A Sala Escarlate escrita por Kisuke-san


Capítulo 5
Destino E Seus Bonecos




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             Decerto eu fiquei muito perdido com todas aquelas expressões e siglas de máquinas exóticas. Mas à medida que as coisas acontecerem, eu mesmo farei questão de explicar cada uma delas. Mas uma coisa que não saiu da minha cabeça foi o que rodeava a mente daquela gente.

            Centradas, polidas, quase sem falhas aparentes. Pré-potentes, soberbos e até meio cegos e egoístas. Apontar defeitos é uma falta de educação de minha parte, mas tenho que contar o que penso. E entre as outras coisas que pensei foi como elas pareceram preocupadas com um incidente que pareceu tão ínfimo aos olhos de Devon. Não sei quem ele é ou como ele procede, mas isso não acalma minhas suspeitas. Pelo contrário, apenas atiça minha curiosidade mais ainda.

            Mas não vou falar disso por hora. Tem coisas acontecendo no momento. Uma das coisas que não mencionei é que meu pai chegaria hoje, terça-feira. É, no meio da semana. Ele é um pesquisador, junto com minha mãe. São geniais. Eles encontram soluções para as pessoas enquanto estão acordados. É estranho falar assim. Mas o importante é que eles disseram que tinham descoberto algo impressionante a respeito da mente humana. Tem alguma coisa haver com psicologia ou física. Não sei que tipo de ligação essas duas tem, mas seja o que for eles parecem empolgados.

            Arrumei-me e fui para a escola. Como disse estava no meio da semana e meu pai ficaria irado se soubesse que eu tinha faltado para esperá-los. Ele gosta que eu tenha responsabilidades. Meu pai é uma figura muito incomum. Falarei mais dele depois. Encontrei Efros no corredor. Ele abriu um daqueles largos sorrisos ao ver-me. Coisa de amigo, eu acho. No entanto, dessa vez eu retribui. Fiz o máximo que eu pude, mas consegui só torcer a boca estranhamente, parecendo mais uma careta de dor do que um sorriso. Meu nível de “sem-gracisse” aumentava cada vez mais.

            Ele riu. Não era comum eu ter essas tentativas de sorrir. Mas ele entendeu e viu que eu parecia mais animado hoje.

            - Agora você está tentando ser normal ou aconteceu algo bom de verdade?

            - Se eu contasse, você não acreditaria. Mas… É. Meus pais voltam hoje. Posso parar de comer comida congelada, agora.

            - Não entendo você. Toda vida que seus pais viajam vocês fica nessa de não querer que os empregados fiquem trabalhando. Cara, você é podre de rico! Devia ter ao menos um pouco de orgulho disso.

            - Nem eu me entendo. Mas eu gosto de ficar sozinho, obrigado. Além do mais, se eu fosse um pouco mais orgulhoso do que já sou, eu me mataria.

            - Você sempre vai ser esquisito assim?

            - Acho que sim.

            - Legal.

            Efros deu uma tapinha nas minhas costas e fomos para a aula. Biologia. Uma matéria não-necessária, na minha opinião. Mas é claro que eu estava sendo egoísta. Todas as disciplinas são necessárias, por mais que isso me irritasse.

            Ele era um cara muito simpático. Um dos caras mais legais que conheci. Usava sempre um casaco preto e um All-Star vermelho do tipo bota. Depois eu que era esquisito... Mas eu até me divertia com isso. Sentia-me totalmente liberto desse meio enfadonho em que eu vivo. Eram poucas as pessoas que me causavam essa sensação. Ele tinha uns olhos castanhos que ora me divertia ora me intimidava. Seus cabelos pretos sempre estavam meio desengonçados.

            Tinha consciência de que desde a minha entrada na sala, eu estive agindo diferente. E Efros percebeu na hora. Foi uma das vezes que ele me intimidava com o olhar, mas eu era orgulhoso demais para me deixar levar, e ele sabia disso. Era depois da aula.

            - O que aconteceu?

            - Se eu contasse você não acreditaria, já disse.

            - Ora vamos! Você sabe que não precisa mentir pra mim, então eu sempre vou acreditar no que você disser! Então, o que foi?

            Sempre detestei quando ele insistia em uma coisa que eu não queria dizer.

            - Olha, não é nada. É que meus pais chegam hoje e eu estou meio confuso.

            - Hum… Quatro meses…

            - É, quatro meses que não os vejo. Faz um bocado de tempo… É estranho. Você sabe como eu me sinto em relação a eles.

            - O velho lance da inferioridade…

            - É. Eu sinto como se não fosse capaz de fazer tudo o que eles fazem, apesar de ser meu sonho seguir a carreira cientifica, como eles.

            - Cara, deixa rolar. Sei lá o que pode vir pela frente! Eu acredito que você é um cara que tem muito potencial. Só precisa ser um pouco mais paciente e fazer mais por onde seus pais terem em mente que você é mesmo capaz.

            - Você deve ter razão… Bom, eu tenho que ir agora. Meus pais já devem ter chegado.

            - Mande lembranças a senhora Cliff.

            - OK. Tchau.

Por sorte, consegui engabelá-lo com desculpas, não que isso me animasse muito. Mas sim. Por trás da minha cabeça dura e uma grande dose de orgulho, era assim que eu me sentia em relação aos meus pais. E falo tanto neles que até me esqueço de dizer o que realmente me perturba com a sua chegada.

            Demétrio Cliff, meu pai, viajou com minha mãe, Nora Cliff, para o Japão, onde se constatava muitas pessoas sofrendo de estresse. Essas pessoas apresentavam quadros de perturbação mental e alguns sonhos esquisitos. Assim como eu, eles sempre foram muito curiosos e após concluírem um estudo sobre desmaterialização de objetos (que não teve sucesso), resolveram pesquisar sobre o assunto. Financiados pelo Governo japonês, eles acabaram descobrindo que as pessoas afetadas pelo estresse tinham sintomas de exaustão, como se o corpo não descansasse nem um minuto se quer.

Depois de submeterem essas pessoas a baterias de exames e observando seu sono, perceberam que as ondas cerebrais delas sofriam distúrbios (lembro-me de Devon falando alguma coisa sobre isso). O ser humano utiliza aproximadamente 7% do cérebro, mas no caso dos pacientes testados, 40% deles parecia aumentar a atividade cerebral, apresentando indicies de até 20%. O problema é que muitas pessoas não suportam isso e acabam tendo colapsos. Morrem.

Eu também achei impressionante. Eles estavam eufóricos pelo telefone, quando me deram a notícia. Duas semanas após esse comunicado, criei coragem e consegui me libertar daquele pesadelo da Sala, e acabei descobrindo mais do que imaginei. Sinto-me um boneco do destino quando penso que tudo isso tem uma ligação. E é isso que me perturba. O fato de o Passo estar envolvido (e agora eu também) nesses distúrbios mentais das pessoas me incomoda de um jeito... Incômodo. É como se alguém matasse uma pessoa na sua frente e pedisse para você segurar o revolver enquanto ele vai ao banheiro (e nunca mais volta).

Lógico que não era bem assim, mas foi o melhor jeito que encontrei para explicar que agora eu sou cúmplice ou que ao menos tenho alguma coisa haver com isso. Mas o passa pela minha mente é como e por que isso tem acontecido de uma hora para outra.

Vejo a entrada da minha casa. Um exagero. Uma mansão enorme onde deveriam morar apenas quatro pessoas (meu irmão é militar e por isso não mora conosco). Mas eu gostava de lá. No portão, avisaram-me que “o senhor e a senhora Cliff” já haviam chegado. Pelo visto, eles mal chegaram e já adequaram a casa de acordo com seu gosto . De manhã cedo, o porteiro estava de folga, junto com o resto dos empregados. Mas o que eu podia fazer contra a vontade deles? Apenas entrei e fingi que estava tudo bem. Digo que fingi porque não estava tudo bem. Estava cheio de coisas para pensar, do tipo “como essa tal pesquisa pode me afetar”. Provavelmente minha mãe diria que eu estava muito magro e meu pai diria que eu deveria fazer um esporte. De qualquer forma, era bom tê-los em casa.

- Oh, meu filho! Que saudades! Trouxe uma daquelas coleções dos quadrinhos que você gosta.

- Mangás. Valeu mãe! Er… Eu não tenho nada para a senhora.

- Ora, não seja bobo. Você manteve a casa em bom estado. Podia ter incendiado!

- A senhora andou lendo meus livros de Desventuras em Série? …! Por isso estavam faltando alguns!

- E você vai me dizer que a casa incendiar misteriosamente não é possível?

- Ok, mãe, a senhora que está dizendo. Mas quando começar a ler esses livros não se deixe levar por eles, e me avise quando pegá-los.

- Sim, senhor. – Ela riu. Era sempre simpática assim.

- Cadê o pai?

- Foi organizar uns livros na biblioteca. Vá ajudá-lo, querido.

Rumei para a biblioteca. Ele estava na escada, perto da prateleira mais alta, arrumando livros com seus óculos de leitura.

Meu pai era um homem alto, com cabelos negros e olhos cor de mel. Robusto para um cientista, mas não gordo. Fazia um belo par com minha mãe, com seus olhos castanhos escuros e seus longos cabelos negros. Ele nem ao menos tirara o jaleco típico de trabalho.

- Livros novos? – Perguntei, alteando um pouco a voz para que ele escutasse com clareza.

- É. Sobre psicologia. Achei que ia servir depois de tudo o que vimos lá no Japão.

- Não foi divulgada ainda, não foi? A pesquisa…

- Não. Não pereceu concreta aos olhos do Estado. E eles não queriam colocar medo na população.

- Entendo.

- O que você achou? – Surpreendi-me com a pergunta.

- O Governo japonês é muito cauteloso. A parte do “não pareceu concreta” soou como uma desculpa esfarrapada.

- Não! Me refiro à pesquisa. – Ele disse, rindo.

- Ah! Interessante. Só achei um pouco estranho – Eu tinha que disfarçar, fingir que não saiba de nada. Que não sabia mais do que ele.

- Eu também achei. Mas vamos deixar isso pra lá. Acabei de chegar e não vou falar de trabalho.

Um dia normal. Pais normais, se não fosse pelo super-cérebro deles. Quase hora de dormir. Comentava-se na casa alguma coisa do tipo “o porteiro disse para o jardineiro, que disse para a cozinheira, que disse para a faxineira, que disse para minha mãe, que disse para o meu pai, e que eu acabei sabendo”: teríamos vizinhos. Há muito tempo não os tínhamos. Os últimos foram embora depois que uma das experiências do meu pai deu curto circuito e ao invés de queimar o nosso gerador, queimou o gerador deles. Ainda não descobri como isso aconteceu. Mas até o outro dia não saberíamos quem seriam, então, eu não ia me preocupar com fofocas de vizinhança. Além do mais, era hora de voltar ao Passo mais uma vez.


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