Abri os olhos lentamente e estranhei quando senti o sol forte entrando pelas cortinas. Já devia passar das nove horas, como minha mãe não tinha me acordado? Pisquei lentamente, me acostumando com a claridade e lembrei: era dia da colheita. No mesmo instante perdi o sono e me levantei rapidamente, sentindo um nó no meu estômago. Geralmente era assim que eu me sentia nos dias de colheita, mas hoje o nó parecia maior que de costume. Tentei imaginar o porquê.

Minha rotina era sempre acordar cedo, bem mais cedo que hoje, já que eu precisava ajudar meus pais a fazer os pães que seriam vendidos mais tarde, para depois ir para a escola, aprender sobre a história de Panem, o nosso país fundado após guerras e tragédias que quase acabaram com o mundo, e sobre nossos treze distritos, e como tudo ia perfeitamente bem, até a rebelião que iniciou os dias negros. O fim dos dias negros se deu, segundo a história, com a destruição do distrito treze, e isso trouxe prosperidade para toda a nação. Grande piada. Eu não sabia muito bem como eram nos outros distritos, mas com certeza a prosperidade não reinava por aqui, no doze.

Hoje , como era dia de colheita, éramos dispensados da escola. Eu acho que nenhum de nós seria capaz de estudar pensando no que aconteceria a seguir, mas esse não era o motivo para não haver aulas e atividades no centro. As pessoas do capitol estavam trabalhando no edifício da justiça e nas ruas próximas, fazendo tudo parecer um pouco menos miserável que sempre, e instalando os telões e câmeras pela praça central. Enquanto isso nos recusávamos a sair de casa o quanto possível, e tentávamos dormir. Se é que alguém conseguia dormir.

Fui ao banheiro e lavei meu rosto, em seguida voltei para meu quarto. Eu poderia até dormir mais, mas não acho que conseguiria, e também não queria descer, então fiquei sentado na cama, até que eu ouvi meu pai exclamando alguma coisa sobre esquilos.Saí correndo para a janela do meu quarto, que dava para a rua, e olhei para baixo. Meu pai estava na porta da nossa padaria conversando com um esquilo na mão, mas infelizmente não era com quem eu queria ver. Pelo contrário, aliás.

Gale. Apenas o Gale, ela não estava com ele.

 Bufei . Eu não gostava de Gale, nem um pouco, e eu não sou o tipo de pessoa que não gosta das pessoas sem razão. A verdade é que eu sentia uma inveja incontrolável dele, e não era pelo fato dele ser vários centímetros mais alto que eu, ou porque as garotas do colégio sempre davam risadinhas e cochichavam quando ele passava. Eu não ligava para essas garotas. O único motivo era ela: Katniss.

Eles eram próximos, mas eu não sabia o quanto. Algumas pessoas achavam que eles eram primos, mas eles nunca afirmavam nem negavam nada. Isso me deixava ainda mais irritado, porque uma parte idiota de mim ainda nutria alguma esperança, ainda dizia que talvez eu pudesse ter algo com ela. É claro, para essa parte do meu inconsciente fazia todo o sentido ela sentir algo por mim, sendo que nós nunca nem tínhamos nos falado.

Balancei a cabeça rindo sem humor e sentei na cama de novo.Katniss e Gale. A colheita. Não era um dia com pensamentos bons na minha cabeça, pelo visto. Esperei a porta lá de baixo bater e desci, para começar a ajudar meu pai na padaria. Me concentrei o máximo possível em fazer qualquer coisa que não me deixasse pensar, enquanto fazia alguns biscoitos que provavelmente seriam dados para algum dos trabalhadores que estavam instalando as câmeras para a capitol,ou talvez para as famílias felizes de sobreviveram a mais uma colheita ou alguma família desafortunada que tiver alguma criança escolhida. Geralmente nós fazíamos isso, como uma tentativa de consolo. Eu sabia que isso não consolava ninguém, no entanto. Duas crianças vão ser escolhidas para matar ou morrer nos jogos vorazes, duas famílias daqui darão adeus para seus filhos ou irmãos, e no nosso distrito ser escolhido era igual a ser morto. Só tínhamos um sobrevivente dos jogos, e ele ganhou a mais de vinte anos.

Depois de um tempo trabalhando, minha mãe gritou para que eu fosse separar minha roupa para a colheita. A colheita era também o dia em que as pessoas tiravam a melhor roupa do fundo do armário para usar, afinal o distrito doze poderia ser o mais pobre de todos, com pessoas morrendo de fome na rua, mas deveríamos estar apresentáveis para o capitol. Para aqueles que vão nos assistir sendo escolhidos para a morte certa.

Morte. Toda minha frustação e raiva por hoje tinha dado lugar ao medo. Quem poderia ser escolhido? E se fosse algum conhecido? Passei na casa da Delly, uma das minhas melhores amigas para tentar afastar esses pensamentos, mas enquanto ela comia o pão que eu tinha levado para ela e dava risada, imitando o sotaque dos moradores da capitol, eu só conseguia pensar: e se ela fosse escolhida? Delly tinha dezesseis, assim como eu, então nós dois ainda estávamos no grupo de risco. Tentei imaginar minha amiga, com seu cabelo loiro e encaracolado, em alguma arena projetada pelo governo e senti minha garganta fechando. Ela não sobreviveria. Com certeza mais do que eu, se fosse para lá, mas não muito.

Enquanto a hora foi passando, meu terror só aumentava. Minha cabeça girava com todas as pessoas que eu conhecia que tinham idade o bastante para serem escolhidas. Meu irmão.Delly. A maioria dos meus colegas de escola. As crianças que moravam na parte mais pobre da cidade. As crianças que moravam na parte mais “privilegiada”, mas que com certeza morreriam se fossem escolhidas, incluindo eu. E a pior de todas as hipóteses: Katniss.A vida da Katniss era a que eu mais temia, por mais estranho que isso parecesse. Eu lembrava daquele dia em que eu provavelmente salvei sua vida, há tanto tempo atrás, e se ela fosse escolhida, eu não poderia fazer de novo.