Estávamos novamente sob aquela árvore. Eram tantas lembranças brotadas daquele pequeno espaço que nem me atrevi a acompanhá-las quando vieram à tona. O vento soprava como brisa de verão enquanto o sol, ainda que tímido, afagava-nos com seu calor. Nossas mãos estavam em um aperto mútuo, como sempre foi. Nossos corações batiam em sintonia, como sempre há de ser.

- Você acha que doerá? - Fitou-me com seus olhos incrivelmente azuis.

- Acho que não. Deve ser tão tranquilo quanto pegar no sono.

Sorriu-me lindamente, como a muito não sorria. Doia-me a alma vê-lo desta maneira, doia-me em dobro por sentir o sofrimento que tudo isso o causava. Cada tapa, soco e humilhação que ele levava doiam em mim infinitas vezes mais, como se nossa ligação intensificasse cada sentimento e sensação vinda do outro.

- Sentirá falta de alguma coisa? - Disse-me de olhos fechados com a cabeça levemente inclinada para trás sendo apoiada pelo tronco da árvore.

- Não. Tudo o que um dia poderia me fazer falta irá junto comigo.

Apertou mais minha mão com a sua e pude ver uma lágrima solitária escorrer-lhe na face. Senti toda a angústia que assolava seu peito e chorei. Chorei por nosso pai sempre bêbado, nossa mãe drogada e pelas infinitas vezes que tentamos fugir mas nos encontraram. Chorei pelas humilhações, abusos e feridas na alma. Chorei por terem feito a pessoa mais importante que tenho chorar. Chorei por cada lágrima por ele derramada e pela eternidade incerta

Sempre nos achamos diferentes dos outros, diferente até dos parecidos conosco. Tínhamos algo além de um físico ou temperamento parecidos. Tínhamos uma alma repartida e compartilhada, um coração harmônico com o outro e um amor incalculável. Nunca tentaram nos entender, mas também não precisavam. Só necessitávamos um do outro.

- Se eu não quiser mais ir, você ainda irá? - Seu olhar de desespero passou-me como uma faca no coração.

- Nunca iria para um lugar que você não fosse.

- Ainda acho que temos esperanças. Quer dizer, e se tentarmos fugir novamente?

- Iriam nos achar como das outras vezes. Você sabe como tudo funciona aqui, se nos pegarem poderá ser muito pior.

Ele fechou os olhos ainda com a cabeça virada para mim. Pude acompanhar o caminho de suas lágrimas descendo até o pescoço e morrendo na gola da camisa surrada. Toquei-lhe a face e afaguei sua bochecha corada fazendo-o ronrocar sob meu toque.

- Se não quiser mais ir, arrumarei coragem do além para proseguir com você. - Ditei confiante.

Os soluços de seu choro se tornaram altos e ainda mais sofridos. Abraçou-me apertado derramando seu pranto sobre meu ombro enquanto eu chorava em silêncio. Minha mente trabalhava numa forma de nos tirar de toda situação, mas apenas uma ideia se fazia fixa.

- É a única solução. Não vejo mais futuro em nada aqui.

Ao me ouvir se soltou de mim e me encarou profundamente. Senti meu peito se aquecer sob seu olhar e a certeza de que, onde quer que fóssemos, estaríamos ligados e sentindo um ao outro.

Segurei seu rosto entre minhas mãos e encostei nossas testas fazendo-me sentir sua respiração acelerada. Suspirei pesado contra sua face enquanto movia minha mão para tirar dois pequenos frascos de dentro do bolso de minha calça. Separei-me dele e mostrei o que trazia em mãos.

- Você está certo disso? - O medo entrecortou a minha voz.

- Eu só quero viver em paz com você. - Sorriu-me gentilmente.

Tinha preparado essas duas doses de cianureto há um bom tempo, prevendo nossa necessidade. Sabia que não haveria soluções para nossa vida. Fomos fadados a viver nesse inferno e mesmo que não fóssemos para um lugar melhor, qualquer lugar seria mais doce que aquele.

Deitamo-nos no chão de lado, um de frente para o outro com os frascos já abertos em mãos. Passei meu braço sob sua cabeça aconchegando-o ali, vendo-o suspirar em conforto.

- Vamos juntos?

- Sempre.

- E se não nos encontrarmos? E se formos separados? - Seu desespero não era contido.

- Não se preocupe. Aqueles que compartilham a mesma alma nunca serão separados.

Bebemos todo conteúdo do frasco. Enlaçamo-nos um ao outro de modo que nossos rostos ficassem perto para sentirmos a última respiração alheia. Vi-o fechar os olhos vagarosamente enquanto estampava um sorriso doce em sua face e sentia sua última lufada de ar bater contra meu rosto. O resto é só escuridão e uma eterna sensação de liberdade. Nos braços dele. Para sempre.