The Call escrita por Danisse


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

A música é The Call - Regina Spektor, que toca no Príncipe Caspian. Se quiser, ouça enquanto lê. Boa leitura!



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Seus dedos alvos acariciaram com demasiado carinho a fotografia antiga. A única que tinha, aliás, onde todos os que amava estavam presentes. As bordas da imagem já haviam se corroído com o tempo. Ela já havia passado tantos dias observando aquela gravura e, mesmo assim, nunca se cansaria de olhar.

It started out as a feeling,

(Isso começou com um sentiment)

which then grew into a hope,

(Que então cresceu com esperança)

which then turned into a quiet thought,

(Que então se tornou um pensamento silencioso)

which then turned into a quiet word,

(Que então se tornou uma palavra silenciosa)

and then that word grew louder and louder

(Então a palavra ficou mais e mais alta)

'til it was a battle cry:

(Até virar um grito de guerra)

I'll come back when you call me,

(Eu vou voltar quando você me chamar)

no need to say goodbye

(Não há a necessidade de se despedir)

Ali estavam Pedro, Edmundo e Lúcia. Pedro tinha seus braços envoltos protetoramente em Lúcia, que dava um de seus sorrisos mais belos e aconchegantes. Edmundo tinha seu braço apoiado nos ombros de Pedro, demonstrando a amizade sincera que nascera entre os dois irmãos com o passar do tempo. E, ali no canto, um pouco deslocada, estava Susana. Ela abraçava seu próprio corpo e tinha um sorriso forçado estampado na face. Ainda se recordava bem desse dia: estava com pressa para que aquela foto inútil fosse batida logo e ela pudesse sair com suas amigas.

Foto inútil? Não. Aquela fotografia já não era inútil. Pelo contrário: ela mantinha viva e fresca a memória de seus irmãos.

Ainda hoje, ao se recordar daqueles tempos, não conseguia entender o que a havia feito se afastar tanto de seus irmãos. A dissemelhança entre eles era palpável e aquela imagem em suas mãos representara bem isso.

Just because everything's changing

(Só porque tudo mudou)

doesn't mean it's never been this way before

(Não significa que nunca foi assim antes)

Quando crianças eram tão unidos... E então, de uma hora a outra, os irmãos ficaram presos para trás, na terra imaginária criada para afastar os horrores da guerra.

Nárnia.

Susana deixou que uma lágrima escorresse de seu rosto. Passou seu dedo indicador pelos rostos de seus irmãos e fechou os olhos, tentando se lembrar de como era lhes afagar, lhes tocar, lhes abraçar... Trançar os cabelos de Lúcia, receber um abraço apertado de Pedro e gargalhar com Edmundo.

Lembranças.

Já fazia tanto tempo... Tanto tempo em que eles a deixaram naquele horrível acidente de trem...

A senhora pousou o retrato novamente na superfície de madeira e se recompôs. Trajava preto: era o dia da visita anual aos seus irmãos e ao cemitério. Talvez aquelas lembranças não fossem assim, tão desconexas, afinal. Era o dia, a data em que elas deveriam vir a sua mente.

Antes de sair de sua casa, parou em frente ao espelho e prendeu os longos cabelos brancos no topo de sua cabeça, colocando o delicado chapéu logo depois.

Mirou-se no espelho: as feições tristes; a pele pálida e flácida; os lábios que já não davam um verdadeiro sorriso há tanto tempo; as rugas em volta dos olhos e da boca. Parecia-lhe, inclusive, que sua amargura a envelhecera mais ainda.

Talvez aquelas lembranças simplesmente não viessem porque era dia de visitar os mortos e sim porque talvez nunca houvesse superado a morte de sua família.

A senhora colocou suas luvas (também pretas) e pegou sua bolsinha. Tudo calma e lentamente. Não havia pressa.

Andava vagarosamente na rua. Já havia andado por ali tantas vezes. Tudo estava mudado. As fachadas das casas, o modelo dos carros, as vestimentas das pessoas... Lembrou-se de uma vez em que caminhavam, os quatro, por aquela mesma rua conversando animadamente sobre aquele mesmo país mágico.

Pensou em afugentar a lembrança.

Mas não, não havia o porquê. Aquele era o momento para a lembrança ser lembrada.

Now we're back to the beginning

(Agora que estamos de volta ao começo)

It's just a feeling and no one knows yet,

(É só um sentimento e ninguém conhece ainda)

but just because they can't feel it too

(Mas só porque eles não podem sentir isso também)

doesn't mean that you have to forget

(Não significa que você tem que esquecer)

Permitiu-se, então, por uma última vez, viajar por aquele conto mágico da infância. Nárnia. Ah, aquele nome era tão nostálgico! Fechou os olhos e novamente era uma rainha de um país encantado com animais falantes. O Sr Tumnus, os Castores... Seus lábios murchos sorriram. Lembrou-se de como era famosa por aquelas terras. Todos os pretendentes nobres que recebia, mas Pedro afugentava-os todos. Permitiu-se rir. Susana, a Gentil.

E então, aquela outra vez... Voltara para Nárnia para restaurar o trono de Caspian. Miraz havia roubado o trono de seu sobrinho. Oh, que maldade! Pedro enfrentou-o em um combate corpo a corpo enquanto Lúcia corria para o meio da floresta para se encontrar com o Grande Leão.

Parou por um momento, a lembrança do Leão veio em sua mente. Aslam. Assim como da primeira vez em que ouviu o nome do Leão, uma sensação boa invadiu seu âmbito. Ela respirou fundo. Estava aliviada. Por um momento, toda aquela amargura da velhice sumiu e lhe fora restituída a alegria de seus vinte anos.

Lá longe, conseguia ouvir a buzina de um carro. Sentiu uma grande pressão sobre seu corpo e pode percebê-lo sendo arremessado para longe. Suas costas foram de encontro a alguma coisa dura. Arquejou. Abriu seus olhos.

Seu corpo estava estendido ao chão. Um acidente de carro. As pessoas se aproximaram para prestar socorro à velhinha. Ela não se importou porque, dentre estas pessoas, estava um Leão. Ela deu um leve sorriso e sussurrou “Aslam...”. Aquele calor novamente. Agora estava imersa nele.

Let your memories grow stronger and stronger

(Deixe as suas memórias crescerem fortes e fortes)

'til they're before your eyes

(Até que elas estejam em frente aos seus olhos)

O Grande Leão se aproximou. Havia um sorriso bondoso em seu rosto. Ela ergueu seus braços para abraçá-lo. O Leão abaixou sua cabeça e ela afundou os braços em sua juba. Sentia-se feliz. A felicidade era tanta em seu coração que ela chorou como uma criança. Ria e chorava ao mesmo tempo.

Ela se levantou, agil demais para a sua idade avançada, sem perceber que havia deixado o seu próprio corpo para trás.

Afastou-se do Leão para ver mais três figuras inusitadas. Pedro, Edmundo e Lúcia estavam parados, todos eles com grandes sorrisos estampados nas faces. Tão novos e belos como ela se lembrava de tê-los visto pela última vez.

Susana correu e os abraçou. Ainda sorria e chorava.

Era jovem novamente.

You'll come back when it's over,

(Você voltará quando acabar)

no need to say goodbye

(Não há a necessidade de dizer adeus)


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Notas finais do capítulo

E então? Eu admito que quase chorei quando escrevi, porque me veio aquele medo de ser deixada pra trás como a Susana foi. Sabe? Todos os irmãos morreram, menos ela. Eu me senti como a própria Susana escrevendo e eu acho que foi realmente isso que ela sentiu. Toda essa... amargura. Eu espero ter conseguido passar isso pra vocês.