A Cama Que Sonhava escrita por FinalFairy


Capítulo 1
Dependência




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Dependência

—... Oito... Nove... Nove e meio... Dez! Prontos ou não, aqui vou eu!

Kari saiu correndo pelos corredores do imenso casarão à despeito do facto que caso fosse apanhada, seria gravemente reprimida. Ela olhou por debaixo dos móveis — e saindo como flecha até ao próximo corredor, abrindo e fechando portas, entrando e saindo dos quartos, puxando cortinas e olhando debaixo das camas à procura de algum sinal do irmão ou do primo. Só que coisa! Tinham se escondido muito bem, desta vez!

Kari tinha seis anos, um ano mais nova que o irmão e que o primo, Tala e Kai, que tinham nascido na mesma altura. As governantas costumavam dizer que era promessa; coisa das mães dos meninos, que eram muito amigas desde criança. Promessa ou coincidência, um era do dia 28 de Julho e o outro do dia 2 de Agosto.

— Ah! Achei você! — a menina abaixou-se de repente, deparando-se com um espaço vazio. Fez biquinho. Poxa, onde eles estavam? Olhou em volta, engatinhando até uma porta e devagar, quase inaudível, rodou a maçaneta. Era a porta do escritório do pai e apesar de Kari saber que ele ficaria muito bravo se a encontrasse ali, não conseguiu conter-se. Além do que sabia que era o lugar perfeito para esconder-se. Quando viu que não tinha ninguém, entrou, fechou a porta, e começou a procurar pelos meninos.

— O que pode ser tão urgente que precisa falar comigo, Voltaire? — ao ouvir a porta sendo aberta e a voz do seu pai, Kari apressou-se a esconder-se no armário. Dimitri entrava, seguido de Voltaire, e logo se sentava na poltrona, servindo-se de uísque.

O velho e austero homem fitou o genro de cima, antes de servir-se e sentar-se.

— É sobre o Yuri. Acho que é mais do que tempo de mandá-lo para o internato.

— Bobagem. Violetta e eu decidimos que só iria ao completar dez anos.

— E Violetta está viva? — Voltaire perguntou com secura, provocando um arrepio desagradável na espinha de Dimitri. — Mortos não decidem nada, Dimitri. Viu o garoto; ele tem talento. Precisa desenvolver isso, e quanto mais cedo melhor. Ou acha que ele se tornará o melhor patinador do mundo da noite para o dia?

— Oras, senhor Voltaire. Melhor do mundo? Estamos falando de uma criança!

— Estamos falando do futuro da patinagem do gelo, Dimitri! Como pode ser tão cego? Imagine o Yuri e o Kai patinando juntos pela Rússia... competindo pelo título!

— Oh não- não irá mandar o Kai para aquele colégio, vai?

— Já o fiz. Estará indo para Academia assim que as férias terminarem.

— Isso é loucura. O senhor é louco! Não permitirei que faça isso.

— E o que fará para me impedir? — Voltaire abriu um sorriso malicioso, rodopiando a taça de bebida na mão — Eu sou o tutor legal daquela criança.

— Maldita hora que permiti que isso acontecesse.

— Consigo segurar aquela vaga por algum tempo, ainda — disse, imperturbável. — Estamos em Junho... tenho a certeza que conseguirei convencê-lo até Setembro, meu querido genro.

Dimitri não respondeu, limitou-se a observar Voltaire acabar de beber o uísque com sua natural frieza; frieza essa que também lhe era característica. E pôs-se a pensar. Verdade que o filho era um natural para a patinagem artística, e verdade que mandá-lo para a academia de St. Petersburgo já lhe tinha passado pela cabeça. Entretanto Violetta não o permitiria; vivia dizendo que o garoto só devia afastar-se de si aos doze, quando muito aos dez. Ele bebeu o uísque num só gole, sua falecida mulher não tinha nada em comum com o obstinado pai. Talvez fosse por isso que ele não sentira tanto a sua morte quanto sentira do filho mais velho, o pai do pequeno Kai.

Ele soltou um suspiro resignado. Mas parecido com Voltaire ou não, Susumu nunca admitiria que o filho fosse enviado para a Academia tão cedo. Viu-se no dilema.

**********

Kari teve que esperar muito tempo para sair do escritório, e quando conseguiu finalmente fazê-lo, Tala e Kai já estavam a procurando. Foi só dobrar o corredor para encontrá-los.

— Kari! Onde você estava? Estamos te procurando há horas! — O jovenzinho de cabelos fogueados ralhou, muito irritado. Só depois reparou que a irmã estava chorando, e preocupou-se. — Kari? Que foi, maninha?

— Eu não quero que você vá para o colégio, Yuri! Nem você, Kai!

Tanto Kai quanto Tala fitaram-se, confusos.

— Que colégio, do que fala?

— A Academia de Patinagem... vovô e papai estavam discutindo isso no escritório.

— Estava ouvindo atrás da porta? — O tom censurador do mais velho abriu o muro de defesas da menina.

— Eu só estava procurando por vocês!

Kai preocupou-se. Já tinha ouvido o avô comentar algo como ir para um colégio interno, mas nunca o levou muito a sério, em parte porque sabia que seus pais não deixariam. Mas agora que não tinha mais pais... ele balançou a cabeça veemente, não querendo pensar no assunto. Não queria ir para Academia alguma! E não iria!

— Ah, sua bobona, pare de chorar. Não vou a lado algum, certo? Como se eu pudesse deixá-la sozinha... — Tala suspirou, puxando a irmã menor para um abraço. — E o Kai também não vai, não é, Kai? Kai. Kaaai!

O menino balançou a cabeça, dispersando seus pensamentos e encarando o primo.

— Ah, é. Eu não vou a lugar nenhum também, Kari. Nós somos uma família, lembra? Família fica junta.

— Prometem? — A chorosa menina perguntou, limpando as lágrimas com a manga da blusa.

— Prometemos, prometemos. — Yuri atalhou, rolando os olhos sobre as órbitas, e de facto, sem se importar muito com o que dizia. Não porque queria separar-se da irmã, óbvio, mas porque não julgava que isso fosse um dia possível. — Agora podemos, por favor, voltar a brincar?

— Você procura desta vez! — Kari abriu um sorriso, separando-se do irmão num salto e esquecendo-se das suas preocupações anteriores.

— Nada disso! Você procura! Não conseguiu achar a gente!

Kari armou uma carranca.

— Não quero procurar de novo — E fez biquinho, pensando. — Já sei! Kai procura!

E dito isso, saiu correndo. E Yuri, para que não sobrasse para ele, deu de ombros e saiu correndo também. Com um suspiro, Kai encostou-se a parede.

— Por que sempre sobra para mim? Um... dois... três...

*************

Dona Marie era uma senhora já de idade, gorduchinha e muito baixa, de cabelos grisalhos que outrora foram muito ruivos e ondulados. Seus olhos eram escuros; e enquanto arrumava a cama da pequena, brilhavam com divertida desconfiança, já que sua pupila estava tão quietinha (coisa que nunca acontecia). Ela esperou que Kari escalasse até a cama e acomodou-a debaixo dos lençóis para perguntar o que estava errado.

Kari hesitou, contrariando sua natureza intuitiva, e ficou observando os dedos gorduchos da governanta alisando seu ombro por cima do pijama por um bom tempo. Quando Dona Marie já tinha desistido, perguntou:

— Dona Marie... você acha que papai gosta de mim?

— Oras, criança! — a governanta elevou a mão ao peito, indignada com aquela pergunta. — Claro que seu pai gosta de você! Que tipo de pergunta é essa?

— Se ele gosta de mim... — começou a menininha, colocando o cabelo atrás da orelha e observando dona Marie com um olhar de lógica — Então ele nunca faria nada para separar o Yuri de mim, certo? Nem o Yuri nem o Kai.

Dona Marie franziu o cenho sobremaneira, estranhando. Verdade que ouvira, há pouco tempo, um pequeno rumorar do patrão e do velho e desagradável Voltaire sobre internar os dois meninos num colégio. Contudo, por saber que a falecida Violetta era contra, supôs que o senhor Dimitri nunca admitiria aquela ideia absurda. Poderia estar errada?

— Oras, mas por que se preocupa tanto com essas coisas? O que ele poderia fazer para separá-los de você, hein? E que coisa! Essa dependência que você tem daqueles meninos! Eu devia proibi-la de brincarem juntos.

Os olhinhos azuis da pequena arregalaram-se e encheram-se de água.

— Não! Oh, não, dona Marie! Tudo menos isso!

— Tudo menos isso... — Marie voltou a franzir o cenho. — Realmente, essa vossa dependência me preocupa! Bem, boas noites, pequena Kari. Durma bem. Sonhe com os anjos...

Quando as luzes foram apagadas e os passos da dona Marie estavam longe demais para serem ouvidos, Kari voltou-se para um lado da cama, suspirando. Não entendia o que ela queria dizer com «dependência» nem porque queria proibi-la de brincar com o irmão e com o primo, mas entendia que tentava esconder alguma coisa de si. Dona Marie sempre ficava nervosa e fazia um monte de perguntas retóricas quando não queria contar alguma coisa.  Ela respirou fundo, limpando as lágrimas que nasciam insensatamente com a manga do pijama. Simplesmente sabia que levariam Kai e Tala para longe dali. Simplesmente sabia!

*********

Tala não fez nenhum ruído ou se moveu quando a porta do seu quarto foi aberta, iluminando o recinto por alguns instantes. Com extremo cuidado para não fazer barulho, sua irmã a fechava de novo, entrando nas pontas dos pés e escalando por debaixo dos lençóis até achar seu lugar na enorme cama. Uma vez instalada, ele remexeu-se até estar virado para ela, os dois mal enxergando os brilhantes e semelhantes olhos azuis na escuridão.

— Maninho... o que quer dizer ser dependente?

Tala ficou algum tempo pensando. Já tinha aprendido aquela palavra na escola.

— Quer dizer que você precisa de alguma coisa.

— E o que quer dizer depender de alguém?

— Quer dizer que você precisa de uma pessoa.

Kari ponderou.

— Dona Marie disse-me que eu dependo de você. Quer dizer que eu preciso de você? Isso é errado?

— Acho que não! — respondeu, com toda sua sinceridade. Por que isso seria errado, afinal? Ele continuou quieto, enquanto sua irmã apalpava o colchão como se buscasse algum tipo de conforto.

— Maninho... se você me deixar, eu vou morrer.

— Eu não vou te deixar. — Yuri disse num tom definitivo. Tinha a certeza disso. Nada o faria deixar sua irmãzinha. Iria tomar conta dela, ponto final.

— E se papai te mandar para o colégio?

— Ele não vai fazer isso.

— Mas o Kai está indo! E o vovô estava falando com o papai... — Kari mordeu o lábio inferior, querendo impedir as lágrimas. Apesar de ser nova, ela bem sabia a influência que seu avô tinha sobre as pessoas. Por isso temia-o. E detestava-o. Caso o Kai ou o Yuri fossem mesmo para um colégio, certamente que não o perdoaria!

Yuri também sabia que Voltaire era um senhor importante e poderoso. Por isso não conseguiu dizer que nem ele conseguiria mandá-lo para um colégio interno. Ele respirou fundo, aproximando-se da irmã até que suas cabeças se tocaram e capturou-lhe uma mão, por baixo dos cobertores. Tinha tanto, ou talvez até mais, medo de separar-se de Kari. Não podendo contar com seu pai – um homem muito exigente e frio, que nunca parava em casa – e perdendo a mãe muito cedo, Yuri começou a precisar da companhia da irmã. Ela era tudo o que tinha... não podia dar-se ao luxo de perdê-la.

— Você lembra-se do que o Kai disse? Família fica junta. E nós vamos ficar juntos. Para sempre.


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