Todas as Feras Merecem o Céu escrita por Phinderblast


Capítulo 1
Capítulo 1 - O tigre e o grifo


Notas iniciais do capítulo

Essa é minha primeira história com múltiplas narrativas, por favor comentem, quero saber o que errei e o que acertei, obrigado.



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Prólogo

 

            A fraca luz avermelhada que vinha de outro aposento iluminava a grande sala cheia de bugigangas. Ali alguém estava ajoelhado, procurando em meio às tralhas alguma coisa.

 

- Droga... Hefestus-sama nunca guarda as coisas no mesmo lugar...

 

            A voz não era muito grossa, mas carregada de força e sobriedade. Era masculina, isso era um fato. O rapaz apressou a procura, parecia saber que seu tempo estava acabando, precisava achar desesperadamente aquilo que procurara.

 

- HITSUKI! OS MOLDES! HITSUKI! ONDE ESTÃO OS MOLDES?

 

            Uma poderosa voz vinha de fora; grossa, firme, de causar arrepios. O rapaz se desesperou, começou a jogar todas aquelas tranqueiras para os lados. Eram pilhas e pilhas de metal, era possível notar, pois reluziam à luz que lhes atingia conforme voavam pela sala.

 

- EU ACHEI! Já estou indo! Já estou indo!

 

            O jovem levantou o que parecia ser uma chapa de metal. Olhava para ela como se fosse um troféu, de fato era um feito ter achado aquilo em meio à tamanha bagunça. Então ele segurou firmemente o objeto nas mãos e se levantou, caminhando até a porta do aposento.

            Pouco a pouco a luz começou a revelar mais sobre o rapaz até então encoberto pelo manto da escuridão. Seu rosto possuía traços suaves e nada lhe era desproporcional. Seus olhos eram de um azul incrivelmente claro, como um céu claro ao meio-dia. Os cabelos eram não muito grandes e vermelhos, mas o que realmente chamava atenção naquela hora era o que estava no topo de sua cabeça: orelhas felpudas. Eram longas e amarronzadas, repletas de pêlos curtos e macios.

            Os passos se apressaram e em instantes estava correndo em direção a porta. Sabia que tinha que levar logo aquilo para seu mestre, sempre ranzinza e mau-humorado.

            Estava ao lado de fora do aposento, agora tudo se revelara. O rapaz era alto e atlético, usava uma armadura de metal reluzente, com inúmeras runas e placas maciças. Mas novamente não era aquilo que chamava atenção, mas sim o que havia atrás de suas costas: asas. Um grande par de asas penosas e marrons lhe adornava as costas, da mesma cor que suas orelhas.

            O lugar onde estava era um corredor largo e alto, com paredes que reluziam como metal, eram feitas de bronze. Construtos do mesmo metal caminhavam de um lado a outro sem se importar com a presença do ruivo, imersos em seus próprios deveres. Enquanto segurava o molde nas mãos, ele olhava para os dois lados do corredor, um tanto perdido devido o tamanho do lugar.

 

- Onde é que ele está?...

 

            Não houve tempo para mais pensamentos por parte do rapaz. Tudo o que viu, ou melhor, sentiu, foi uma projétil lhe atingir o meio das costas.

 

- Hitsuki...

 

            A mesma voz vinha de um dos lados do corredor, o lado do qual o rapaz estava de costas. O andar pesado se aproximava, era um andar manco, cocho. Uma batida mais forte que a outra e em instantes a figura de um homem forte e sem camisa estava praticamente em cima do rapaz. Olhar nos olhos daquele ser mataria a maioria dos mortais de pavor e medo, mas o jovem alado apenas esboçou dor. Os moldes lhe foram arrancados das mãos e o manco seguiu o corredor sem se importar com seu subordinado caído. Hitsuki, aparentemente esse era seu nome, levantou-se pouco tempo depois, com uma enorme dor nas costas. Olhou para trás e pôde ver o que havia lhe acertado, um grande martelo de metal. Balançou a cabeça negativamente e suspirou. Aquele seria um longo dia para o ruivo.

            Já era tarde da noite quando todas suas tarefas estavam acabadas. Armas polidas, escudos guardados, forno em ordem... Sentou perto do mesmo homem manco que lhe tirara os moldes da mão. Estavam agora ambos contemplando uma visão singular. Duas bigornas realmente grandes em cima do que parecia ser um poço de lava borbulhante. O calor naquele recinto era infernal devido aquilo, mas os dois olhavam a lava como quem olha o fogo crepitante de uma lareira ao fim do dia.

 

- Hefestus-sama... Quando vai me contar sobre meu passado? – Perguntou o ruivo, um tanto vacilante.

 

- Depois... – Respondeu o homem sem pestanejar.

 

            A conversa não passara daquilo. Hitsuki sabia que insistir no assunto só lhe daria mais uma cicatriz no corpo. Jantaram perto um do outro, em silêncio. Não demorou até que o jovem se levantasse e com uma rápida reverência ao cocho ele se retirasse, sumindo na escuridão dos corredores bronzeados.

 

- Por quanto tempo mais você pretende esconder o passado dele, querido?

 

            Uma voz feminina e sedutora rompera o silêncio ensurdecedor do local onde o homem ainda jazia sentado.

 

- Para sempre, oras...

 

            Uma silhueta feminina de curvas perfeitas e usando poucas vestes, mas muito adornada em metais e pedras preciosas se revelava ao fundo. A mulher, loira dos cabelos cacheados, caminhou até o manco e preguiçosamente sentara em seu colo, escorando seu corpo no peitoral do homem e pousando a cabeça em seus ombros.

 

- Ele tem o direito de saber o seu passado... Não pode ficar escondendo dele, não é justo, pobre rapaz...

 

            Sua voz era deveras melodiosa e sedutora. Aqueles dois não eram pessoas normais, aquele não era um lugar normal.

 

- Foi ele que quis assim... Você sabe muito bem... Mais do que qualquer um daquele lugar

 

            Ele disse “daquele lugar” com uma entonação diferente, referia-se a ele com um certo desdém e desprezo.

 

- Não sejas rancoroso, meu amor...

 

- Humpf... Sabes que não gosto de lá... E ele também não...

 

- Vocês têm muito em comum... Tomara que ele não vire um velho ranzinza igual você

 

            Ao dizer isso, a mulher segurou um risinho baixo. Suas mãos percorriam o peitoral marcado por cicatrizes de fogo e metal que aquele homem possuía. Ele a olhou de soslaio, mas não disse nada, conhecia bem o gênio daquela mulher.

 

- Quem imaginaria que o poderoso Hefestus, deus da forja, do fogo e dos metais, temido em nove planos teria como aprendiz um meio-grifo...

 

- Ele fez por merecer... Muito mais do que aqueles “humanozinhos” de Atena

 

- De novo essa história com Atena? – Murmurou a mulher

 

- Humpf... Achei que era eu quem forjava armaduras por aqui... Amadores...

 

            A loira pôs-se a sussurrar uma canção acalentadora próximo ao ouvido de seu amado. Os ânimos se apaziguam com aquilo e logo ele havia esquecido de todos os problemas que tinha.

 

- Ainda me lembro do nascimento dele... Há séculos atrás...

 

            Fechou os olhos naquele momento, voltando no tempo com sua memória fotográfica. Os dois ficaram quietos por um instante e então aquela formosa dona pôs-se a contar a história de Hitsuki. Gostava de relembrar os feitos e tudo o que ele havia passado, Láquesis* tramou um destino longo e intrincado para o meio-grifo, um destino grande e glorioso, mas também cheio de reviravoltas, traições, mortes...

 

 

Láquesis: Deusa pertencente ao grupo das Moiras. As Moiras (Parcas em Roma)  tecem o fio da vida, Cloto é encarregada de criar o fio, ou seja, a vida; Láquesis conduz o destino e Átropos determina o fim. Nem mesmo os deuses interferem no trabalho das Moiras.

 

 

 

 

 

            Ah... Era um dia ensolarado aquele, era sim. Um país distante, a muitos milhares de milhas da Grécia, muito longe daqui. Aquele casal de meio-grifo, sabe-se lá porque tão distante de sua terra natal, caminhavam por formosos  campos de arroz. Os pés daquele homem alado afundavam na área inundada da plantação, carregava a mulher no colo. Ela não parecia ferida, ao contrário dele, que possuía hematomas e cortes por todo o corpo, um corpo tão belo, ah sim, muito belo... Caminhar nunca fora uma especialidade de sua raça, amantes dos céus, das alturas, mas estava impossibilitado agora, agora e para sempre. Aquele homem infelizmente nunca mais sentiria a brisa das montanhas e vento dos vôos,  as paisagens longínquas... E ele sabia disso. Caminhou por horas, dias, sem descanso, sem parar, sem comer. Estaria morto não fosse a resistência de seu corpo guerreiro, trabalhado no ardor da batalha, no fogo da guerra. Sua mulher permanecia desacordada por todo aquele tempo e tempo era o que lhe faltava agora.

            Foi ao entardecer de um dia nublado que eles alcançaram aquela colina. Havia um grande templo ali, se chegaram àquele lugar de propósito ou por puro acaso, nunca saberemos, pois lá seriam seus túmulos. Ele mal se agüentava sobre as pernas, carregara a esposa por dias a fio e só agora podíamos perceber o por quê de sua inconsciência: ela tinha dado a luz. As asas de sua raça eram uma benção, mas também uma maldição. O parto era tão doloroso para a pobre mãe, poucas sequer agüentavam  toda dor que lhe era dada e infelizmente aquela mulher não fora uma exceção.

            Era um dia confuso para aquele pobre homem, mas acabaria logo. Estava a poucos metros da entrada do templo, deixou sua mulher, agora morta, recostada em uma árvore e levou o fruto do amor dos dois até o portão. Seu corpo inteiro doía, perdeu sua esposa, não poderia mais voar e sua vida já escoava por entre os dedos, mas ele sorriu. Sorriu, pois assim aquele pequeno ser o fizera para ele. Poderia uma criaturazinha tão frágil e pequena entender o que estava a acontecer? Eu acho que não, mas aquele sorriso fez toda aquela longa caminhada, as lutas e tudo mais valerem a pena para seu pai. Com um grande pesar deixou seu único filho aos cuidados de estranhos e cambaleou até o corpo inerte de sua amada. Abraçou o corpo gélido da mulher, embora para ele fosse o mais aconchegante que já provara, e ali ficou. Humanos vão para o reino de Hades, com sorte para os Elísios, mas e os meio-grifos? Não são humanos, são... Bestas... Monstros... Como górgonas e esfinges. Para onde vão depois da morte? Para ele pouco importava agora, não a deixaria jamais, sua razão de viver, seu motivo de morrer, se não fosse com ela, que lhe destruíssem a alma então. Ah... O amor...

            Acolheram aquela pobre criança ao escutar seu choro, alguns diriam que por fome ou frio, eu diria que de tristeza. Os humanos que zelavam do local logo notaram a aparência do bebê, asas penosas, orelhas felinas, uma cauda... Não era humano. Aos gritos de “youkai” eles o levaram para o seu senhor. Era um velho de aparência cansada, cabelos completamente alvos e bigode longo de igual cor, a beleza da maturidade, as marcas da experiência, poucos dão valor ao belo por trás da velhice, julgando feio algo tão extraordinário. Embora fosse um estranho e nem ao menos fosse humano, fora acolhido pelo ancião, contra a vontade de seus servos. Mas aquele venerável idoso, tão querido pelos seus discípulos e por toda a comunidade, escondia algo. Ah, os segredos...

            Por muitas décadas viveu ao lado do senhor do templo. Raça magnífica aquela ao qual o jovem pertencia, possuidora de sentidos descomunais, uma vitalidade nunca vista, longevidade ultrapassando o milênio... Tantas qualidades, mas também muitos defeitos, ainda mais na primavera da vida. Violência, selvageria, teimosia... Possuía tantos defeitos quanto penas nas asas. Foram décadas de treinamento para controlar seu ímpeto, por sorte tivera um bom professor. Aquele homem fora como um pai para ele por quase cinco décadas, ensinando tudo o que sabia, coisas que nem seus discípulos mais antigos sabiam, coisas que ninguém mais poderia saber. Seus segredos foram revelados à apenas um de seus discípulos, aquele que ele considerava seu filho, aquele que ele havia inclusive escolhido o nome, o meio-grifo grego, deixado aos seus cuidados no portão do templo pelos seus falecidos pais, Hitsuki.

            Mas a Roda da Fortuna jamais pára, as fiandeiras* nunca cessam de tecer o fio do destino, seu trabalho é incansável e nem mesmo os mais destemidos deuses ousam incomodar o seu tear. Cloto lhe dera a vida ao passo que Átropo retirara a de seus pais, uma “travessura” cruel e comum para as irmãs decrépitas. Mas agora era Láquesis quem fiava a sina do rapaz e ela muito se interessou pelo jovem,  jamais entenderemos o por quê e ninguém ousaria perguntar.

            Apenas Hitsuki sabia do segredo de seu mestre. Saiam às tardes para treinarem sozinhos, mas um dia foram seguidos. O nome daquele que causou a ruína ao antigo templo já consumido pelo tempo fora esquecido, como todas as coisas antigas que somem das mentes dos homens. Ele viu mais do que poderia ver, mais do que queria. Desejava ver alguma transgressão por parte daquele “youkai”, que viera ao templo cinqüenta anos atrás, mas o que viu foram dois monstros. Hitsuki batalhava ao lado de um grande tigre, um tigre imenso e de duas longas caudas felpudas. Suas patas inflamavam o solo e labaredas subiam por suas pernas, sua boca exibia um perfeito par de caninos que lhe trespassavam a altura do queixo. Criatura magnífica, de beleza sem igual, queria o mundo ainda possuir tal magnanimidade. Os humanos são tão invejosos e mesquinhos, como podem não apreciar uma coisa como aquela? A mistura de cores, o fogo rubro lambendo os pêlos dourados que lhe cobriam todo o corpo. As faixas negras que lhe adornavam as costas e as duas caudas... Queria eu poder impedir aquele homem, mas contra a Roda da Fortuna eu nada posso além de observar... Observar aquela guerra sem sentido, contra criaturas tão belas... Deveriam ser punidos com o Tártaro eterno!

            Eram criaturas belas e poderosas, mas de nada puderam contra todo um exército de humanos, com seus arcos, espadas e lanças. Com sorte conseguiram escapar, pois eles podiam voar, ao contrário dos humanos. O meio-grifo era o dono do céu, ali era o seu lugar, sentia-se mais à vontade no ar do que em terra. Ao lado dele corria velozmente seu mestre, ainda em sua forma animalesca, galopando pelo céu como se o ar fosse sólido sobre seus pés. Para Hitsuki tudo estava bem, nunca se apegara muito àquele local por algum motivo, embora morasse desde o nascimento naquela colina. Nada mais fez além de voar ao lado do grande felino dourado pelos céus do oriente.

            Seguiam em direção ao oeste. Os poucos humanos que apareciam pelo caminho e os viam pelo céu corriam desesperados, aos gritos. “Dai youkai! Dai youkai!”. Foram dias de viagem ininterruptos até verem as grandes montanhas. Ao longe Hitsuki via o que seriam grandes águias sobrevoando os topos nevados dos montes. Sua mente permeava-se de perguntas e suposições sobre o por quê de sua viagem até o lugar, mas não perguntou nada ao ancião que ainda jazia em sua forma feral. “São como eu! São meio-grifos!” Bradou o jovem rapaz. A alegria transbordava sua alma, seus potentes olhos podiam ver, mesmo a dezenas de quilômetros, os sinais inconfundíveis que lhe davam fama: asas, orelhas, cauda, forma humanóide; não tinha dúvida sobre o que via, seus olhos não o estavam enganando. Veloz feito uma flecha ele disparou na frente. O tigre não o acompanhou, pois tinha ciência que nos céus não havia criatura mais rápido que aquela.

            Viu dezenas, centenas, milhares de sua raça. Todos eles voavam livremente pelo céu, pois muito poucos estavam aninhados nas encostas das montanhas. Se todos eles resolvessem pousar não haveria cordilheira que lhes desse abrigo. Em meio as suas tarefas rotineiras os seus não notaram a chegada do meio-grifo de fora. Hitsuki permanecia maravilhado com tudo aquilo, jamais imaginou ver tantos iguais a ele, finalmente sentia-se em casa. Em muito tardaria em lembrar-se de seu mestre, o que era uma pena, pois jamais o veria novamente.

 

Fiandeiras: As três deusas do destino, já citadas uma vez.


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Notas finais do capítulo

Mais uma vez eu peço que comentem, o que gostaram e o que desgostaram.