o seu pobre cão, explodindo em choro. Que chorasse, chorasse muito. Que todos os alemães parassem um minuto e chorassem. Talvez fosse um mar de lágrimas a solução de todo aquele caos.


O enterro durou vinte minutos. A lucidez de que ele tinha enterrado seu cão nunca chegaria. Até que uma voz rompeu o cenário marcado em sentimentos doloridos.


– Crápula! – Berrou o dono da voz gutural. Eles se voltaram e encontraram Dirk, o louco intruso. As mãos carregavam duas armas mortais. Em uma delas, um revólver. Na outra, um caderno.


O caderno de desenhos de Menno.


– Seu pai te criou muito bem, não foi? – Disse o velho, mancando. Seu rosto era todo desfigurado e tinha uma perna maior que a outra. A calvície tomava todo o cocuruto e parcelas generosas da cabeça amassada e suja. – Vendendo sonhos para essa gente! Johann Ortwin o criou na fantasia.

– Meu pai salvou seu traseiro imundo, seu desgraçado! – Proferiu Lammert com uma raiva compreensível a Menno que o agarrava, impedindo-o de pular no pescoço do homem.

– Lotar o caderno de desenhos do Führer morto é uma maneira de desabafar o quanto o mundo de fantasias não era verdadeiro fora da sua casinha azulzinha, não é? – Xingava ele, nazista puro.

– Esse caderno é meu, Dirk! – Gritou Menno, com medo. O revólver prateado fazia sua língua pesar toneladas. Sofie estava ao lado de Lammert também, mas seus olhos arianos perfeitos estavam presos na arma apontada para eles.

– Não. – Ele riu. – Estava na bolsa desse aí. – Falou, apontando a arma para Lammert que quase rosnava. Menno o olhou, aturdido.

– Eu tirei da sua mochila, antes que sua mãe achasse. – Explicou o amigo loiro a Menno que tinha a boca semi-aberta. Lammert sorriu. – Não queria que ela te desse uma surra por culpa de sua imbecilidade. Acho que consegui, pelo menos por isso.

– Pare de jogar a culpa para o Liutpald, seu filho da mãe. – Balbuciou o velho Dirk, já há dois metros deles. – Pessoas como você precisam pagar. Estamos na lama por alemães como aqueles da sua família. Como esse seu vira-lata que virou presunto.


Sofie só pôde registrar o barulho do disparo. Alto, cortante. Suas órbitas saltaram e suas têmporas latejaram por alguns segundos. O sangue que irrigava seu corpo parecia ter sido engrossado, maximizado milhões de vezes cada microscópica hemoglobina. Voltou finalmente a si quando os joelhos de Menno tocaram o chão.


Mas era Lammert quem agonizava com um tiro no meio do coração.


Muitos diziam que quando as pessoas morriam, um filme passava diante dos olhos do defunto, em seu último suspiro de vida. A Lammert isso talvez fora dispensado. Sua vida não era como um álbum de fotografias, onde se registram os mais felizes ou preciosos momentos. Se um dia ele pudesse ter a chance de montar esse tipo de álbum, o dele se resumiria a uma única foto. A um único momento. O jantar de cinco dias atrás, onde sua mama e seu papa finalmente haviam cedido à sua insistência em convidar Menno Liutpald e Sofie Waldeburg para comer batatas no jantar. Todos eles sentados em volta da mesa de carvalho negro, rindo da piada que Johann contara sobre o bigode de Hitler. Bernt ladrando abaixo da mesa, furtivo como uma bala ao recolher as batatas fugitivas dos pratos de Fritzi que tinha um sorriso iluminado no rosto sempre tão sofrido e preocupado. O álbum se resumiria a qualquer momento daquele jantar. A qualquer sorriso, arroto de Menno, passar de olhos de Sofie, choro de Bernt, piadinha de papa ou de feições carinhosas em mama por ter sua família reunida novamente.


Mas a única coisa que ele viu diante de seus olhos foi a figura de um sujeito desenhado com um bigode perfeitinho, tendo ainda costurada uma suástica no peito. Depois o rosto ávido de Sofie chamando-o, em lágrimas. E por fim, breu. A escuridão lhe fazia bem, pois alguém lambia seus dedos e fervilhava em sua mão aberta. Alguém de pêlo quente e aconchegante. Alguém que morrera do mesmo jeito que ele: Alguém que não merecia morrer.


[ ~ ]


Dirk foi encontrado morto no rio branco dois dias depois. Testemunhas diziam que sua repentina morte coincidira com o repentino sumiço do casal Ortwin, que deixara tudo para trás, inclusive a tevê que foi tão repentinamente tirada dali quanto ao sumiço dos dois.


Menno Liutpald cresceu com seus irmãos esperando pelo pai que nunca chegou. A mãe, depois que percebeu que ele não voltaria, também foi embora. Deixou de herança aos cinco filhos uma tevê. Herança. Menno cresceu e tornou-se pintor. Mas, seus desenhos sempre tão tristes e pintados em tintas e dor, agora se transfiguravam em paisagens e telas lindas. Uma das pinturas que ele mais estimava e exibia na sala de estar em sua casa humilde em um dos bairros de Hamburgo, era um cão de pelagem cinza desprovida de brilho, com uma língua rosada pendendo para o lado. Quando ele a olhava, sentia cheiro de mato fresco, peixe-estrago nos dias ruins e batatas.


Sofie Waldeburg, ao ter a maioridade, sumiu pelo mundo. Nunca mais se soube da namoradinha de Menno Liutpald dos quatorze aos dezesseis anos. Mas, podia se imaginar algumas de suas metas. Sapatear, visitar o mundo, viver e dizer tudo que sua alma pedia. Todos a viram, antes de partir, chutar um amontoado de terra agora somente terra, pois a Alemanha se reconstruía, na parede descascada da casa dos Ortwin, nunca ocupada novamente. Após fazer isso, sorriu e apertou o peito com uma das mãos, para que seu coração não lhe escapasse pela goela.


O casal Ortwin saiu da Alemanha com pressa, com saudade. O único filho, enterrado em terra nazista fazia seus espíritos clamarem por liberdade. Por toda a vida, os dois transitaram por oceanos e continentes. Johann, é claro, continuou bebendo, mas de maneira que sua mulher, agora uma senhora animada e contadora de histórias, pudesse acompanhá-lo. Fritzi Ortwin livrou-se das pregas de tristeza e de nosso senhor. Sim, conhecera o ateísmo logo após aquele Deus tirar-lhe o único filho. E conhecera a vida, mas não que a crença lhe privava disso. O excesso dela o fizera.


O bairro Wandsbek tornou-se referência histórica no mundo por ter sido arrasado e, com uma sorte inacreditável, conter uma rua sobrevivente, a do meio, a que abrigara um bêbado; um cão de olhos de prata; um filho clemente na utopia do pai sonhador, um filho clemente à negatividade da mãe invejosa; uma menina calada à força e uma mãe que limpava paredes de céu. Mas estes personagens, é claro, nunca foram de conhecimento do público. Do Mundo. É essa, uma das tantas desvantagens da História: Ela narra somente a História. É como ler um monte de eventos ocos e sem vida. Cabe, a histórias como essas, dar vida ao puramente narrado. Cabe a cães como Bernt, demonstrar que a Guerra Mundial recebe esse nome por englobar os que a fazem e os que a não entendem. Ou a Lammert, para ilustrar que não era impossível ser feliz no meio do desespero.


Os que ali viram a última lasquinha de paredes de céu ser levada pelo tempo, afirmavam que, em noites mornas e suportáveis, ouvia-se pelo assoalho da casinha e pela rua deserta um cão uivando atrás de um garoto risonho. Alguns ainda afirmavam que, no ápice da bagunça noturna fantasmagórica, ouvia-se um proclame vitorioso:


“Ich Bin der König der Welt!”


Boato ou não, aquela frase tinha feito de seu proclamador e escudeiro canino fiel, verdadeiramente felizes. Por que não, então, plenamente vivos? Por que não, partes da História?


Aquela.

A verdadeira História.



Fim.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem e comentem, por favor!



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