Como Água E Óleo escrita por Mayumi Sato


Capítulo 1
Moses in G Major


Notas iniciais do capítulo

"- Rod, eu sou um demônio, lembra-se? E é isso que nós, demônios, fazemos. Contratos."



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/260094/chapter/1

01.

Moses in G Major

Áustria, 1809.

Era uma noite de tormenta, quando os dois se encontraram pela primeira vez.

Uma chuva violenta caía, parecendo despedaçar o solo com sua força e velocidade torrencial. Alvos relâmpagos, por vezes, iluminavam um quarto, cuja lareira havia se apagado repentinamente. Os trovões ressoavam grandiosamente, como se esmagassem a existência de quaisquer outros sons.

Para Roderich, não poderia haver cenário mais clichê para um acontecimento como esse.

–... Bem, jovem mestre, eu sou um ser milenar e já recebi diversos nomes e classificações. “Um demônio”, esse seria o termo mais comumente utilizado, atualmente, para me designar. – disse a voz rouca de um vulto, ocultado pela escuridão, em um dos cantos do quarto do violinista. Não era possível, ao aristocrata, vê-lo com nitidez, mas era perceptível que seus olhos reluziam na penumbra, rubros como o sangue, e que um sorriso perverso surgia nos cantos de seus lábios.

Inicialmente, Roderich havia se assustado com aquela presença abrupta e estranha em seus aposentos. O seu violino, absolutamente, não poderia ser roubado! Tamanho foi seu medo que ele apenas pôde reagir defensivamente, encolhendo-se na extremidade oposta do quarto, agarrando um punhal, que ficava guardado na gaveta de sua cômoda, e ameaçando o intruso com uma força que existia apenas em suas palavras. Entretanto, quando a pergunta “Quem é você?!” foi feita, ele recebeu uma resposta deveras original.

Um demônio, huh?

Roderich não pôde duvidar daquela afirmação que em outra ocasião, apenas provocaria nele risos ou o receio de estar lidando com alguém mentalmente instável. Havia algo no semblante de seu visitante noturno que sugeria a veracidade do que ele dizia. Em resumo, aquele indivíduo, por alguma razão, era verdadeiramente similar a um demônio. Aquele pequeno sorriso cruel, aqueles olhos que tinham o brilho intenso e escarlate dos rubis e se destacavam mesmo no escuro, aquela presença que, por conta própria, inspirava em Roderich sentimentos contraditórios de fascínio e horror, somente poderiam pertencer a um ser assim.

A presente atmosfera também contribuía para a confirmação do que Roderich, costumeiramente, julgaria absurdo. Em meio à tão terrível tempestade, com relâmpagos e infinitas gotas frias rompendo a escuridão e o silêncio da noite, a paisagem sombria encobre a racionalidade humana e aproxima a realidade dos pesadelos. Logo, naquelas condições, o aristocrata não podia receber a visita daquele misterioso desconhecido que afirmava ser um demônio, com completa incredulidade.

Ainda estupefato e um tanto apreensivo com aquela resposta, o músico não se viu capaz de replicá-la e permaneceu em um silêncio inquieto, enquanto aguardava as próximas ações do invasor, ainda segurando firmemente seu punhal, com sua respiração acelerada e gélida.

– Não há a necessidade de tamanho receio, Rod. Eu vim aqui para ajudá-lo. – afirmou o estranho, em um tom casual, dando voltas pelo quarto, sem chegar a aproximar-se de Roderich – Eu estive o observando há algum tempo, jovem mestre...

– Se isso é verdade, a vida de um demônio parece-me muito mais monótona do que pensei.

Roderich não pôde evitar essa quase acidental declaração e arrependeu-se dela, no exato instante em que a concluiu. Céus. No que ele estivera pensando? Ele estava falando com um demônio e...!

– PFFF! O que há com essa reação, Rod?! – o demônio riu fartamente do comentário que, em teoria, deveria ofendê-lo. Ele parecia drasticamente menos ameaçador com sua mão cobrindo sua boca e seus olhos acumulando lágrimas de deboche, enquanto ele ria - Eu esperava um pouco mais de tensão dramática, nessa cena! Afinal, o incrível eu é o protagonista desse glorioso...!

– Por favor, revele logo o seu intento. – pediu Roderich, descobrindo que sua impaciência com aquele demônio era maior do que o receio que possuía quanto a ele.

Com essa polida solicitação, o demônio deteve-se por um momento, permitindo que seu sorriso tornasse a adquirir dimensões mais amplas e sombrias. Em seguida, ele retornou a caminhar pelo cômodo, mas, dessa vez, não de modo aleatório. Oh, de modo algum. Ele dirigia-se ao músico, com uma aproximação lenta, gradual e ininterrupta. Seus olhos vermelhos, preenchidos por um deleite maligno, passeavam, sinuosamente, por Roderich, predatórios e confiantes.

– Jovem mestre, você não está satisfeito com a forma como toca o violino, não é? – o demônio disse, diminuindo a breve distância entre os dois – Com o seu nível, você poderia ser um ótimo violinista. Um excelente violinista. No entanto, você nunca será um dos gênios. Um Beethoven ou um Mozart, quero dizer.

– Essa é uma premonição ou você está apenas sendo deliberadamente desagradável? – retrucou Roderich, um pouco ofendido, franzindo suas sobrancelhas e recuando até suas costas tocarem a parede.

– Você não quer tentar, Rod? – questionou o demônio, colocando um de seus punhos na parede, na qual estava o músico, de modo a prendê-lo entre seu braço e a cama. Ele estava tão próximo que Roderich podia ver detalhadamente a variação de tonalidades vermelhas existentes dentro de seus olhos. Tão próximo a ponto de provocar, no violinista, a sensação de que suas bocas quase se encostavam, sempre que ele falava. E ele continuava a falar. Em uma voz que, progressivamente, tornava-se mais baixa, grave e provocativa - Adquirir as capacidades que o tornarão capaz de fazer algo que nenhum violinista fez, anteriormente? Capacidades que o tornarão apto a executar as composições impossíveis que existem apenas em seus pensamentos?

As propostas extremamente atraentes do demônio e algo na atmosfera inebriante que envolvia a ambos atenuou a razão de Roderich que tinha a vívida impressão de estar envolto em uma densa névoa cinzenta. Os seus pensamentos, pelo menos, estavam.

– Como... C-Como eu faria isso? – ele indagou, com os olhos muito abertos.

– Rod, eu sou um demônio, lembra-se? E é isso que nós, demônios, fazemos. Contratos.

_____________________________________________________________________________

Itália, 1812

Uma pequena marca arroxeada surgia no pescoço de Roderich, em um ponto que Gilbert sugava, mordia e beijava vigorosamente, quando o músico, apesar de distraído com as inúmeras sensações que fluíam por seu corpo e com os arrepios que sentia a cada contato que sentia em sua pele, lembrou-se de que deveria interrompê-lo.

Ah. Seria péssimo interrompê-lo. Principalmente, quando ele acabara de encontrar uma porção especificamente sensível do pescoço de Roderich, que ainda não se recuperara inteiramente do torpor que sentira em seu orgasmo.

O real desejo do violinista era o de ignorar as suas preocupações racionais, envolver suas pernas na cintura de Gilbert e insistir por mais, contudo...

– Pare com isso.

Ele não poderia comportar-se de tal forma. O seu bom senso e orgulho jamais permitiriam.

Mais contrariado do que gostaria de exibir, Roderich empurrou levemente o peito de Gilbert, afastando-o de si. Em resposta, recebendo um olhar confuso e insatisfeito do mesmo.

– O que há, Rod?!

– Seu tolo. Você não possui qualquer autocontrole? Se você persistisse, acabaria deixando uma marca em meu pescoço.

– Que ingênuo da sua parte, presumir isso! Se eu não possuísse autocontrole, jovem mestre, você estaria com dezenas de marcas no seu corpo. – ele sorriu, em resposta, com aquele seu habitual ar provocativo que sempre provocava uma profunda irritação no músico.

– Gilbert, eu não estou brincando. – Roderich disse, com firmeza e severidade, apanhando seus óculos sobre sua cômoda e colocando-os em seu rosto. Ele voltou-se a Gilbert e, encarando-o com moderada gravidade e gelidez, prosseguiu a repreendê-lo- Eu já falei com você, a respeito dessas marcas. Você não pode deixá-las em um lugar visível. Eu não sou um homem casado e, se alguém as noticiasse, pensaria que eu estou tendo relações libidinosas com uma senhorita. Eu já estou farto de ser chamado de “Filho da bruxa” ou de “Violinista do diabo”, graças ao seu inconveniente aparecimento em uma das minhas apresentações, para divertir-se com o susto de um dos membros da plateia. Não quero ser considerado um devasso também!

– Meu caro aristocrata, você não poderia culpá-los por pensar assim. - Gilbert sorriu, com escárnio – Você é um violinista que possui um pacto com um demônio, nós estamos bem envolvidos no que você chamaria de “atividades lascivas” e, pensando nisso, a sua mãe não é exatamente uma senhora simpática...

– Cale-se, seu tolo! – dessa vez, ao empurrar Gilbert, ele não o fez com relutância ou delicadeza e acabou por desequilibrá-lo e fazê-lo cair da cama dos dois.

– Ei, Rod! O que é isso?! – protestou o demônio, ainda sentado no chão. Embora a queda, em si, não houvesse lhe provocado muita dor, ele não pôde evitar um susto com aquele incidente, e sentia-se envergonhado por encontrar-se em uma posição nada incrível. - O incrível eu se opõe à violência!

– Fique quieto. Eu fui forçado a agir assim. – respondeu Roderich, estoicamente, enquanto colocava a parte superior de suas vestes – Gilbert, as suas sentenças e ações precisam ser mais ponderadas. Nós conversamos, diversas vezes, sobre o seu inconveniente hábito de deixar marcas em mim e...

– É claro que eu deixo marcas. – Gilbert o interrompeu, bastante sério, com seu semblante denotando uma combinação entre aborrecimento e mágoa, como o de uma criança sofrendo um castigo - Você não concordou em usar uma aliança, como eu havia sugerido.

– Uma aliança! Como eu poderia usar uma aliança, sem possuir uma noiva? O que diriam ao meu respeito, se eu aparecesse com um anel de compromisso, quando supostamente não estou envolvido com ninguém?

– Por que se importar com o que dizem?! – Gilbert agarrou as cobertas da cama, grosseiramente, apoiando-se nela para inclinar-se em direção a Rod e golpeá-lo diretamente com seu olhar irascível - Você é o maior violinista da Europa, Rod! E será o maior de todos os tempos! Boatos não podem prejudicá-lo. Por que você está tão preocupado com isso? – seu tom de raiva e impaciência foi convertido em um repleto de cinismo e escárnio, quando ele prosseguiu em uma fala que tinha uma tonalidade ligeiramente musical e cáustica - Você não quer que a sua amada amiga de infância descubra que você está comprometido?

– Céus, Gilbert. Você poderia ser mais imaturo? Estou cansado de repetir tantas vezes o que digo a você. Não acredito que você ainda está chateado com o fato de que dediquei minhas seis sonatas para violino e guitarra à senhorita Elisaveta!

– É claro que eu estou chateado! – ele protestou, erguendo-se do chão e tornando-se a sentar na cama, perante Roderich - Como eu poderia não estar?! Você dedicou seis composições românticas a ela, Rod! – ele bateu seu punho fechado contra a cama, com violência, para enfatizar seu ponto, ao repeti-lo - Seis! E elas são tão românticas que eu quase enxergo corações, cupidos e nuvens róseas ao seu redor, quando as toco!- Gilbert abriu seus braços e os agitou, com um olhar escandalizado, gesticulando como se tentasse delimitar o espaço, em volta do músico, no qual estavam flutuando os elementos que citara.

– Eu admito que elas são um pouco românticas... – Roderich confessou, abaixando seu olhar, com um ar de forçada desafetação – Isso não é natural, considerando-se que a senhorita Elisaveta foi meu primeiro amor?

– Não! Não há nada de natural em compor sonatas românticas a uma pessoa, quando você está em um relacionamento com outra! O incrível eu também se opõe à poligamia, jovem mestre!

– Gilbert, nós não estamos em um relacionamento. Nós temos um contrato cujas condições tornam a nossa relação vagamente similar a um...

– Eu durmo com você, vivo com você e fiz uma promessa de estar sempre ao seu lado. Como nosso relacionamento é diferente de um casamento?

– Você não pode estar sendo sério. Gilbert, o único motivo pelo qual dormimos juntos seria porque foi essa a condição imposta por você para promover a melhoria do meu violino. E não fale da sua permanência ao meu lado, como se fosse uma escolha sua, movida puramente por sentimentos! Você precisa permanecer ao meu lado, pois não há outro modo de concretizar meu desejo, senão esse! Francamente. Ao fazer um contrato com um demônio, eu pensei que somente cederia a minha alma ao inferno e desfrutaria de minha vida e talentos recém-adquiridos, sem necessitar da sua companhia. Como eu poderia saber que o seu único poder seria o de manipular os corpos humanos, colocando-os em sincronia com o seu? Como eu poderia saber que você precisaria apresentar-se sempre comigo para que eu conseguisse executar as técnicas que nosso contrato possibilitava? Como eu poderia saber que você pediria condições tão ímpias e vergonhosas...?

– Pare de reclamar de suas próprias escolhas, jovem mestre. – Gilbert revirou os olhos, com os cantos de sua boca curvados em um “V” invertido – Eu entendo que sua timidez o impeça de confessar sua admiração eterna ao incrível eu, mas você não está sendo um tanto cínico ao fazer essas queixas? Eu me recordo perfeitamente bem da noite em que fizemos o contrato e da sua efusiva aceitação. Você até me perguntou se nós não poderíamos começar imediatamente!

– E-Eu já disse inúmeras vezes que eu estava me referindo às execuções no violino!

Kesesese! Claro que estava.

– D-De qualquer modo, o nosso acordo envolvia uma relação puramente física entre nós. Em nenhum momento, conferi-lhe o direito de intervir em minha vida amorosa.

Ao ouvir essa colocação, Gilbert deu um curto suspiro, abaixou seu rosto, erguendo somente seu olhar a Roderich e indagou, com muita calma e sobriedade:

– Jovem mestre, você está ciente de que eu irei embora, caso você se envolva com outra pessoa, não está?

– Você não faria isso. – o músico respondeu, com os olhos arregalados e um tom contido e trêmulo que não conseguia expressar a confiança que ele gostaria de possuir. Ele tentava manter-se impassível, para disfarçar o terror que aquela declaração provocara nele, mas suas réplicas, ainda assim, soaram forçadas e temerosas. - Eu não posso tocar sem você. Nós temos um contrato.

– Bem, eu sinto muito. Contratos possuem limites e esses são os meus. Eu não pretendo compartilhar o aristocrata que consegui com tanto esforço.

– Se o nosso o contrato o desagrada tanto, por que você não tenta fazer outros?

– Mesmo se eu quisesse, eu não poderia! – o demônio exclamou, impaciente - Você sabe muito bem que eu não possuo muitas oportunidades para cortejar outras pessoas, quando o nosso acordo não permite que eu saia do seu lado!

– Ah, mesmo?

– O que há com esse sorriso, jovem mestre? – indagou Gilbert, com algum aborrecimento, enquanto puxava e apertava suavemente uma das bochechas de Roderich. Com essa acusação, o músico prontamente desfez o discreto sorriso vitorioso, que veio acidentalmente ao seu rosto.

– Eu não estou sorrindo.

– Você estava.

– Esse é um engano seu.

Ao invés de persistir em pressionar a bochecha de Roderich, Gilbert, aos poucos, soltou sua mão e passou a descê-la e subi-la, delicadamente, pelo rosto do violinista, provocando nesse a angustiante sensação de que o vulto de um contato passava por sua pele.

– É injusto que você possa ser o único a me monopolizar. – reclamou o demônio, contrariado, franzindo as sobrancelhas e observando Roderich com intensidade e compenetração.

– Eu nunca apresentei o desejo de monopolizá-lo. Em fatos, se você encontrasse outra vítima, seria bem aprazível para mim. Eu teria mais tranquilidade em minha rotina e...

–... Poderia flertar mais com a senhorita Elisaveta, não é? – Gilbert complementou, asperamente.

– Você ainda está pensando nisso?!

– Caso você não tenha percebido, esse é o tema de nossa discussão, jovem mestre!

– Não, o tema de nossa discussão é “Pare de deixar essas marcas que possuem um potencial para destruir a minha reputação”!

– Se você está tão preocupado com a sua reputação, pare de usar vestes negras em cada apresentação, como um vampiro ou um mago das sombras! As pessoas também reparam nisso, Rod!

– Eu uso roupas pretas, pois elas aparentam estar sujas com menos frequência! É uma questão de comodidade! No seu caso, você não possui nenhum motivo para deixar marcas em mim!

Essa frase final fez o demônio chegar aos seus limites. Ela gerou uma explosão, dentro de Gilbert, e ele não mais comediu suas palavras, ao exclamar, torrencialmente, com toda a veracidade e intensidade de seu coração:

– É lógico que eu tenho! – ele segurou o rosto de Roderich, firmemente, com as duas mãos - Como eu poderia reagir de outro modo, Rod?! Eu amo você! Desesperadamente! Eu sou completamente louco por você! Eu te amo tanto que mal sei como aguento meus próprios sentimentos!

Aquela não era a primeira vez em que Roderich ouvia uma declaração, proveniente de Gilbert e, certamente, não seria a última. Não seria estranho que ele conseguisse preservar sua serenidade e controle ao escutá-las, visto que ele já deveria estar acostumado com esse fenômeno. No entanto, a ferocidade e fervor do olhar de Gilbert, a forma como ele segurava seu rosto e aquelas declarações... Céus. Aquelas declarações....Quem poderia conter seu constrangimento e nervosismo quando aquele tolo agia assim?!

– P-Pa...P-Pare c-com isso!- ele exigiu, tentando, inutilmente, desvencilhar-se de Gilbert, encolhendo seus ombros e empenhando-se para que sua respiração retornasse ao ritmo normal, com seu rosto muito vermelho - E-Eu não sei ao que você se refere!

– Você quer que eu explique ao que estou me referindo? – ele abrandou-se, mantendo, no entanto, uma fúria e urgência contida que ainda eram extremamente perceptíveis - Pois bem. Diga-me, jovem mestre, como eu devo lidar com os meus sentimentos de frustração e raiva, quando a pessoa que eu amo, dedica seis sonatas românticas a outra pessoa. Como eu devo lidar com o fato de que a pessoa que eu amo, sequer correspondeu às minhas declarações, mas faz composições repletas de amor para uma garota que não vê há anos? O que eu devo fazer com os meus sentimentos, Rod? Engoli-los?

Roderich inspirou profundamente.

Ele precisava se acalmar. Seria um erro, dar uma resposta a Gilbert, enquanto seu coração batia descompassadamente. Seria um erro, respondê-lo, quando, por mais veloz que estivesse sua respiração, ele mal conseguia preencher seus pulmões e sentia uma necessidade constante de suspirar.

Ele inspirou, inspirou e inspirou.

E o seu coração ainda batia tão fortemente quanto antes.

Ele inspirou mais uma vez.

E mesmo com seu coração ainda acelerado, ele conseguiu recompor-se e conter-se:

– E-Essa não é uma ocasião oportuna para discutirmos isso... - Roderich disse, apressadamente, em um necessário desvio de assunto, levantando-se da cama para vestir a parte inferior de suas roupas e trajar seu casaco. - E-Eu tenho uma apresentação, agora.

– E quando será uma ocasião oportuna para discutirmos isso?! - Gilbert reclamou, apesar de também ter começado a trajar suas vestes, de uma forma rápida e desajeitada - Nós sempre estamos juntos e ela nunca aparece! Pare de ser covarde, Rod, e decida-se logo! O que exatamente você espera de mim?! Eu estou farto da sua ambiguidade!

– Você é um estúpido!

– E você é um aristocrata mimado!

– Gilbert, você é um tolo insensível, imaturo e intratável! Eu poderia citar os seus defeitos por toda uma tarde, mas precisamos parar, pois temos uma apresentação! E não cogite em reclamar! Nós acabamos de... – ele abaixou o olhar, hesitando quanto à forma como deveria concluir sua frase - cumprir a minha parte do contrato! Três vezes, na verdade! – ele adicionou, ruborizado - Você me deve uma excelente apresentação, então pare de reclamar e concentre-se somente nela!

Essa não foi uma solicitação e, sim, uma exigência e, a despeito de suas queixas, Gilbert não poderia desobedecê-la. Ele teve que guardar seus protestos e emoções para uma ocasião mais oportuna, calar-se e continuar a se vestir para a apresentação.

Roderich cumpriu sua parte do contrato e Gilbert deveria cumprir a dele.

Afinal, como o aristocrata evidenciava, essa era a essência do relacionamento dos dois.

Um contrato.

– Eu sou o insensível, não é? – murmurou Gilbert, vestindo seu casco e deixando-o cair sobre seus ombros, pesadamente.

– Como disse?

– Esqueça.

_____________________________________________________________________________

Para Gilbert, não era difícil executar, no violino, as técnicas que pareciam tão espantosas ao jovem mestre e seu público. Ele, literalmente, tinha séculos de prática. Gilbert assistira às apresentações de Vivaldi, de Corelli e de Giovanni Piani. Ele conhecia o instrumento, desde seus primórdios, e era mais familiarizado com ele do que qualquer mortal poderia ser.

Apesar de sua dedicação a aperfeiçoar suas execuções e compreender mais intimamente o violino, Gilbert sempre considerara o acúmulo de conhecimentos sobre aquele instrumento de cordas, como um passatempo e nunca pensou que ele serviria a um propósito seu. Ele não poderia tornar-se um violinista, pois não pertencia ao mundo dos humanos e sua aparência imediatamente delataria isso. Ele também nunca cogitou em fazer um acordo com um músico. Embora, nos períodos musicais que vivenciara, uma grande produção de peças de qualidade tenha sido produzida, elas eram muito diferentes do tipo que ele gostaria tocar. Com todas as suas habilidades de performance, Gilbert não se contentaria em tocar peças tão simples em suas técnicas, quanto aquelas que os humanos haviam produzido até então. Ele gostaria de tocar composições mais instigantes e desafiadoras do que aquelas que ele vira surgir, durante os séculos e, infelizmente, como ainda não haviam sido criadas peças dignas de serem tocadas por alguém tão incrível, Gilbert quase se conformara com um futuro no qual sua relação com o violino tendesse a um paralelismo.

Ele pensava dessa forma até o instante em que conheceu o Rod.

A primeira vez em que ele viu Roderich foi durante uma de suas apresentações. Naquela data, havia um longo tempo em que ele não ia uma apresentação de cordas e, ao saber que haveria uma, na cidade na qual ele estava estabelecido, pareceu-lhe uma boa ideia assisti-la.

Para Gilbert, era engraçado recordar que sua impressão inicial do músico que se apresentaria não foi nada além de “Céus, esse aristocrata possui a aparência mais aristocrática que já vi!” e de uma contida vontade de rir das maneiras excessivamente sérias daquele violinista.

Gilbert não cogitara que a apresentação daquele jovem mestre exerceria um apelo tão grande sobre ele.

O violino de Roderich era diferente do que ele esperava. Era diferente de todos os violinos que ele ouvira, anteriormente. Era tão único, fantástico e surpreendente que, ao assisti-lo, Gilbert perdeu inteiramente seu fôlego e sua capacidade de se mover e de pensar. Ele permaneceu, durante toda a apresentação, em um estado de atônita paralisação e sua mente parecia mergulhada em branco. A música, em um fluxo perpétuo, vinha às suas percepções e seu interior, parecendo pulsar nele, como um segundo coração.

Aquele era o violinista que ele precisava. Aquelas eram as composições que ele gostaria de tocar. Apesar de Roderich não possuir as habilidades que necessitava para executar o que idealizava em sua mente e, devido a essa deficiência, cometer diversos erros, Gilbert estava certo que uma parceria entre os dois teria excelentes resultados.

Roderich Eldestein possuía uma rica imaginação e ideias inovadoras. Gilbert Beilschmidt possuía o domínio das complicadas técnicas que seriam necessárias para que as composições daquele aristocrata fossem tocadas. Sob uma óptica puramente musical, eles complementavam-se perfeitamente.

Admiração, curiosidade e uma tênue atração física. Esses foram os primeiros sentimentos de Gilbert em relação a Rod e foram esses que o incitaram a fazer seu acordo com o jovem mestre. Ele não previra, em nenhum instante, a mudança que esses sentimentos sofreriam e não ponderara sobre a possibilidade dessa mudança ao propor seu contrato.

“Uma peculiar diversão temporária”. Era assim que Gilbert percebia o relacionamento dos dois, a princípio. O seu contratante era uma pessoa atraente, com modos que podiam ser considerados como hilários e com uma aptidão para escrever música que em muito convinha para seu entretenimento. A convivência dos dois certamente serviria como uma distração agradável a Gilbert por algum tempo. Esse era o seu pensamento.

No entanto, como a passagem natural das estações ou como as gradativas variações cromáticas do céu no decorrer de um dia, os sentimentos dele, que eram tão simples e rarefeitos, começaram a adquirir uma inesperada profundidade, sem que ele noticiasse isso.

Essas mudanças não foram abruptas, apressadas ou imperativas. Elas se acumularam, sutilmente, em seu coração e ele somente as percebeu quando já era tarde demais, para desvencilhar-se delas.

Aos poucos, detalhes em Roderich que, antes, eram considerados insignificantes passaram a receber a atenção de Gilbert, como, por exemplo, o discreto, tímido e surpreendentemente adorável sorriso que aquele aristocrata raramente exibia.

Roderich possuía olhos de um violeta penetrante e o demônio que o observava passou a tomar gosto em perceber as variações em seus reflexos. Ele gostava de seu olhar tímido, aborrecido, reflexivo, determinado, sarcástico e, especialmente, adorava seu olhar, quando esse estava verdadeiramente feliz.

Roderich, por alguma razão, sempre possuía um aroma vagamente adocicado. Talvez ele se devesse a frequência com a qual o aristocrata preparava doces. Talvez ele fosse um estranho traço biológico daquele jovem mestre – o que não seria espantoso, vindo dele, visto que a cor dos olhos dele também era particularmente incomum para um humano. O fato é que Gilbert gostava disso. Ele apreciava esse traço de Roderich, quando o aristocrata estava cozinhando e Gilbert o abraçava por trás, podendo sentir aquele aroma que lhe provocava sentimentos mornos e confortáveis. Ele também o apreciava, quando os dois estavam em uma cama e esse mesmo aroma lhe provocava um instinto predatório de morder a pele de Roderich, prová-la e ouvir gemidos igualmente doces em resposta às suas ações.

Roderich possuía uma voz que sempre parecia agradável de ser escutada. Mesmo que ela estivesse impaciente, irritada ou gélida, Gilbert gostava de ouvi-la. Essa era uma das várias razões pelas quais ele adorava dialogar com aquele jovem mestre. Claro, havia momentos em que os efeitos daquela voz eram especialmente intensos em Gilbert. Ele se sentia péssimo ao perceber que ela continha certa tristeza, sentia-se preenchido por um orgulho infindável ao perceber que ela continha um indisfarçável prazer e desejo, provocados por ele, e sentia seu coração disparar descompassadamente ao ouvi-la dizer seu nome.

Ao perceber que passara a sentir-se agitado com a mera menção de seu nome, como uma donzela inocente em um romance açucarado, Gilbert realizou que estava irremediavelmente perdido. Ele amava aquele aristocrata. Terrivelmente. Ele o amava de todo coração, com cada fibra de seu ser.

Em romances, a sequência lógica envolveria uma declaração de Gilbert e uma resposta positiva do aristocrata que admitiria sempre ter amado e admirado alguém tão incrível. Em seguida, os dois noivariam, trocariam mais juras de amor eterno e correriam de mãos dadas por um campo de girassóis.

No entanto, não foi isso o que ocorreu. Embora Gilbert tenha se declarado para Roderich, ele não recebeu uma resposta positiva. Tampouco, recebeu uma rejeição. O aristocrata arranjou seus meios de esquivar-se de uma decisão e, através de desvios de assunto e réplicas vagas, ele conseguiu manter-se em uma posição de neutralidade, a qual era cômoda para ele, mas péssima para Gilbert.

Roderich Eldestein era ambíguo. Angustiantemente ambíguo. Mesmo com suas diversas experiências amorosas, em séculos de existência, Gilbert ainda não conseguia entender o que ele queria.

Roderich reclamava das marcas que Gilbert deixava nele.

Roderich correspondia aos contatos físicos de Gilbert com uma urgência e fervor que não pareciam naturais em alguém que, supostamente, era indiferente ao seu parceiro.

Roderich dizia que o relacionamento de ambos limitava-se a um contrato.

Roderich, o inexpressivo Roderich Eldestein, reagia às palavras e gestos de Gilbert com um comportamento que jamais exibiria, perante outras pessoas. E graças a isso, Gilbert podia ver diversas faces de seu amado jovem mestre que eram exclusivamente suas. Roderich apenas corava, gaguejava, berrava, chorava e ria, quando estava a sua frente.

Por fim, ele nunca disse que amava Gilbert. Contudo, também nunca disse que não o amava.

_____________________________________________________________________________

Em resumo, a culpa era inteiramente daquele aristocrata.

Gilbert estava ocupado e ciente de que não deveria deter-se em distrações, quando ele precisava concentrar-se não apenas em imitar no ar, os movimentos necessários para a execução da “Moisés em G maior” - utilizando-se somente de sua memória e conhecimentos sobre o instrumento para imitar tão perfeitamente a execução da peça, como se tocasse um violino invisível – como também necessitava focar-se para transmitir esses movimentos com precisão ao corpo de Roderich.

Não era fácil manipular corpos humanos, especialmente, de forma tão detalhada e, ainda por cima, envolvendo uma severa preocupação com a sincronia entre eles. Era, portanto, necessário que Gilbert parasse de pensar na briga dos dois, naquelas estúpidas sonatas para violino e guitarra e na infinita ingratidão do jovem mestre, para centrar-se em sua tarefa e executá-la incrivelmente.

E seria bem mais fácil fazer isso, se o semblante indiferente daquele jovem mestre, não inspirasse, em um demônio bastante ofendido e ressentido, o acumulativo crescimento de uma cólera, líquida e ardente como o magma.

Era um tanto irritante, para Gilbert, ver o músico tocando, em perfeita serenidade, quando os dois haviam acabado de ter um sério conflito que deveria, ao menos, tê-lo afetado minimamente.

Fora a revolta decorrente dos insultos que recebera e do insulto que tomava com a expressão de gélida apatia daquele aristocrata que o motivara a relembrar-se das diversas fases do relacionamento deles e, sem cessar sua atenção em cumprir sua parte do acordo, ele pôde, lentamente, alcançar a inevitável conclusão de que Roderich, definitivamente, era o culpado pela briga que tiveram.

Por que Roderich Eldestein era tão indeciso?! Por que ele tinha que bagunçar a mente de Gilbert dessa forma, ao invés de simplesmente decidir e anunciar o que queria?!

Sim, Gilbert sabia que, na remota possibilidade de que Roderich o correspondesse, não seria uma experiência fácil, para ele, assumir seus próprios sentimentos. Seria apenas natural que ele se sentisse inseguro, quanto à relação dos dois, pois, teoricamente, ela era bastante volátil, em sua percepção. Roderich Eldestein necessitava estar com Gilbert. O violino criava uma ligação imprescindível entre os dois, da qual o músico dependeria, mesmo que passasse a odiar seu demônio. Ele precisava de Gilbert financeiramente e artisticamente, logo, não eram necessários enlaces emocionais para que ele desejasse mantê-lo por perto. Gilbert, por sua vez, encontrava-se em uma situação bastante diferente. Com exceção ao afeto e interesse que sentia por Roderich, nada o prendia a ele. O que ele pedira do músico, em seu acordo, poderia ser obtido facilmente com outros homens ou mulheres. Ele não dependia de Roderich ou necessitava dele. Era infinitamente mais fácil, para ele, deixar o aristocrata do que o inverso.

Enfim, Gilbert sabia que alguma resistência de Roderich deveria ser esperada e ele poderia compreendê-la. O que ele não podia aguentar era aquela ambiguidade que parecia não ter outro propósito, além de torturá-lo!

Mesmo em sua infinita complacência e generosidade, a paciência de Gilbert possuía alguns limites. Dentre eles, estava ver a pessoa que ainda não dera uma resposta definitiva a uma série de declarações sinceras e terrivelmente constrangedoras que ele fizera, dedicando composições românticas a um amor de infância, com uma calma e casualidade inabaláveis!

Gilbert não culpava-se por possuir um sentimento tão instintivo e imaturo quanto seus ciúmes em relação ao jovem mestre. Gilbert tivera outros relacionamentos e apaixonara-se algumas vezes, mas esses dois fatos nunca haviam ocorrido simultaneamente até seu encontro com Roderich. Era compreensível que ele tivesse tanto medo de perder a única relação séria que ele tivera, em séculos de existência, e que essas emoções, em um ser desacostumado a lidar com elas, fossem convertidas em uma ardente possessividade que o levava a marcar seu aristocrata sempre que podia.

Era curioso que Roderich Eldestein reclamasse das marcas, quando ele dera motivos para Gilbert deixá-las, de uma forma tão evidente, irritante e espontânea que, em muito, parecia-se com uma provocação! Seis sonatas para violino e guitarra, dedicadas à senhorita Elisaveta! Seis! O máximo que Gilbert obtivera de Roderich, em anos de relacionamento, fora a autorização para os dois usarem algumas posições sexuais que ele propusera!

E o aristocrata parecia perfeitamente tranquilo com sua decisão! Ele estava tão calmo, confiante e arrogante, tocando aquele violino, como se nada no mundo pudesse afetá-lo. Era injusto que ele estivesse tão sereno quanto ao conflito entre eles, enquanto Gilbert sentia-se tão mal que seu coração parecia arder. O jovem mestre estava tão distraído com seu violino, sua apresentação e seu "Moisés em G maior" que mal parecia sentir a presença de Gilbert naquele palco. O violinista não lançara sequer um relance a ele! Ele nem perceberia, caso Gilbert o encarasse, berrasse ofensas contra ele ou...!

...Gilbert deu um pequeno sorriso. Uma ideia ligeiramente maligna ocorreu-lhe.

Então, o Roderich estava distraído demais para noticiá-lo, huh? Pois bem. Ele poderia utilizar-se disso.

O primeiro passo de sua – ao seu ver, “brilhante” - vingança foi o simples cessar de seus movimentos. Gilbert parou de tocar um violino imaginário e, consequentemente, deixou Roderich, por conta própria, com uma série de notas e técnicas tão difíceis a executar que ele sequer teve tempo para ter uma reação apropriada àquela brincadeira desagradável. Percebendo que seus movimentos haviam deixado de ser espontâneos e que aquele estúpido Gilbert havia o colocado em uma posição severamente delicada, Roderich teve apenas tempo para franzir suas sobrancelhas, em irritação, e esforçar-se para prosseguir executando sua peça. Ainda que as habilidades de Gilbert fossem imensamente superiores às suas, ele podia manter-se em um ritmo relativamente bom, sem precisar dele, pois conhecia muito bem suas próprias composições e estava longe de ser um violinista inexperiente. Depois, ele pensaria em uma desculpa convincente para a queda na qualidade de sua execução. Algo como “Eu estava doente” ou “Eu me distraí, pensando em problemas pessoais”. No momento, ele precisava focar-se ao máximo para conseguir continuar a tocar, sem cometer erros.

O desespero de Roderich e o consequente direcionamento de toda a sua atenção às suas tentativas de fazer uma boa apresentação da “Moisés em G maior”, possibilitaram a Gilbert executar a segunda parte de seu plano. Aos poucos, ele aproximou-se sorrateiramente do aristocrata, tomando cuidado para que esse não noticiasse sua presença, até que finalmente obtivesse uma oportunidade de tocar em seu violino. Quando isso ocorreu, Roderich finalmente realizou sua proximidade e voltou seu rosto a ele, estarrecido e furioso, mas era tarde demais para impedi-lo.

Com um único movimento, rápido e preciso, de sua mão direita, Gilbert arrebentou duas cordas do instrumento, sem ao menos necessitar tocá-las. Ele teve que conter-se muito para não gargalhar do olhar arregalado e chocado do jovem mestre ao ocorrer o que havia acontecido.

Como o esperado, Roderich parou de tocar. Mesmo um violinista virtuosístico não teria condições de tocar com duas cordas a menos. Ele estava prestes a abaixar seu violino e desculpar-se para a plateia, quando, subitamente, sentiu suas mãos movendo-se por conta própria para seu arco e seu instrumento.

Ele lançou um olhar furioso a Gilbert, por cima de seu ombro, ao realizar o que o demônio pretendia com aquilo, mas, em resposta, obteve apenas risos. Gilbert estava divertindo-se fartamente com a terceira e última parte de seu plano.

Toda a plateia assistiu, mortificada, a Roderich Eldestein executando a “Moisés em G maior”, uma composição bastante complexa em sua estrutura técnica, em um violino de somente duas cordas. E ele nem olhava para o violino, ao fazer isso! Por alguma razão, ele dirigia um olhar constante e irascível a um ponto, em específico, no ar, como se encarasse alguém. Além disso, diriam mais tarde, as testemunhas, houve quem escutasse risos perversos, vindos de uma fonte desconhecida, durante essa parte da apresentação!

Se aquele músico não tivesse um pacto com o demônio, quem mais teria?!

_____________________________________________________________________________

Durante todo o retorno para casa, Roderich teve que reservar e conter sua latente e pulsante irritação. Ele não poderia gritar com Gilbert, enquanto os dois estavam em público. O demônio, por sua vez, não possuía as mesmas limitações e, para o imenso desagrado e aborrecimento do músico, riu durante todo o percurso até o quarto dos dois.

Aquele tolo!

Assim que a porta foi trancada, Roderich finalmente encontrou espaço para externar sua fúria e o fez com a intensidade e fôlego do início de um longo discurso:

– O que você pensa ter feito, seu estúpido?! Eu não entendo o seu prazer em destruir a minha reputação, quando você conhece as minhas...!

Ele ainda tinha muito, muito a dizer, mas foi interrompido por braços envolvendo suas costas e risos quase inocentes interpelando suas sentenças. Gilbert estava o abraçando e rindo, verdadeiramente feliz, sem que Roderich pudesse imaginar a razão pela qual ele estava sendo tão afetuoso e estivesse com um humor tão bom. Aquela mudança nos modos dele fora inesperada. Um tanto incompreensível. Não absolutamente desagradável, mas...!

– S-Solte-me, seu tolo...! N-Não pense que eu tomarei a sua brincadeira como uma mera...! H-Hum! P-Pare de me apertar...!

O músico estava - parcialmente - determinado a não perdoar Gilbert com tanta facilidade.

Gilbert, por sua vez, já havia o perdoado completamente. A sua ampla diversão com as reações do aristocrata e da plateia à sua pequena artimanha, durante a apresentação, garantiu-lhe tantos risos que seu mal-estar com a briga que os dois tiveram e com o ciúmes que ele ainda sentia da senhorita Elisaveta fora dissipado e, no momento, ele apenas desejava abraçar, abraçar e abraçar aquele enraivecido aristocrata.

A persistência dele em abraçá-lo, enquanto Roderich debatia-se em seus braços, acabou provocando um desequilíbrio em ambos e, após desajeitadamente recuar alguns passos para trás em uma tentativa de recuperar sua estabilidade, Gilbert caiu sobre a cama, com o aristocrata acima de si.

Roderich e Gilbert afundaram em um desconfortável silêncio ao perceberem que sua nova posição era ainda mais constrangedora do que a anterior. Eles estavam muito próximos um do outro. Demasiadamente próximos. Eles podiam sentir o fôlego acelerado e quente de ambos se misturarem. Eles podiam quase mergulhar nos olhos um do outro. O olhar de Gilbert era repleto de uma profunda fascinação e afeto, pois ele não podia deixar de perceber, a uma curta distância, quão encantadora era a aparência do seu jovem mestre. O olhar de Roderich era repleto de uma mistura de irritação e constrangimento, pois ele queria manter-se bravo com Gilbert e sabia que deveria manter-se bravo com Gilbert, mas seus pensamentos estavam começando a ser tomados por sensações mais palpáveis e inebriantes as quais ele estava certo que não queria ou deveria sentir. Sensações trazidas pelas mãos de Gilbert passeando por suas costas, pelo contato entre o corpo dos dois e pela forma como os olhos dele pareciam tentar absorvê-lo.

Roderich supôs que deveria dizer alguma coisa para cessar aquela cena embaraçosa e tentou, por diversas vezes, repreender Gilbert e exigir que aquele demônio se afastasse dele. No entanto, ele viu-se incapaz de completar qualquer sentença. Elas se perdiam e se desmanchavam em expirações fundas, antes de serem concluídas. Ele não conseguiu articular uma única frase que fizesse sentido.

Gilbert, portanto, foi o primeiro a falar e a agir.

Antes que Roderich pudesse protestar, ele puxou-o, para si, encostando seu rosto no ombro do músico, em um novo abraço, e murmurou em uma voz lamuriosa e bastante cansada:

– Não vamos mais brigar, Rod... – ele solicitou, em um grave sopro de voz que, definitivamente, não seria noticiado por Roderich, caso ambos não estivessem tão próximos.

Esse tom exausto surpreendeu o aristocrata, visto que ele considerava-se como aquele que deveria estar cansado dentre eles. Havia, claro, a possibilidade que Gilbert estivesse fingindo estar indisposto, apenas para evitar as censuras que ele merecia, todavia, o músico a julgava pouco provável. Ele conhecia Gilbert Beilschimdt o suficiente para perceber as oscilações de seu humor, através de sinais extremamente sutis. O pedido dele havia sido sincero, assim como sua exaustão.

Qual seria a causa da fadiga dele?, era a pergunta que borbulhava na mente de Roderich. O cansaço dele, afinal, parecia mais profundo e melancólico que o seu, o que lhe parecia injustificável uma vez que o músico recebeu bem mais aborrecimentos do que esse. Certo, certo. Os dois tiveram uma briga, seguida por uma complicada apresentação, e essa sequência de acontecimentos fora consideravelmente exaustiva, contudo, se o cansaço de Gilbert se derivasse apenas desses fatos, ele não deveria estar tão cansado quanto Roderich, ao invés de parecer estar em um estado mais miserável que o dele?

A única razão que Roderich Eldestein poderia atribuir para a diferença entre a disposição dos dois seria a presença contínua de uma preocupação desnecessária em Gilbert. A preocupação que resultara no conflito entre eles, ainda incomodava o demônio, apesar de suas tentativas de camuflar seus receios e emoções importunas para que ambos se reconciliassem.

Gilbert Beilschmidt não estava cansado de sua apresentação ou de suas brigas. Ele estava cansado de lidar com suas inseguranças e ciúmes quanto à relação entre Roderich e sua amiga de infância, a senhorita Elisaveta. Ele tentava disfarçar um sentimento que nem deveria possuir, ao invés de simplesmente compreender que aquilo não era necessário e persistia se incomodando, e perturbando a Roderich, com algo que não se mostrava prescindível.

Céus. Quão tolo ele poderia ser?

Ignorando o encaminhamento das reflexões do aristocrata, Gilbert sentia-se bastante confortável na posição em que estava acomodado e extremamente satisfeito com a ausência de tentativas de afastamento que seriam muito esperadas daquele estoico jovem mestre. Ele não esperava mais do que aquilo. Ele não tinha expectativas que Roderich retribuísse o abraço, ou que o coração de Roderich acelerasse de repente e ele começasse a realizar que o seu verdadeiro amor esteve com ele, durante todos aqueles três anos, nem mesmo que Roderich, subitamente, se aproximasse da lateral de seu rosto e começasse a murmurar uma série de declarações arrebatadas de amor e propostas eróticas. Todos esses acontecimentos seriam incríveis, claro, mas eles eram pouco prováveis e Gilbert era incrível demais para ter fantasias patéticas de eventos que não aconteceriam.

A única coisa que Gilbert queria, naquele instante, era permanecer mais um tempo daquela forma. Alojado sob Roderich, envolvendo-o em seus braços e percebendo que seu corpo relaxava a cada respiração. Ele estava terrivelmente cansado do turbilhão de emoções exaustivas que tivera, durante o dia, e, agora, ele apenas queria esquecer-se delas e apenas focar-se no lado confortável e agradável de sua convivência com o aristocrata. Desde que Rod não se afastasse dele, Gilbert estaria em perfeito contentamento com aquela posição.

Por não ter quaisquer expectativas, foi um grande susto para ele, perceber que haviam braços envolvendo suas costas e que a pressão existente entre os corpos dos dois havia aumentado, de repente.

Espere. Espere. Espere.

O Rod estava...? Bem, não era muito provável nem tão impossível, mas o Rod estava...?

Gilbert Beilschmidt piscou seus olhos, rapidamente, muito atordoado com o fato de que Roderich estava retribuindo seu abraço para sentir-se feliz ou constrangido com aquela rara e tênue demonstração de afeto. Ele estava chocado. Pasmo, na verdade!

O Rod estava... Ele estava bem? Ele estava percebendo o que estava fazendo?

– E-Ei, jovem mestre... – Gilbert murmurou, contraindo seus ombros, em um movimento involuntário, e corando terrivelmente com a iniciativa inesperada de Roderich. Ele estava extremamente embaraçado. Estava embaraçado a ponto de sentir-se ainda mais embaraçado com seu próprio constrangimento!

Roderich, no entanto, não parecia compartilhar do mesmo constrangimento, confusão ou espanto de Gilbert e, com muita calma, disse em uma voz composta e, apesar de repreensiva, ligeiramente afetuosa:

– Seu tolo.

– Hã?

Roderich ergueu-se ligeiramente, permitindo que os dois se entreolhassem por um momento, antes de segurar seu rosto, fechar seus olhos e inclinar-se para beijá-lo.

...

Como aquilo...?! Desde quando ele...?! Por que ele...?! BAH! Que se danasse!

Sem conseguir ter qualquer ideia das razões que motivaram essa drástica mudança no comportamento habitual de Roderich, Gilbert concluiu que seria impossível descobri-las, enquanto os lábios do Rod agiam sobre os seus, exigentes, ávidos, quentes e angustiantemente macios. Ele prontamente desistiu de inferi-las e retornou aquele contato com mais sede e urgência, deixando que suas mãos descessem à cintura de Roderich, agarrando-a possessivamente, e pressionando, alternadamente, língua e dentes no lábio inferior do Roderich, em uma efusiva exigência que sua boca se entreabrisse e permitisse a passagem dele.

Um som extremamente familiar foi produzido na garganta de Roderich, levando ao surgimento do que seria o início de um sorriso arrogante em um dos cantos dos lábios de Gilbert. Todavia, quando ele sentiu que o aristocrata, finalmente, iria permitir que Gilbert o beijasse como queria, o músico, novamente, comportou-se imprevisivelmente e tornou a erguer-se, separando-se dele.

A nova distância entre os dois ainda era bastante diminuta, mas era suficiente para deixar o demônio frustrado, pois ele desconhecia se as intenções de Roderich eram de aumentá-la ou reduzi-la e a primeira opção seria bem mais tangível, tratando-se do Rod. Principalmente, se levado em consideração que seu rosto vermelho, sobrancelhas franzidas e olhar abaixado não pareciam bons sinais a Gilbert. Ele certamente começaria com o velho discurso “Esse gesto é suficiente para você, não é? Por favor, pare de me incomodar, pois não me sinto a vontade com essas atividades lascivas e espero evitá-las, quando possível.”...!

– Eu realmente não posso entender por que você sente tantos ciúmes ao meu respeito... – Roderich disse, de repente, para o assombro de Gilbert, desviando seu rosto ligeiramente para o lado, como se quisesse evitar que ele o visse. Essa confissão veio em um tom verdadeiramente confuso, aborrecido e ligeiramente tímido e cada palavra fora pronunciada com tanta lentidão, e em tão baixo volume, que parecia custar à garganta do violinista produzir cada som. – Você acredita sinceramente na possibilidade de que, um dia, eu decida cortejar a senhorita Elisaveta?

– Correção, jovem mestre! Você já está a cortejando, com as suas seis sonatas! Eu tenho medo de que, um dia, você perca a razão, deixe de perceber que eu sou infinitamente mais incrível do que ela e decida se...!

– Você é um idiota. – Roderich declarou, francamente, com seus olhos fechados, dando um breve suspiro cansado. Porém, antes que Gilbert protestasse contra aquele insulto, o violinista reclinou-se e o beijou novamente. Um contato mais rápido e delicado, contudo ainda extremamente doce. Ao recebê-lo, Gilbert sentiu todos os seus protestos serem absorvidos por seu corpo e não mais conseguiu emitir nenhum som.

– A senhorita Elisaveta foi o meu primeiro amor e uma ótima amiga. Eu pensei que meus sentimentos por ela seriam uma boa inspiração para minhas composições. Ao produzir minhas sonatas, eu a utilizei como meu objeto artístico e avaliei que seria justo dedicá-las a ela, como um agradecimento pelas nossas experiências passadas e por ter sido minha fonte de inspiração em meu projeto. Não houve nada além disso, dentre minhas motivações. Eu não pretendia cortejá-la ou contemplar o nosso passado. Somente concluí que o sentimento do primeiro amor seria uma ótima inspiração para algumas de minhas composições e o utilizei. – ele agitou seu rosto, para os lados, vagamente insatisfeito - Como eu poderia imaginar que você iria conferir tantas dimensões a essa escolha...?

– É claro que eu confiro dimensões a essa escolha! Não faça com que ela pareça tão arbitrária, Rod! Há um significado, quando você dedica composições a alguém! Se você fosse o tipo de músico que compõe para pessoas que o inspiraram, pessoas que lhe prestaram algum serviço ou pessoas que você conheceu, eu poderia acreditar que a sua decisão não teve nenhuma motivação em especial! No entanto, você nunca, nunca dedicou composições a alguém e, de repente, a sua primeira dedicatória é para uma donzela que foi o seu primeiro amor?! Droga, Rod! Como você espera que eu interprete isso?! Você sequer dedicou uma composição ao incrível eu, mas...! – Gilbert tinha muito a dizer e continuaria a reclamar, se pudesse, mas os lábios de Roderich encostaram-se aos seus mais uma vez, em um contato apressado e tímido, mas suficiente para fazer com que suas queixas fossem, instantaneamente, engolidas.

Quando separaram-se novamente, o rosto de Roderich parecia ter atingido um tom de escarlate bem mais intenso, se comparado ao seu rubor usual, e estava comprimido em uma expressão desconfortável e insegura que deixou diversas interrogações na mente de Gilbert. O aristocrata precisou engolir em seco e inspirar diversas vezes, antes de começar a falar, pois, aparentemente, ele pretendia fazer isso com a voz mais branda e composta o possível e seu nervosismo dificultava que ele agisse segundo suas intenções. Após alguns instantes, ele finalmente conseguiu adquirir fôlego e coragem e declarou, com o rosto muito vermelho, parecendo utilizar-se do máximo de suas forças e resoluções:

– Não há nenhum motivo para que você sinta ciúmes a meu respeito. Eu não pretendo, nunca pretendi e, provavelmente, nunca pretenderei estar com a senhorita Elisaveta. Eu apenas pensei... Hum... Eu apenas pensei que seria...bom...ter uma fonte de inspiração diferente...A-Afinal...E-Eu sempre acabo pensando em você...em cada composição que eu faço...

– Hã?

– E-Eu sinto como se cada composição minha fosse feita, para você, e isso é tão ridículo! E-Eu nem planejei agir assim! E-Eu...E-Eu apenas...Q-Quando eu começo a tocar o violino, eu sempre penso em...! V-Vamos esquecer assunto, sim? E-Em resumo, o que quero dizer é... A-A minha dedicatória à senhorita Elisaveta é, praticamente, insignificante, se você pensar na quantidade de composições que eu dediquei a você, e-então... Apenas esqueça esse assunto, sim?

– D-Dedicadas a mim?! – Gilbert exclamou, sem saber se deveria sentir-se mortificado, embaraçado, feliz ou cético quanto àquela confissão - Como pode ser, aristocrata?! A menos que você esteja compondo secretamente, quando eu estou dormindo, eu nunca vi essas composições!

– S-Seu tolo! E-Eu acabei de dizer que quase todas as minhas composições são dedicadas a você, não disse?! Eu apenas não posso fazer essa dedicatória publicamente! O que eu diria? “Composta para o demônio que possui um contrato comigo”?! “Composta para um cavalheiro que, teoricamente, não existe”?!

Kesesese! Não nego que seria uma dedicatória bem original, jovem mestre! – Gilbert sorriu, perversamente, retornando ao seu humor habitual - No entanto, ela me parece um tanto curta! Você não deveria comentar mais detalhes sobre as condições do nosso contrato, Rod? – ele sugeriu, com um ar de fingida inocência, que continha um forte teor irônico e sugestivo - As pessoas irão considerá-lo indolente, caso você faça textos tão concisos!

– Você é tão...!

Roderich não estava certo do adjetivo que usaria para concluir seu insulto e não precisou escolhê-lo. A boca de Gilbert cobriu a sua, antes que ele terminasse sua sentença e, de imediato, ele se decidiu a não mais completá-la. Com alguma resignação e com outras emoções mais agitadas e volumosas comprimindo dolorosamente seu peito, ele fechou seus olhos e permitiu que os dois se beijassem mais profundamente.

Diversas sensações vinham a Gilbert, ininterruptas e ferozes, durante aquele beijo, e elas o deixavam imensamente atordoado, pois ele não conseguia moderá-las ou deter-se para avalia-las. Ele sentia seu coração disparar, agitado por uma mescla de constrangimento, excitação e uma felicidade tão pura e vibrante que, contraditoriamente, provocava uma dor aguda nele.

Talvez as palavras de Roderich não tivessem tanto significado quanto ele supunha. Talvez elas não fossem tão sinceras quanto aparentavam. Todavia, isso não mais importava a Gilbert. Ele estava sinceramente feliz em ouvi-las.

Afinal, havia sido Roderich que as dissera e as demonstrações de afeto daquele jovem mestre eram tão raras e sutis que Gilbert ainda ficaria contente em recebê-las, mesmo que soubesse que se tratavam de mentiras.

E Roderich não parecia estar mentindo. Ele não tinha motivos para mentir e suas alegações pareceram tão reais quanto à sensação quente dos lábios dele sobre a pele de seu pescoço ou das mãos dele segurando os seus ombros e, em seguida, descendo até a sua cintura e a parte interna de uma de suas coxas e...

– R-Rod? - Gilbert o interpelou, afastando, suavemente, Roderich de si, com seu rubor e confusão espalhados por seu rosto.

– Sim?

A reação do aristocrata fora tão perfeitamente calma e solene que Gilbert questionou-se sobre o quão estúpida pareceria a pergunta que ele estava prestes a fazer e se ela seria realmente necessária. A hesitação dele durou poucos segundos. Assim que Roderich percebeu que ele demoraria a dizer algo, ele retornou a avançar sobre si, mordendo o lóbulo de sua orelha e forçando Gilbert a produzir, em surpresa, um som seco em sua garganta, similar a um engasgo.

Sim, sim, sim! Aquela pergunta era necessária! Ela era muito necessária! E urgente!

– V-Você não está pretendendo... – ele tentou articular, esforçando-se para controlar sua respiração acelerada e os sons que escapavam de sua boca, decorrentes da angustiante corrente que passara por seu corpo, ao sentir as mãos de Roderich adentrar em seu casaco e deslizar pelas laterais desse.

– É evidente que estou. – Roderich replicou, decididamente, já ciente do que ele diria. Ele adiantou-se a qualquer protesto de Gilbert e ao início de suas próprias reações tímidas, e tornou a beijá-lo.

Era pouco usual que eles invertessem suas posições. Geralmente, isso somente ocorria, quando Roderich estava alcoolizado. Mesmo em um campo puramente físico, iniciativas e gestos atenciosos provinham exclusivamente de Gilbert.

Era assombroso que Roderich estivesse o envolvendo daquela forma, sem ter consumido uma única gota de álcool. Especialmente, era espantoso vê-lo comportar-se assim, após proferir confissões com um teor que poderia ser facilmente confundido com, bem, um teor romântico, caso Gilbert não o conhecesse tão bem...

Aquele comportamento, concluiu o demônio, deveria ser temporário. E impulsivo. Ele, evidentemente, se aproveitaria disso, mas a sequência dos acontecimentos que envolveriam essa noite e a manhã seguinte era bem previsível. Ele não estava esperançoso nem ansioso quanto ao que viria, após o intercurso dos dois, porém...

Ainda que Roderich negasse o que dissera, não mudaria o fato que ele fizera declarações comprometedoras. Ainda que ele se arrependesse de suas iniciativas, ao alvorecer, não conseguiria apagar o que fizera na noite anterior. O coração de Gilbert tinha motivos para saltitar, em comemoração, pois, embora confissões de amor eterno não viessem na próxima manhã, se fatos inapagáveis como esses continuassem a ocorrer, elas viriam um dia.

– H-Hum... V-Você irá dizer que i-isso foi apenas parte do contrato... – Gilbert murmurou, no breve espaço de separação entre os lábios dos dois, como se constatasse um fato - a-amanhã....

– Faça-me o favor de acreditar nisso, amanhã. – pediu Roderich, com uma seriedade e resolução que, mescladas a polidez de seu pedido, eram tão características dele, que o demônio precisou conter-se para não rir daquela solicitação. Kesesese! O jovem mestre fazia insinuações com o mesmo semblante com o qual ele pedia para que Gilbert varresse o quarto!

...E enquanto a parte superior de suas vestes era retirada, Gilbert não pôde deixar de pensar, com um sorriso e revirar de olhos, que era realmente ambíguo o seu aristocrata.

_____________________________________________________________________________


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada, queridos leitores, que acabaram de acompanhar essa pequena estória!
Esse desafio, passado pela senhorita Kaori, tinha a seguinte solicitação: escrever uma fic na qual o Roderich representasse o violinista Paganini - o qual possuía, em sua época, a fama de ter feito um pacto com o diabo - e na qual o Gilbert fosse o demônio, em questão. Ela também me solicitou que eu me aproveitasse da lenda que o Paganini, uma vez, continuou a tocar seu violino, mesmo após duas cordas desse terem se soltado e que eu trabalhasse esse acontecimento como se fosse uma brincadeira do Gilbo.
Pois bem! Além das referências óbvias que, certamente, vocês já realizaram, permitam-me apontar alguns detalhes que mostram como eu realizei essa incorporação de um novo papel ao Roderich!
01. O Paganini, apesar de ter se apaixonado, em sua juventude, nunca chegou a casar-se. - Reflitam sobre esse fato e façam um "OWWWWWW!:)))", ao perceberem a associação que eu fiz entre esse fato e essa estória.
02. O Paganini tinha os apelidos de "Filho da bruxa" e de "Violinista do Diabo", os quais começaram a ser espalhados, quando um homem disse ter visto o demônio, quando ele estava fazendo sua apresentação da Le Streghe("as bruxas"), uma obra extremamente difícil em termos técnicos. - Eu fiz referências diretas sobre isso.
03. A crença que o Paganini tinha um pacto com o demônio era fortalecida pela frequência com a qual ele vestia roupas negras em suas apresentações. Ele, provavelmente, estava apenas querendo divertir-se com esses boatos, mas eu atribuí ao Rod, motivos mais característicos do personagem!XD
04. As seis sonatas para violino e guitarra foram dedicadas ao seu primeiro amor, a senhorita Eleanora Quilici, e realmente são bastante românticas e diferentes do habitual estilo provocativo e veloz do Paganini. Eu não pude resistir a utilizá-las para gerar o conflito dessa fic!>3
05. "S-Sempre que eu componho, eu penso em você, G-Gilbert-senpai!" - Bem, falando sério, além de possuir composições como o capriccio "A risada do demônio" e as suas variações da composição "A bruxa", o Paganini sempre conferiu um aspecto ligeiramente provocativo e perverso - que seria considerado, no caso, diabólico - às obras dele. As composições do Paganini são tão irônicas, singulares e intensas que não julguei estranho colocá-las como obras que, em parte, tinham como inspiração a personalidade do nosso querido Gilbo!^^
PS: Devo lembrar que o estilo das composições habituais dele é bem diferente do estilo das seis sonatas para violino e guitarra.XDDD
Ah! Para concluir, devo dizer que o Gilbert não é EXATAMENTE um demônio. Ele é uma espécie de ser mitológico que acabou caindo na definição de demônio, como os gatos pretos, mulheres inteligentes e tantos outros caíram, naquela época. Os principais poderes dele seriam os de escolher que humanos poderiam vê-lo, manipular os corpos humanos, fazendo-os imitar seus próprios movimentos e, obviamente, uma velocidade de envelhecimento infinitamente mais baixa, se comparada a dos humanos. Ele também possui outros pequenos poderes, mas não é necessário que eu os comente. Em resumo, ele não é onipotente, não é imortal, não está minimamente relacionado ao inferno e sequer possui uma natureza ou um passado realmente maligno. A única coisa que ele fazia com os seus poderes, antes de conhecer o Rod, era utilizá-lo para obter acordos simples - coisas como "Faça com que eu pareça ser forte, na frente da mulher que estou cortejando!" e "Termine esse trabalho para mim!", para receber bebida, comida e, em algumas ocasiões, sexo.^_^
Essa fic saiu totalmente da minha zona de segurança - ela é em terceira pessoa, é consideravelmente curta, para os meus parâmetros, e é mais, cof, sensual do que a maioria dos meus trabalhos serão! Mesmo assim, eu me dediquei ao máximo, para escrevê-la, e espero ter feito um bom trabalho! Novamente, muito obrigada por ter lido essa fic! Comentários seriam um grande incentivo, então, por favor, tentem fazê-los!
Eu espero que vocês tenham se divertido com essa estória e que continuem a acompanhar e comentar as minhas fanfictions e coletâneas!:)
PS: Agora, vocês estão sabendo. TODOS os meus personagens revezam suas posições sexuais. Eu não tenho nenhum problema com isso e, para ser franca, eu ri fartamente ao realizar que a minha primeira cena de "Vamos-fazer-fanservice-digo-sexo" teve o Rod como o seme! Eu imagino que alguns leitores ficaram bem surpresos!XD
Existem casais em que certas posições são mais frequentes - no caso do PruAus, é mais rotineiro que o Gilbert seja o seme - e outros casais em que o revezamento é constante - USUK, seria um exemplo de um casal assim. Ainda assim, no final, todos eles revezam suas posições, incluindo Spamano, Sufin, Gerita, Dennor e qualquer outro casal que eu venha a apoiar. YAY. Divirtam-se com esse novo - e um tanto inesperado, eu acho - conhecimento!XDDDD
PS2: Pessoas que desejam fazer fanart e doujins, baseados nas minhas estórias: sintam-se à vontade e incentivados. Apenas me avisem! Eu gostaria muito de vê-los e, se possível, de divulgá-los!
Até breve!:3