Sem Você. escrita por Letícia Martins


Capítulo 1
Antes - O Primeiro Dia.


Notas iniciais do capítulo

O "Antes" colocado antes do nome do capítulo é para avisar que tudo o que será contado a seguir aconteceu antes do grande acontecimento. Quando for depois, colocarei antes do título do capítulo também.



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Abro os olhos e sorrio. Está chovendo, pelo menos isso. Mas ainda não me acostumei com a vista por detrás da minha persiana salmão no meu novo dormitório. As coisas estão diferentes demais.
Me levanto, vou até o banheiro e me olho no espelho, confirmando o que já suspeitava: estou exausta. Meus cabelos negros presos em um coque parecem quebradiços e sem brilho, e as olheiras são tão grandes que quase escondem meus olhos azuis. Além de tudo, minhas pernas estão me matando.
A viagem de Hasburg até aqui foi demorada e exaustiva. A aeromoça também não me ajudou, negando qualquer tipo de diversão que pedi.
–Posso acessar a internet pelo celular? –questionei.
–Não. –ela respondeu.
–Sudoku? –insisti
–Senhorita, não permitimos nenhum celular ligado durante o vôo. –um sorriso falso e ensaiado se formou em seu rosto, como quem diz “Opa! Acabei com a sua vida!”
Pela janela do avião, pude ver a cidade de Yeltown surgindo devagar. Como dizia minha melhor amiga Tracy, esta é a cidade fantasma.
As ruas são quietas, com pouca iluminação e casas padronizadas. O shopping center mais próximo é a duas horas de carro do colégio, então as pessoas compram suas necessidades em butiques espalhadas pela cidade.
Embora a praia fique a vinte minutos, não é muito usada pelos moradores.
O clima é bem frio e os dias são quase sempre nublados, o que me impede de manter o bronzeado.
Yelville é, visivelmente, o maior prédio da cidade, bem colorido, com paredes pintadas em listras intercaladas vermelhas e amarelas e um letreiro em letras marrons que diz “Academia Particular de Yelville”.
Esta é a minha nova escola, entupida até o extenso quarto andar de pessoas que nunca vi na vida. Pessoas com quem terei de conviver até o final do ano.
A aula de hoje é a minha primeira, e começa daqui a quarenta minutos. Lavo meu rosto, prendo meu cabelo em um rabo e visto minha calça jeans preferida rasgada na altura dos joelhos, minhas botas marrons e uma blusa de mangas compridas e capuz azul.
Ainda não tenho os livros didáticos do ano, portanto não há muito o que carregar a não ser pelo meu estojo, que enfio na bolsa roxa junto com meu Ipod e um pequeno folheto de vinte páginas que, pelo o que posso ler, é o meu “Manual do Novo Aluno”.
Quando cheguei, ontem a noite, o vi em cima da escrivaninha de madeira clara polida, mas estava cansada demais para descobrir o que era.
É bom ter algum tipo de orientação no primeiro dia de aula, uma vez que ninguém apareceu para me dar as boas vindas ou informações básicas.
Saio do meu dormitório e ando pelo corredor, observando os números amarelos nas portas e imaginando quem dorme em cada quarto. As paredes são pintadas de verde escuro e o chão é coberto por um carpete bege.
Desço as escadas de madeira e me deparo com dois enormes corredores, um à minha frente, o outro à minha direita.
À minha esquerda está a porta de entrada, grande e feita de vidro. Não sei para que corredor devo seguir até que encontro uma pequena placa cinza com vários escritos e setas em azul pregada na parede ao meu lado, acima do corrimão.
Sigo o corredor da direita, que pelo o que li, dá no refeitório.
Ah. Meu. Deus.
Tem pelo menos cento e cinquenta pessoas espalhadas pelas mesas redondas e mais cinquenta na fila do que deve ser a cantina, um cômodo coberto por lantejoulas, que deve ser a cozinha, com um balcão a frente, onde são feitos os pedidos no caixa.
Para o meu alívio, ninguém pareceu notar a estranha garota nova com cara de quem está muito perdida e sem saber o que fazer.
Tenho duas opções: ou me sento em alguma mesa nos fundos do refeitório que parecem desocupadas e fico lá observando a todos até as aulas começarem ou posso pegar um delicioso prato de ovos com torradas que vejo em uma foto pendurada na parede da cantina e me esquecer, só por dez minutos, o que terei de enfrentar hoje.
A segunda opção me parece mais saborosa, então sigo pelos cantos até a cantina desviando-me de mochilas e pés esticados e entro na fila que leva até a atendente do caixa, uma mulher de cabelos vermelhos e olhos verdes que deve estar nos seus sessenta anos. Enquanto espero pego o meu manual na bolsa e dou uma olhada, procurando por informações necessárias e acabo descobrindo que não terei de pagar pelo meu lanche e nem pela minha -ninguém merece- blusa do uniforme. Acho que como é o primeiro dia não terei de usar nenhum uniforme.
Estou quase chegando no item número 18 de “Coisas Que Não Se Deve Fazer em Sala de Aula” quando uma mão com unhas ruídas pintadas de vermelho e vários anéis pousa sobre o papel, me impedindo de ler.
Olho primeiro para os sapatos: coturnos pretos e bastante imundos, depois para as calças de couro também preto, para a blusa do uniforme embaixo de um colete -olha que novidade- preto. Só depois posso ver o rosto com olhos escuros e quase nenhuma maquiagem. Rosto bonito. Seu cabelo loiro esta preso em uma trança de lado e a única parte solta era a franja de lado que cobria toda a testa. Meu primeiro pensamento foi de que aquele rosto e cabelos lisos não combinavam nada com o visual da garota.
–Posso te ajudar? –finalmente perguntei a garota, que me olhava com um sorriso no rosto.
–Claro que pode, meu dormitório fica na frente do seu e te ouvi chegando noite passada... Pensei que poderia precisar de ajuda para se localizar neste colégio. Poderíamos ser amigas.
–Eu...
–E a propósito, meu nome é Jessica, mas pode me chamar de Jess. –a garota parece simpática, e bastante entusiasmada com o primeiro dia de aula, totalmente ao contrário de mim. Seria legal conhecer bem as pessoas antes de ter algum amigo de verdade, mas Jessica parece o tipo de garota com quem eu me daria bem.
–Sou Hayden. –respondo- Hayden Mcfield.
–Uau, falou até o sobrenome. –Ela da uma gargalhada alta. Está me zombando? Zombando meu nome, provavelmente. Ou o sobrenome?
–É brincadeira! –ela ri novamente. Forço um sorriso. -Então Hay, não se importa que eu te chame assim, não é? O que vai querer para o café da manhã?
–Acho que vou querer aquele prato de ovos com torradas e não, não me importo com o apelido. –Chega a nossa vez no caixa, Jess toma a minha frente e faz nossos pedidos em um sotaque francês perfeito. Percebo que estarei perdida se a moça do caixa falar em outra língua. A atendente sorri e grita o pedido para o cozinheiro –felizmente, na minha língua- atrás de uma pequena abertura com um balcão onde são colocados os pedidos para que uma outra mulher entregue os pratos para os alunos que esperam do lado do caixa.
A atendente com quem Jess falava lhe entrega uma ficha e a garota me puxa para o lado, naquela outra fila onde esperamos para pegar o prato. Nosso pedido logo sai e Jess me leva para uma mesa onde estão sentadas três pessoas. Duas meninas e um menino.
–Pessoal, essa é Hayden. –ela me apresenta, e da uma piscadela –Hayden Mcfield.
–Eu amei sua bolsa, você tem que me falar onde comprou! –passo o olhar pelas meninas e então percebo que a voz veio do único menino sentado na mesa. Agora entendo porque é o único. Ouço uma risada e percebo que é a menina sentada ao lado dele. Ela tem cabelos loiros e franja, como Jessica, mas seu cabelo está solto e é ondulado até um pouco acima da cintura. Seus olhos são azuis e ela usa aparelho.
–Que falta de modos, Rubens! – ela se vira para mim- Sou Carla e também adorei sua bolsa.
–Na verdade, minha avó me deu de Natal, não sei onde comprou, mas posso perguntar se quiser. –respondo a pergunta do garoto, mas ele não está mais interessado na resposta.
–Então quer dizer que se eu falar meu nome primeiro eu tenho modos e se eu falar depois não tenho? Interessante. –Rubens e Carla entram em uma discussão sobre quem tem mais modos. Eu rio com a situação.
Logo percebo que a terceira menina, com cabelos ruivos, a franja presa para trás com uma presilha e óculos, está quieta e muito concentrada em uma folha que parece ser uma espécie de jornal.
–E você, qual o seu nome? –a menina olha para mim e arregala os olhos pretos, como quem acabou de perceber que estou aqui. Em seguida, abre um sorriso.
–Sou Amélia, desculpe não ter respondido você é que estou muito concentrada...
–No jornal de segunda, já sabemos. –Jess a interrompe e ela volta a ler o jornal. Logo me lembro de uma coisa que queria perguntar a Jessica.
–Por que fala em francês com a moça do caixa? Devo me preocupar em aprender essa língua também? –sorrio.
–Não, fique tranquila. –ela da uma risada –Só falo assim com Mary porque ela é francesa e gosta quando pode falar sua língua com os alunos. Me contou isso no primeiro dia em que estive aqui. Falando nisso, por que está aqui?
–Meu pai acha que o “método de ensino é de perfeita qualidade, mocinha” –explico, imitando a voz grossa e rouca de meu pai e logo em seguida, mexo o nariz como quem está mexendo o bigode grisalho dele. Rimos.
–O mesmo aconteceu comigo –Carla diz- mas com o tempo você se acostuma com Yelville. É bem legal e, as vezes, aos sábados, temos passeios por algum lugar importante para a história da cidade. Ou seja, nada de aulas!
–Temos aulas nos sábados? –pergunto, incrédula. Isso significa que terei só os domingos para sair e me divertir um pouco. É totalmente injusto. Ninguém responde minha pergunta, estão todos olhando para onde Rubens está apontando.
–Mal chega aqui e já desperta o olhar mais sexy de Yelville! Puxa, estou impressionado! –Demoro um minuto até perceber que está falando comigo.
–Desculpe, o que?
–Collin Fiérce. Está caidinho por você, e se não estiver, encontrou algo de muito interessante nesta mesa pois não para de olhar pra cá um só minuto.
Ele está certo, um garoto loiro e musculoso sentado em uma mesa junto com outros garotos, que berram algo incompreensível, está me olhando descaradamente e não desvia o olhar uma única vez. Sinto as bochechas corando.
–Deus, Collin é sempre tão discreto. –Jessica resmunga. Por um momento penso que ela é afim dele mas, logo mudo de ideia quando vejo a expressão de desgosto em seu rosto.
–Mas é um gato, certo Hay? –Carla diz– Se fosse você iria lá conversar com ele. Começo a me virar para responder que não estou interessada em garotos agora, mas meu olhar para em uma única mesa. No fundo do refeitório, onde um garoto está sentado sozinho, lendo um livro e bebendo uma latinha de coca-cola.
É tão bonito que desaprendi como respirar. Seu cabelo é castanho escuro e está desarrumado como se ele não estivesse nem aí para a aparência, mas isso o deixa ainda mais charmoso. Está usando uma calça jeans larga e a camisa sem graça com a estampa da Yelville fica totalmente melhor nele. Quero me levantar, chegar mais perto e descobrir no que ele está pensando.
Ele levanta o olhar e seus olhos encontram os meus. Olha só, estou perdendo o ar de novo. Mas consigo desviar o olhar e vejo que todos sentados em minha mesa olham pra mim como se fosse maluca.
–Está tão vermelha quanto a carne mal passada que comi ontem no almoço! –Rubens praticamente berra e faz uma careta como quem está sentindo nojo.
–Shhhhhhh –faço com o dedo na frente dos lábios.– fale baixo!
–Pra quem estava olhando? –Jess questiona com um ar desconfiado. Todos me encaram, esperando por uma resposta, até mesmo Amélia se desgrudou de seu jornal e me olha com curiosidade. Dou uma última olhada rápida no garoto.
–Para ninguém! –respondo rapidamente. Talvez rápido demais. Jessica já entendeu tudo e está me olhando de boca aberta.
–Sério mesmo? Está afim de Lou Ninguém-sabe-o-sobrenome?
–Ah não, minha querida. Não vai querer se apaixonar por ele. É esquisito e nunca fala com ninguém. Uma grande perda de tempo. –Carla me aconselha. Ela está certa, sei que está. Só perderei meu tempo com um cara desse jeito. Além do mais, não quero me aproximar de garotos agora. Talvez apenas de Rubens pois, bem, não faço o seu gênero.
Mas algo dentro de mim deseja conhecê-lo, tirar dele informações que nunca ninguém conseguiu tirar.
–Tudo bem gente. Não vai acontecer. –dou uma última olhada para ele e descubro que está olhando para mim. Seu rosto assume uma expressão complicada de se entender. Talvez raiva, ódio, tristeza. Ele fecha seu livro com força, se levanta e vai em direção a saída do refeitório. Rapidamente me levanto com a intensão de ir atrás dele.
–Aonde vai? –Rubens pergunta. Não pensei nisso, vou atrás dele e então faço o que? Seria estupidez. Mas algo me veio a cabeça.
–Ao banheiro, já volto.
Sigo em direção a saída e sigo pelo corredor tentando encontrar alguma placa ou sinal que indique onde fica o banheiro feminino. Vou até a escada e olho para a placa que vi mais cedo, que me indicou o caminho ao refeitório.
Ando pelo corredor em frente a escada e antes que chegue ao banheiro feminino uma outra porta se abre, a do banheiro masculino.
Lou sai de lá. Olha para mim e se assusta. Que droga, eu sou mesmo muito feia. Entenderia perfeitamente se ele saísse correndo com medo de uma menina estranha que o fica encarando e o segue pelos corredores. Mas ele faz o contrário, anda até mim e para a poucos centímetros, com os braços cruzados.
–O que está fazendo? –ele pergunta, um tanto quanto grosso. Seus olhos são tão azuis que quase iluminam o local por onde passam e sua voz é rouca. É uma bela voz, eu poderia ouví-la o dia inteiro. Parece irritado e esperando por uma resposta. Decido que não preciso ser educada com ele.
–Procurando pelo banheiro feminino mas, olhe só, acabei de achar. –começo a andar e passo por ele.
–Estava me seguindo? –eu paro e me viro lentamente. Droga, não sei o que dizer.
–Hmm... Ã... Não! Não estava. Como eu disse estava procurando o garoto. –ele me olha confuso.
O. Que. Há. Comigo?
–Quero dizer, o banheiro. É isso o que estava procurando. –ele para e me avalia por um instante. Imagino se isso é bom ou não.
–Parece nervosa.
–Estou apertada, só isso. –faço uma cara de quem está sofrendo para segurar o xixi e acho que o convenci.
Ele se vira sem dizer nada e sobe as escadas. Isso é simplesmente ótimo. Consigo deixar o garoto mais bonito que já vi na minha vida assustado. E ele provavelmente pensa que sou maluca. Boa, Hayden!
Entro no banheiro e pretendo não sair até o fim do ano.


Hayden Mcfield.


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