Sob a Luz do Sol escrita por Tatiana Mareto


Capítulo 2
Capítulo 1 - Vagando




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Saí do covil sem que eles me vissem. Não queria que os meus me condenassem sob minhas vistas. Não queria que eles me criticassem durante minha incursão ao mundo deles. Ok, isso ficou confuso, não acham? Eles, deles… bem, os meus raramente nomeavam aqueles que viviam sob a luz do sol, e que tinham o sangue quente. Eles têm nome, humanos. Mas os meus não os nomeiam… porque foram eles que nos expulsaram de lá. Lá, a terra… o ar, a luz do sol. Fomos confinados a viver sob a terra, porque eles, os humanos, não nos queriam lá. Lá, na superfície.

Mas eu saí do covil, fugindo. Eu levava algumas roupas em uma pequena maleta. Quase corri, arrastando o vestido. Ao me aproximar da saída, a luz cegou meus olhos. A luz que eu nunca vi… bem, eu vi. Mas não me lembrava de ter visto. Eu tinha poucas memórias de quando era somente humana, e depois que me transformei e fui abrigada por Rudolph, eu nunca mais saí do covil. Não via a luz do sol, não me recordava dela, e tive medo que ela me fizesse mal.

Mas ela não fez. Meus olhos se retraíram ao primeiro contato com a luz amarelada e pálida do astro solar, e minha pele pareceu arder um pouco. Ardeu… olhei para cima, para frente, e eu estava em um local totalmente claro, sem luz artificial, cercada de cores. Cores… eu conhecia poucas cores. Sob a terra não se vê muitas cores, é tudo basicamente marrom, vermelho, preto e branco. Algumas variações. Eu mesma usava um vestido branco e vermelho. Era mais fácil camuflar quando nos alimentávamos, o vermelho.

Então, o sol não me machucava. Interessante. Talvez eu tivesse ouvido lendas demais, contadas por Felicia. Ela adorava contar lendas… e eu adorava ouvi-las. As mais interessantes eram sobre eles. Os humanos. Como eram frágeis e … Rudolph disse, não, ele garantiu… que nada neles era interessante. Mas eu me recusava a acreditar. A simples diferença nos fazia interessante.

Eu não tinha noção geográfica, e não sabia onde estava. Se é que isso fazia alguma diferença; se eles tivessem divisões e demarcações. Eu não sabia. Olhei em volta novamente, tentando situar-me. Havia verde… eu não me recordava de um verde daquela cor. Sob a terra o verde é tão diferente… é escuro e viscoso, como o sangue que bebíamos. Mas aquele verde era… vivo.

A palavra me veio à cabeça muito rapidamente. Vivo. O lado de fora era vivo… sob o sol, as coisas viviam. Sob a terra, eu imaginava que tudo era semi morto. As coisas não possuíam vida… não a vida que eu imaginava que eles tinham. Pus-me a caminhar, lentamente, por entre o verde. A mistura da luz amarela com o verde me deixava confusa. Não conhecia a luz amarela… ou não me lembrava. Esfreguei os olhos várias vezes, tentando mantê-los límpidos. Eu não sabia onde estava, mas havia verde… e relva. A relva era verde. Caminhava, arrastando a maleta e o vestido enorme, vitoriano, os sapatos de salto de madeira já meio apodrecidos.

Pensei se os meus viriam atrás de mim. Se eles se importariam, ou se achariam que desgracei a raça. Deveríamos se considerados uma raça. Imediatamente imaginei se eu era diferente deles. Se eles me olhariam e me reconheceriam. Se saberiam o que eu era. Se nossos corpos eram diferentes, se alguma coisa física poderia nos diferenciar. Talvez sim, eu nunca tinha visto um deles. Ou não me lembrava. Era sempre assim… eu dizia nunca, mas na verdade, eu não me lembrava. Seria eu diferente? Uma aberração? Eu parecia um monstro?

Foi então que tive medo, pela primeira vez sob a luz do sol. Eu ainda caminhava, e o sol já deixava minha pele avermelhada. Eu era branca, porque assim eram todos os meus. Muito branca… e o sol não me machucava, mas minha pele estava vermelha e eu sentia que ela… coçava. Eu precisava parar, porque já caminhava por algum tempo. Eu não tinha a noção temporal deles… não fazia noção de como eles contavam o tempo, porque sob a terra era sempre tudo igual. Na verdade, não contávamos o tempo. Ele não passava, mesmo… parávamos de envelhecer tão logo nos transformávamos, e por isso o tempo jamais passava. Era sempre o mesmo… não importava se era dia ou noite, porque não havia qualquer luz além da artificial. Eu sequer tinha noção de dia e noite, porque só os como Rudolph eram autorizados a sair, vez em quando.

Vagando, achei uma sombra. Lugar onde não havia sol… sob o verde. Parei ali, o peito arfando. Nunca sentira nada daquilo… estava me sentindo estranha. Não conhecia palavras para aquele sentimento. Era um sentimento interessante, porque eu sentia a minha respiração… eu estava inspirando ar… ar puro. Nosso ar era canalizado. Nosso ar vinha de dutos que foram colocados por eles, para não nos matarem. Eu imaginava que eles, apesar de tudo, não fossem tão cruéis como Rudolph dizia. Afinal, eles não nos mataram. Talvez, matar-nos não fosse tão fácil… talvez, não precisássemos de… ar.

Foi quando parei de respirar. Fiquei sem respirar por alguns segundos… e ainda sentia a sensação. O barulho ambiente me irritava um pouco. À sombra, continuei sem respirar. Nada mudou… só o barulho que, lentamente, foi se exaurindo. Fechei os olhos, mas ainda estava tudo tão claro. E eu não respirava. Oras, eu não precisava de ar? Inspirei e soltei o ar pela boca, deixando que o oxigênio me refrescasse o sangue. Senti algo bom… uma sensação de alívio, e logo o ruído voltou. Então era assim? O ar parecia mais um prazer do que um dever. Oras, Felicia não havia me contado nada sobre essa… lenda.

Voltei a caminhar, sentindo minha pele menos quente. Eu era sempre fria, sob a terra. Lá era tudo frio, menos o sangue que bebíamos. O sangue era morno e fétido. Fora isso, tudo era frio e úmido. A luz do sol me deixou quente e arfante. Sensações que eu não conhecia. Não sei bem por quanto tempo vaguei… nem em que velocidade vaguei… eu só sei que o sol se esvaiu em determinado momento, dando espaço a uma escuridão pouco familiar. O céu estava cintilado de pontos luminosos, e uma grande bola acinzentada pairava no ar como se estivesse suspensa. Fiquei fascinada, por alguns instantes, sem saber o que era.

Algo aconteceu, enquanto eu me maravilhava com o mundo por sobre a terra. Caminhava de costas, adentrando cada vez mais no verde que já não era verde, até que a bola iluminada desapareceu e todos os pingentes de luz também. Grandes pedaços de verde escuro enegrecido estavam cobrindo o céu, e eu me vi realmente por entre… árvores. Eram árvores, pelo que eu podia saber. As grandes raízes penetravam sob a terra, e várias vezes questionei o que eram. Felicia me disse que eram a fonte de oxigênio deles. Oras, eles dependiam delas… das árvores. Por isso, tantas. Olhei par frente, e só vi as árvores. Para onde iria? Eu não sabia. Continuei andando, até que visualizei um animal.

_Você está pronta para matar, Beatrice?

A voz de Rudolph assombrou-me os ouvidos. Saltei para trás, meus olhos perderam-se no vazio buscando sua face redonda. Nada. Era apenas minha mente a me pregar peças. Olhei novamente o animal, e ele não parecia se dar conta de mim. Olhei para minha mão, e meus braços tinham pelos eriçados. Passei os dedos pelos lábios e senti o pontiagudo de meus caninos. Estava com sede? Precisaria de muito sangue para sobreviver sob o sol? Aquele que eu havia bebido no covil não me manteria saudável por muito tempo, como eu estava acostumada?

Encarei o animal, mas a sede não passou. Ele parecia mesmo não me ver… e eu não sabia o que fazer. Eu não estava pronta para matar. De repente, um outro animal pulou por sobre aquele, e o atacou. Ferozmente jogou o primeiro no solo, e dilacerou sua carne.

_Conseguiria resistir se ao invés deste cheiro fétido tivesse em sua frente o mais refinado dos banquetes? Preferiria a taça morna de sangue desconhecido à veia pulsante e viva de cheiro esfuziante?

As palavras de Rudolph, outra vez. Então, aquele era o cheiro do sangue fresco… ele penetrou em minhas narinas, e os pelos se eriçaram ainda mais. Senti um sabor doce em minha boca antes mesmo de provar qualquer coisa. Fechei os olhos… o animal continuava por sobre o menor, dilacerando partes de sua carne e expondo uma quantidade considerável de… sangue.

Meus olhos se abriram e minha reação foi assustadora. Pulei sobre o predador, afugentando-o. Ele ainda imaginou me enfrentar, mas eu parecia mais forte. Tomei-lhe a caça, e encarei o animal morto. Joguei-me por sobre a carcaça, abocanhando-a com ferocidade. O sangue me inundou a boca, e o sabor era indescritível. Não havia cheiro ruim ou viscosidade… era limpo, claro, não coagulado. Suguei o animal até não restar vestígio de seu cheiro mais. Olhei em volta, estava lavada de um vermelho claro que não parecia se misturar em meu vestido. Olhei para o animal, e dei conta do que eu havia acabado de fazer. Eu havia tomado sangue fresco. Talvez eu não fosse capaz de resistir, então.

Lancei-me em uma corrida frenética, assustada comigo mesma e com minha reação patética perante o animal morto que jorrava sangue. Eu não entendia aquele comportamento. Corri, sem saber para onde, sem saber se isso importava para eles, sem saber. Parei quando senti-me novamente cansada… precisava dormir um pouco.


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