Guerra escrita por AnaCarol


Capítulo 1
Guerra




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  Os afetos que os soldados mantêm são poucos. Quando imagino que dias atrás eles riam, praguejavam e difamava os opostos à mesa, eu mal os reconheço. Amigos, colegas, conhecidos, deixam de ser lembrados assim que os homens são jogados nos sulcos na terra, que mais se parecem caixões abertos.

  A Terra de ninguém estava vazia, como desejo que tivesse continuado. O céu era o local mais movimentado, e a força da gravidade era posta em prática quando os tiros barulhentos alcançavam o chão, gritando aos ouvidos dos soldados e à suas almas.

  Em horas que se arrastaram suspeitas e correram desesperadas, simples apitos soaram, anunciando o começo do massacre que gostaria de esquecer.

  Eu vi vidas explodirem pelos ares e corações serem parados por tiros cujas origens são impossíveis de identificar. Era a pior multidão que já observei, e muito provavelmente a pior de todas. Eles pulavam sobre corpos mortos e o percurso até o outro lado parecia mais uma corrida de obstáculos. As armas pesadas eram carregadas na mão, e os protetores sobre as cabeças tombavam para o lado com a velocidade.

  Queria ter gritado para abaixarem-se; atirarem-se ao chão de terra e permanecerem lá. No entanto, os poucos que vi fazê-lo não o fizeram por vontade própria, mas comandados pelos presentes surpresas do inimigo e logo a ausência de seus membros. Uma explosão e lá se foi mais um.

  Meu organismo entrava em discussão com ele mesmo; as lágrimas tentando me impedir a visão, as mãos limpando as lágrimas. Quanto mais água em meus olhos, mais nervosamente eu os esfregava. Eu gemia, acho. Que lugar era aquele, onde a morte toca nos ombros dos homens e suas histórias são logo esquecidas?

  Mas eles enfiaram uma ideia em suas mentes, e eram muito teimosos para voltar atrás. Um já perdera o braço. Seus cabelos raspados enterrados no capacete que quase lhe cobria os olhos. Por que não gritava? Não doía? Outro já perdera as duas pernas, e permanecia jogado sobre a terra com o rosto enterrado nela, seus gritos de dor ecoando ao lado dos tiros no campo de batalha.

  Um gastara todas as balas, sem nem saber aonde elas foram parar. Não tinha outro jeito: sacou a faca do lado do cabo da arma e tentou usá-la como pôde. Foi atingido em menos de cinco segundos, e quem disse que a faca fez alguma diferença?

  Eu, que antes costumava ser do tipo corajoso e ousado, perdera toda a confiança e tentava me manter de pé com o que restava de minha dignidade. Entrei no exército com orgulho de minha pátria, mas saí do campo com cólera. Raiva de ter visto o que vi; raiva de ter feito o que fiz...  Irritação com a burrice dos governos.

  Foram enterrados aqueles cadáveres que ainda estavam materializados, assim como cadáveres imaginários de soldados que não deixaram rastro. Enterros estúpidos e falsificados, já que o tempo não ligava para as famílias dos mortos – e pouco menos ligava o governo.

  Outro dia, sentado sobre as duas rodas de minha velha herança da guerra, conduzi-me à praça e escutei um jovem adulto contando a seu filho adolescente o que aprendeu sobre a Guerra. Não posso dizer que estava errado, e não posso dizer que estava certo. Tudo o que ameaço pensar é o seguinte: de que adianta ter recuperado o maldito território, e de que adianta receber a tal indenização, se a maioria dos que lutaram por eles nem sequer estão vivos para fazer uso da terra e do dinheiro?

  Foi então que o filho questionou a razão do pai o estar descrevendo a Guerra. Este tirou do bolso da calça um envelope amassado, aberto e amarelado e, como se soubesse que eu observava pelo canto do olho, demorou-se a entregar a carta para o filho.

  A “bondade” da batalha em não remover meus olhos não me felicitou quando enxerguei o selo da carta que o pai segurava. Por um momento o adulto trocou um olhar comigo, compartilhando um segredo medonho que logo o garoto descobriria.

  Pegou o envelope cuidadosamente e leu-o; sua expressão piorando a cada palavra. Sua face dizia claramente o quanto o menino estava confuso, e que não compreendia a injustiça contida em suas linhas.

  Meu coração foi invadido por tristeza e compaixão... Porque eu entendia a confusão do filho que, se não era maior, era igual a minha de anos e anos atrás. Provavelmente a carta que o pai recebera era igual a minha também.

  Fui embora antes que presenciasse o escandaloso discurso sobre honra e valores que o pai usaria para enganar tanto ao filho quanto a si mesmo, torcendo – com esperanças vãs – que o pai voltasse para o filho. E que voltasse com braços para abraça-lo como fazia na praça.

  E me perguntando por que diabos não estavam satisfeitos com apenas uma Guerra.


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