Finais Felizes escrita por N Baptista


Capítulo 10
Capítulo 10




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 Acordei em um quarto de motel na beira da estrada, não sei direito como cheguei aqui, mas lembro que peguei no sono no banco de trás do carro noite passada enquanto Josh e Nick discutiam sobre um jogo de baseball de uns trinta anos atrás. Levantei e fui para o banheiro tomar uma ducha rápida, me sentia como se parte do incêndio de ontem ainda estivesse em mim, precisava apagar as lembranças da pensão pegando fogo o mais rápido possível. Depois vesti a clássica dupla calça jeans e camiseta e voltei pro quarto onde encontrei Nick sentado na beira da cama:

- Como você está?

- Um pouco melhor – Admiti – Mas as lembranças do fogo ainda me incomodam.

- Eu falei que era melhor esperar até...

- Não, é melhor assim. Quanto antes as coisas se resolverem, mais tempo as feridas vão ter para cicatrizar.

- Se é o que você quer...

- É!

 Ele deu um leve sorriso para mostrar que entendia o meu lado e então veio até mim, me deu um beijo na testa e estendeu o braço para que eu me apoiasse durante a caminhada:

- Não preciso mais de muleta. – Ri e dei um tapa de leve dispensando a ajuda dele.

- Ah, não precisa não...? – Ele passou o braço por trás dos meus joelhos e com o outro nas minhas costas me pegou no colo.

- Ai... Nick... Não... – Eu não parava de rir.

- Ah, não queria interromper o momento de vocês... – Joshua estava parado na porta – É mentira, eu queria interromper sim. Então, podemos voltar a estrada ou você precisa de um tempo Lu?

 Escutei um ruído roco vindo do peito de Nick, como se ele estivesse rosnando e não contive o riso:

- Se acalma Nick! E sim Josh, podemos voltar para a estrada. Já que a minha mãe contou pra vocês a cidade onde eu nasci, mal posso esperar para chegar lá.

 Me soltei dos braços do que me agarrava e cruzei a porta. Fiquei olhando para os dois do corredor. Nick cruzou os braços e virou o rosto para a janela:

- Vamos embora irmãozinho?! – Provocou Josh.

 Ao ouvir isso, Nick fez uma careta e passou marchando pelo irmão, depois colocou o braço sobre os meus ombros e saiu me arrastando para o estacionamento:

- Não acha que está sendo meio infantil? – Sussurrei para ele e ouvi uma risadinha de Josh que tinha escutado também.

 Nick fechou a cara ainda mais e disse entredentes:

- NÃO.

 Foram horas de estrada, nem sempre pavimentada, e eu já estava com dores de tanto ficar sentada, paramos para o almoço e depois continuamos a viagem. Tentei puxar assunto várias vezes e descobri que quando a conversa era trivial, os dois pareciam melhores amigos de infância, e falavam tranquilamente sobre esportes, filmes, músicas. Mas quando o assunto era pessoal, como Serenity e as feiticeiras, parecia que eu estava vendo se formar a terceira guerra mundial  bem ali dentro do carro.

 Mas sobre isso, era estranho que Josh não soubesse nada sobre a mãe ainda estar viva. Aparentemente Serenity não o contatara como fizera com Nick, e eu me perguntava por quê. Ou isso indicava uma preferência óbvia, ou era mais um dos mistérios frustrantes que envolviam essa família maluca. A verdade é que ainda não me conformo com o fato do Nick se recusar a me contar o que conversou com a mãe naquela noite, ou o que falou com a Julie depois disso. A única coisa que me incomoda mais que vampiros e suas palhaçadas de clã são as feiticeiras e suas intromissões, e mistérios, e obsessão em me enlouquecer...

Foi mal, acho que pirei um pouco. Mas se coloque no meu lugar e veja se não tenho razão. Perdi minha família inteira não tem nem dois dias e agora não tenho mais casa nem para onde voltar. Estou indo para a cidade que eu nem sabia que tinha nascido para tentar encontrar a minha mãe vampira e tentar descobrir por que o meu sangue é venenoso. Por mais que eu diga ao Nick que estou bem... Isso não é verdade:

- O que aconteceu Lu?

 Escutei a voz preocupada de Josh e senti o carro parando. Eu estava sentada no banco de trás agarrada aos meus joelhos e escondendo os olhos molhados. Sentia um aperto no meu coração, como se fosse uma facada, eu estava finalmente desabando e não sabia se depois disso seria possível me reerguer. Braços musculosos me envolveram e me puxaram para o peito de Nick, ele me embalou enquanto eu soluçava em meio as lágrimas e encharcava a sua camisa. Pra ser sincera nem percebi quando ele passou do banco da frente para o meu lado e não me importava. Nick encaixou minha cabeça entre o seu queixo e o ombro e eu me concentrei no som das batidas do seu coração... Me acalmou.

 Ainda estava com o rosto apertado contra a camisa preta de Nick quando o carro voltou a se movimentar, mas me recusei a abrir os olhos. Eu só queria ficar ali mais um pouco, naquele abraço que me confortava e me oferecia uma fuga daquele desespero. Nick estava certo o tempo todo, ele disse que eu não estava pronta para ir embora ou para tomar aquelas decisões, mas sou teimosa e estava com medo. Posso parecer corajosa, mas minha coragem é superficial, eu tive medo de me sentir sozinha, de me sentir vulnerável sem os meus pais e os amigos da pensão. A maior parte daquelas pessoas que morreram no ataque de vampiros me viu crescer, eram pessoas que estavam na pensão há anos e que eu já considerava como minha família.

 Lembro da Sra. Moura assistindo novelas na sala e discutindo os possíveis finais. Lembro da Dona Shirley paquerando todos os homens relativamente interessantes que cruzavam a porta de entrada. Lembro do Sr. Honório ocupando a televisão a tarde inteira para ver uma partida de futebol. Carol e Carlina, que eram gêmeas de trinta anos e viviam brigando porque uma era louca por trabalho e a outra uma completa desleixada, mas ninguém deixava a pensão. Lembro do meu pai passando horas na garagem pra tentar fazer a caminhonete funcionar, quando finalmente conseguiu deu pra mim – senti uma pontada no peito ao lembrar que não tenho mais essa caminhonete – Ele queria que eu fosse o mais independente possível. E lembro  da minha mãe, eu nunca entendi o comportamento dela, não parecia uma mãe normal. Ela estava sempre me vigiando, sempre esperando para ver o que eu faria a seguir, mas nunca se meteu. Ela nunca foi o tipo de mãe que te dá conselhos, sempre foi do tipo que fala “Então, o que você vai fazer agora?” e eu tinha que pensar sozinha em uma solução.

 Passei metade da minha infância indo e vindo de hospitais, sempre fazendo exames de sangue, exames físicos, vez ou outra fui parar em consultórios psiquiátricos. Hoje sei porquê minha mãe era tão estranha, sempre achando que eu faria algo que as outras crianças não fariam, isso é porque eu não era como as outras crianças. Nasci de uma moribunda no chão de uma igreja abandonada enquanto meu pai vampiro realizava uma experiência científica e a mulher que me criaria servia de oferenda. Inacreditável como ninguém tinha morrido por minha culpa ainda. Sim, porque foi minha culpa. Eu levei os vampiros até a nossa casa, se tantas pessoas morreram naquela noite, a culpa foi minha.

 Minha adolescência rebelde, me arrependo de cada vez que respondi mal os meus pais. Eu achava que eles estavam errados, mas não é só porque você não entende uma coisa, que ela está errada.

 Outra lembrança veio a minha mente – talvez eu devesse contar isso para o Nick e pro Josh, mas tenho medo da resposta que eles podem me dar – foi quando eu tinha sete anos, estava brincando com as outras crianças da minha turma e estava muito feliz porque era a primeira vez que minha mãe não estava por perto pra me proibir, a bola rolou para a pista e eu fui buscar, mas não vi um carro preto que se aproximava, soube na hora que seria atingida, mas alguma coisa... Alguém me segurou e me tirou do caminho. Quando olhei ao redor estava na varanda de casa e meu salvador estava agachado ao meu lado. Não lembro do rosto dele, mas lembro de uma voz mansa que acalmou o meu choro, ele disse que eu não precisava chorar, que pessoas como eu não precisam chorar, perguntei em meio a soluços o que ele queria dizer com “pessoas como eu” e ele disse:

- Você é como eu... Na verdade acho que você é melhor do que eu, pequena princesa.

 Depois disso ele foi embora, saltava sobre as árvores rápido como eu jamais tinha visto e desapareceu antes que alguém me visse na varanda.

 Será que aquele homem que me salvou era um vampiro? Hoje essa é uma explicação lógica, mas na época uma explicação simplesmente não existia. Mas será que ele já sabia quem eu realmente era? Que pergunta idiota! Nem eu sei quem eu sou.

- Lu, acorda. – Escutei a voz de Nick ao meu ouvido.

 Abri os olhos e me dei conta de que tinha chorado até dormir agarrada ao corpo dele. Aos poucos fui recobrando a consciência e me desvencilhei dos seus braços, olhei pela janela e vi as luzes noturnas de uma cidade pequena. Chegamos pensei enquanto abria a porta e ficava de pé na calçada. Nick saiu logo depois de mim e me abraçou por trás, aconcheguei minhas costas nele e permiti que me guiasse na caminhada. Josh estava alguns passos na nossa frente e avançava silencioso.

 Alugamos um quarto em um hotel simples que era exatamente o que precisávamos. Josh colocou as nossas mochilas no chão, próximas a janela e se ajeitou no sofá com um livro nas mãos, enquanto Nick me levou até a cama e se deitou me aconchegando junto ao seu peito. Fiquei escutando as batidas compassadas (e um pouco aceleradas) do seu coração até pegar no sono de novo.

 Um relâmpago clareou a minha mente e eu pude ver a igreja da forma como a minha mãe tinha descrito, haviam imagens de santos pelas paredes e todos olhavam com perplexidade para o centro do altar onde tinha manchas de sangue seco. A única luz do local vinha de algumas velas que ainda estavam acesas enquanto outras já tinham acabado. Uma cruz grande de madeira gasta estava caída em um canto e duas capas escuras estavam no chão, junto a porta. Não era exatamente a cena que minha mãe descreveu, parecia uma continuação, mas não havia ninguém lá. Vi outro relâmpago e abri os olhos voltando para o quarto de hotel.

 Eu estava sozinha na cama e quis olhar ao redor, mas meu corpo parecia pesado de mais e meus olhos queriam se fechar de novo. Com um enorme esforço consegui virar o rosto para o outro lado e vi Josh sentado no chão com as costas apoiadas na lateral da cama. Estiquei o braço e toquei com as pontas dos dedos o seu cabelo macio e castanho, e ele se inclinou para trás para facilitar o meu alcance. Que intimidade estranha! O que deu em mim? Josh me olhou com aqueles brilhantes olhos verdes mas a pergunta que saltou na minha mente foi só uma:

- Onde está o Nick?

 Ele sorriu decepcionado e baixou a cabeça:

- Acabou de sair.

- E me deixou sozinha com você?

- Eu não sou um monstro Luiza...

- Não, não entendeu. Eu sei que você não é um monstro, mas é que o Nick não confia em você. Ainda mais comigo.

-... As vezes confia. – Ele murmurou virando o rosto.

 Recolhi a mão de seu cabelo e abracei meu próprio corpo ajeitando a cabeça no travesseiro, ainda sentia o peso do sono e não ia demorar a dormir, mas antes senti a mão de Josh tocar te leve a minha bochecha e escutei ele murmurar para si mesmo:

- Acho que não sou tão forte quanto ele.

 Algumas horas se passaram antes que a minha mente voltasse àquele quarto. Eu não estava acordada ainda, mas pude ouvir claramente a conversa dos irmãos Fells:

- A diferença – Disse Nick – É que eu quero fazer o que for melhor para a Luiza, e você quer fazer as vontades dela, só que infelizmente essas duas coisas nem sempre são a mesma.

- Não me culpe pelo que aconteceu ontem Nicolas. Depois de tudo, a Luiza ia desabar de qualquer jeito.

 Eu estava de olhos fechados, então tive que imaginar a cena de Nick enterrando os dedos em seus cabelos negros e sedosos enquanto falava com os olhos fechados:

- Eu sei que não é sua culpa, é minha. Foi por minha causa que os vampiros do Gasper foram parar na pensão, por minha causa que a Luiza perdeu tudo, e ela devia me odiar. Eu sou fraco Joshua, não consigo ficar longe dela.

- Talvez isso não te torne fraco – Na minha ilustração mental Josh estendia o braço e colocava a mão no ombro do irmão – A Luiza é diferente de tudo o que já encontramos nessa vida. E eu sei exatamente o que você sente em relação a ela... Porque eu sinto a mesma coisa, e é inevitável. Mas não vou me aproximar, não de verdade.

- Queria poder não me aproximar de verdade.

 Depois disso o silêncio reinou absoluto. Mas, como eu devo interpretar isso tudo que acabei de ouvir? É horrível saber que o Nick se culpa pelo que aconteceu comigo. Mas é pior ainda ouvi-lo dizer que não queria me amar. Continuei fingindo que estava dormindo por mais um tempo, a verdade é que não queria encarar os dois.


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