Conversando Com Os Anjos escrita por glassmotion


Capítulo 4
Capítulo 4




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“I still see you

Inside of this God-awful house.

You move awfully quiet now.

And I still feel you everywhere.

You told me this has always been worth living,

But what’s really worth living anymore?”

[Sleeper 1972 - Manchester Orchestra]

            Você sabe que ele não vai voltar. Sabe que o que foi feito foi feito, não há como voltar atrás. Frank não vai voltar. A velocidade do carro se certificara disso. A velocidade causada pelo seu pé fundo no acelerador, causada pela sua teimosia. A batida forte, um corpo destruído. E você sente a culpa - que você merece sentir - dando nós nas suas entranhas.

            As luzes fortes pareciam estar ali para deixar exposta cada pequena parte sua. Sua perna esquerda, engessada até a coxa. Suas mãos cheias de pequenas cortes - assim como seu rosto. O inchaço na sua testa. A marca perfeita do cinto de segurança no seu torso e seu pescoço, ardendo, queimando, coçando. A barriga ferida, ameaçando infeccionar - algum metal retorcido o cortara quando Jepha puxou-lhe do carro. Mas hey, ele salvou sua vida. Você teria virado churrasco se ele não estivesse ali. Você deseja que ele nunca tivesse aparecido.

            Você quer que a dor pare, mas ao mesmo tempo você não quer que ela se vá. Você pode ser estúpido, mas não é injusto, e o que há de mais certo do que você pagar pelo que fez? Você se recusa a tomar os analgésicos que a enfermeira te traz. Você está agindo como um garotinho idiota e mimado. Você é a mais pura escória, sendo um merdinha completo, uma vergonha para sua família e seus amigos - você matou um garoto de ouro. Você pegou a vida de uma pessoa maravilhosa e a atirou ao vento. Você o destruiu, por puro egoísmo e pirraça. Você merece a dor. Você deseja que tivesse sido você no lugar dele. Você não quer mais ficar naquele lugar.

            Você quer ir embora. Ir embora e não voltar, nunca mais. Não voltar à realidade e à consciência - à culpa que o engolfou e não mais irá sair. Você quer que isso pare. Você quer parar, e as pessoas tentam aplicar-lhe injeções - você não quer. Você se debate por razões que não são claras nem mesmo a si próprio. Você é ridículo. Você merece essa dor, você merece pior. Você sente todo seu corpo ficar entorpecido - o que lhe aplicaram? Você não sente nada por fora. E assim como um homem cego tem melhor tato, seu corpo entorpecido maximiza sua dor interior. Aquela que remédio algum poderá tirar de você, nunca, jamais. A dor de ter tirado a vida de Frank.

            Eu adoro você. Completamente.

            **

            Gerard abriu os olhos.

            “Heeey,” veio uma voz. Bert. Gerard não respondeu, franzindo o rosto e mentalmente amaldiçoando o sol, as lâmpadas, a si mesmo. “Como você está se sentindo?”

            Gerard virou o rosto lentamente e lançou ao amigo um olhar que dispensou palavras. Bert estava sentado ao lado da cama do hospital, do lado da janela - o sol lá fora denunciava que já devia ser metade da manhã. Gerard sentia como se seu corpo tivesse sido moído e colado de volta - seu olho esquerdo fora finalmente arrancado? Onde estaria o olho de Frank, babaca?

            “Sua mãe foi buscar umas roupas,” Bert informou após alguns segundos de silêncio. “Talvez você possa ir pra casa hoje à noite... seu pai disse que o depoimento de antes vai ter que ser o suficiente, ele não vai deixar te incomodarem mais com isso.”

            Gerard balbuciou alguma coisa que Bert não entendeu. “Eu vou ser preso?” Ele repetiu, enunciando as palavras claramente, olhos fixos no teto manchado da enfermaria.

            “Não! Não, Ger, não foi culpa sua, ele te segurou...”

            Algo que se parecia com um sorriso (mas que era mesmo uma careta) apareceu no rosto de Gerard. “Não ousem colocar a culpa disso nele,” murmurou, o queixo retorcido. O ossinho fora da pele, a luva desaparecida.

            Bert suspirou, aproximando-se da cama. “Ninguém disse isso, Gerard. Não foi culpa de ninguém, foi um acidente.”

            “Eu estava bêbado.”

            Bert levantou, entrando no campo de visão dele. “Vocês dois estavam, mas seu pai conseguiu esconder isso e se você abrir a boca, eu acabo com você.”

            Foi só ali que Gerard realmente olhou para Bert. Ele havia passado a noite falando com a polícia, então ainda usava as roupas da festa. O que significava que elas ainda estavam sujas. De sangue. Sangue de Frank. Porque Frank havia sangrado, porque a cabeça dele havia se partido e porque Bert foi quem o tirou de cima do capô em chamas. Gerard abaixou o olhar para as mangas da camisa dele, vendo as manchas que resistiram à água da chuva. O canto das unhas de Bert, mal lavadas, tinha sangue seco circundando as cutículas, sangue que veio do corpinho violado que Gerard amara.

            A imensa marreta invisível novamente atingiu a cabeça do garoto. Sentiu-se enjoado - e enojado de si mesmo. Antes que notasse, estava chorando novamente. Havia parado de chorar após algumas horas, achando que provavelmente havia secado por dentro - seu coração decerto era pó. Mas não. Franziu a testa e as lágrimas rolaram pelo seu rosto, instantâneas e quentes, caindo em seu cabelo macio e no travesseiro.

            Bert se inclinou para frente, tocando o rosto do amigo levemente com o polegar. “Eu sei, Ger. Foi um acidente. Eu sei que dói, calma. Não fica achando que foi culpa de alguém, não foi, foi um acidente...”

            “Eu o matei, Bert,” Gerard choramingou, seu corpo já sendo sacudido em soluços, lábios em bico como uma criança. Tentou levantar o braço esquerdo, mas estava preso por intravenosas. “Eu prometi a ele que nunca iria machucá-lo, foi sem querer, mas eu o matei, Bert, eu o matei...”

            “Não, Gerard. Gerard. Foi um acidente, você correu o mesmo risco, só teve a sorte de estar usando o cinto.”

            Balançou a cabeça. “Se eu tivesse sorte, teria morrido no lugar dele.”

            Subitamente Bert pareceu irritado, mordendo o lábio. “Eu devia te bater por dizer isso. Se você quer saber, os médicos disseram que ele nem sentiu dor. Foi instantâneo, ele nem viu nada, você é que está sofrendo.”

            Gerard engoliu o choro, o nó em sua garganta piorando. “O que aconteceu com ele? Não, Bert - é sério, eu tenho o direito de saber.”

            Robert suspirou, voltando a se sentar na cadeira alta. Encarou as próprias mãos, límpidas sobre seu colo, consciente do sangue que ainda as manchavam. “Oh, bem. Pelo que eu ouvi... os legistas aceitaram sua versão da história pela posição que ele bateu contra o vidro ou sei lá. Que ele tava de lado, sabe?”

            Tudo o que eu quero é ficar com você, ele disse antes de beijar Gerard.

            Meneou a cabeça. Robert continuou.

            “É, então... ele bateu a cabeça contra a parede da fábrica. Tipo, o vidro e a parede, e foi bem rápido, então foi ali... bem...”

            “Ali que ele morreu,” Gerard completou, dolorosamente direto. As lágrimas voltaram a escorrer pelo seu rosto. “O que mais você sabe?”

            Obviamente, Bert não iria dizer a Gerard que a cabeça de Frank estava basicamente aberta, conteúdos cranianos caindo em suas mãos. Bert não queria lembrar disso tampouco. “Ele bateu a nuca, a testa quando caiu, e o lado da cabeça. Bem rápido. Ele não sentiu dor, Ger.”

            Imediatamente Gerard notou que hey, ele sentia aquela dor, nos exatos três mesmos lugares. Minha cabeça não dói quando eu estou com você. Se fode, universo. Se-fode. “O quê mais?”

            “Gerard...”

            “Me fala, Bert. Eu vou ficar sabendo de qualquer jeito.”

            “Por que você quer saber essas coisas?” Questionou Bert com a voz angustiada.

            Mordeu o lábio por dentro, balançando a cabeça. “Eu não sei, eu só... preciso. Bert, eu...” fechou os olhos bem apertado, seu peito contraído com muita força - doía. “Você sabe como eu me sentia em relação a ele, e de repente isso e... eu tirei a vida dele, eu quero saber como.”

            Era inútil discutir e Bert sabia disso. Afinal de contas, sabia que ele estava passando pelo momento mais difícil de sua vida. Enquanto esperava Gerard acordar, ficara imaginando como seria se estivesse dirigindo um carro com ele e aquelas coisas horríveis acontecessem. E Bert sabia que nunca se perdoaria, nunca esqueceria, nem por um minuto. Não suportava a idéia de perder Gerard e sabia que se isso acontecesse, perderia a sanidade. Não iria julgá-lo. Se ele queria saber, ele iria saber.

            “Ele quebrou vários ossos, e os órgãos foram muito danificados por causa do impacto. Basicamente isso, Gerard, e foi muito, muito rápido.” Segurou a mão dele sobre os tubos e agulhas que entravam em sua pele. “Provavelmente a última coisa que ele teve consciência foi de estar beijando você.”

            Gerard virou o rosto para o outro lado, uma expressão angustiada no rosto retorcido, chorando vergonha e amargura.

            **

            “Está bem assim?”

            “Ótimo, mãe.”

            Donna torceu as mãos, inquieta. Seu rosto parecia mais cansado do que nunca, olheiras circundando seus olhos inchados. “Eu vou deixar você descansar, querido. Estarei no meu quarto, qualquer coisa é só me chamar.”

            Gerard meneou a cabeça, encarando os cobertores. Sabia o quanto estava machucando a mãe, e isso tornava tudo ainda pior. Ele não tinha somente tirado a vida de Frank, mas sim arruinado a de todos que o rodeavam. Nada mais seria igual, ele sabia disso. E não era uma perspectiva nada boa - mas ele merecia pior. “Estou ótimo, mãe, não se preocupe.”

            Donna não fechou a porta do quarto completamente; apenas a encostou, deixando uma fresta para o caso de Gerard chamá-la. Ele foi deixado ali, sozinho consigo mesmo - a pior companhia possível.

            Já era noite e Jersey estava horrivelmente silenciosa. Era sábado. O que Gerard estaria fazendo àquela mesma hora na noite anterior? Ele olhou para o rádio-relógio ao lado da cama: pouco mais de nove da noite. Eles provavelmente estavam dançando. Sim, foi antes do jogo. Frankie movimentando-se timidamente, rindo quando Gerard segurava-lhe as mãos e o girava na pista. Inclinando a cabeça e ficando na ponta dos pés quando um beijo se aproximava. Bracinhos jogados ao redor do pescoço do maior, permitindo que ele o guiasse, permitindo que Gerard fizesse o que bem entendesse.

            Isso no dia anterior.

            Gerard pensou em onde Frank estaria naquela hora. No necrotério do hospital? Coberto por um lençol branco, sobre a maca gelada de metal entre tantos outros cadáveres? Uma etiqueta pendendo de seu pezinho? Teriam tomado cuidado ao costurar a feridas em seu rosto bonito, ou teriam apenas grampeado descuidadamente e deixado Frank como seu personagem adorado, Frankenstein? Não, provavelmente não. Donna disse que Frank seria enterrado no dia seguinte - os Way estavam tomando conta de todas as despesas. Frank estava provavelmente na mesa de uma maquiadora numa funerária qualquer, as mãos fedendo a cigarro e perfume barato da mulher tentando cobrir os hematomas e a palidez incomum na pele antes dourada do rapaz. Sendo jogado de mãos em mãos sem o menor cuidado, sem a menor importância. Só mais um defunto no negócio da morte, onde corvos esperavam para lucrar sobre a dor dos outros.

            Gerard tentava afastar essas visões de si. Tentou focar-se nas coisas boas.

            A risada gostosa de Frank, contorcendo-se sob as cócegas que Gerard lhe fazia. A devoção dele aos sorvetes que Gerard lhe servia, lambendo os lábios vermelhos e fazendo sons de satisfação. A forma carinhosa com que colocava os fios negros dos cabelos de Gerard detrás da orelha dele, observando seu rosto como se ele fosse a oitava maravilha do mundo. O jeito inocente - enlouquecedor - que Frank ofegava e gemia sob o toque de Gerard. A forma com que seu rosto se iluminava quando via o sedan velho dobrar a esquina, parando em frente ao orfanato para levá-lo para a escola.

            Sedan que virou sucata. Não só foi totalmente amassado, mas como também pegou fogo. Mesmo que tivesse conserto de qualquer tipo, Gerard nunca mais queria ver qualquer coisa relacionada àquele carro. Entrar na caminhonete do pai para vir para casa já foi um custo - ele teve um ataque de pânico e precisou respirar num saco de papel por vinte minutos, além de tomar mais um calmante. Merecia pior, porém sua família não tinha nada a ver com aquilo. Não deveriam estar pagando pelas burrices de Gerard. Frank não deveria ter pago por elas tampouco.

            Mais uma vez, o hipotético foi o assunto na mente de Gerard. Se ele não tivesse teimado tanto, se não tivesse ido atrás de Kevin, o que estariam fazendo naquele momento?

            Frank estaria ali. Estaria, porque já não sabiam passar tempo longe um do outro. Estariam de ressaca, Frank provavelmente sentindo-se pior, e passariam o dia deitados no sofá, cortinas fechadas, filmes de terror na tela da TV. Gerard lhe daria bastante suco e carinho, acariciando-lhe os ombros e a nuca para fazer a dor de cabeça diminuir. Iriam jantar sobre o tapete, as meias de Frank aparecendo sob o cobertor. E então iriam para o quarto, onde o colchão extra estaria colocado no chão para que Frank se deitasse. Frank estaria deitado no colchão, e Gerard também. Gerard iria colocar uma mão sob a camisa do pijama emprestado, deixando sua palma deslizar pela barriga macia de Frank enquanto mordiscava seus lábios ternamente, sussurrando para ele as coisas favoritas que colocara numa lista: a risadinha alegre, as mãos pequenas, os lábios desenhados, a pele macia, a inocência quase palpável (não exatamente nessa ordem). Cairiam no sono juntos, e Mikey iria, para a surpresa dele mesmo, observá-los durante alguns segundos e achar bonitinho antes de ir para a própria cama.

            Mas nada disso aconteceu. Jamais iria acontecer.

            **

            Acordou de repente.

            “Hey, você está bem?” - era Mikey. Obviamente tinha acabado de acordar. Seu cabelo estava uma bagunça e não usava os óculos.

            “Que horas são?” Perguntou, franzindo o cenho. Sua boca estava muito seca, mas ele não sentia dor. Estranhamente, não sentia dor. Notou isso no segundo em que acordou.

            “Quase duas. Cara, você estava gritando.”

            Gerard olhou para ele, realmente intrigado. Provavelmente tivera um pesadelo - não se lembrava. Mas notou que Mikey estava tremendo, o corpo magrinho frágil e amedrontado. “Eu estou bem, Mikey, desculpa.”

            O caçula meneou a cabeça, olhinhos perdidos. “Nah, okay.” Fez menção de se levantar, mas ficou sentado. Levantou uma mão, recuou. Finalmente tomou uma decisão e abaixou o corpo, numa tentativa de algo que se parecia com um abraço. Gerard sentiu sua garganta doer e levou uma mão às costas do mais novo.

            “Eu sinto muito, Mikey.”

            “Eu sei, Gee,” respondeu baixinho, voltando a ficar sentado. Tirou os cabelos que grudavam na testa do irmão, afastando-os desajeitadamente. “Não se preocupa, Gee. Ele sabe também.”

            Gerard aquiesceu brevemente, mordendo o interior da boca. Mikey voltou para sua própria cama, virando-se para a parede e aquietando-se em um segundo. Gerard virou-se na cama, sentindo um breve incômodo na perna engessada e debatendo se valia à pena levantar para ir ao banheiro. Tentou ajeitar-se de jeito que seu corpo não faria pressão em sua bexiga, mas só conseguiu ficar mais desconfortável - não só no torso, mas também parecia haver alguma coisa debaixo de seu travesseiro. Ele levou a mão menos machucada para ajeitá-lo, mas se deparou com algo que havia esquecido que colocara ali.

            A camisa de Frank. A camisa de uniforme, que ele estava usando no dia anterior e que Gerard secretamente enfiara debaixo do travesseiro. Ele tinha esperança de que o cheiro ficasse na fronha, mesmo que fosse muito leve e parecesse meio difícil. Mas ele tinha esperanças, e havia furtado a camisa de Frank da cadeira quando ele arrumava o cabelo no espelho. E quando ele realizou o que é que estava segurando, seu corpo foi novamente sacudido horrivelmente por soluços incontroláveis, mesmo que silenciosos. Gerard afundou o rosto no tecido, deixando as lágrimas violarem o cheiro puro de sabonete que havia ali antes. O cheirinho de Frank, sempre tão bom, sempre tão sorridente. Frank que ontem estava naquela camisa e que logo usaria uma roupa aberta nas costas; a última roupa antes que fosse jogado sob a terra e os vermes o devorassem.

            Ele permaneceu ali pelo que pareceram horas, mas foi pouco mais de vinte minutos. Gerard chegou a ficar num patamar entre a consciência e o sono, ouvindo a voz de Frank tão claramente que pareceu que ele estava bem ali. Seus olhos estavam novamente muito inchados e sua pele parecia mais sensível, lábios extremamente maleáveis como acontecia toda vez que ele chorava. Piscou fortemente e olhou para o relógio. Eram 02:06 am, e ele decidiu que tinha que ir ao banheiro.

            Foi meio difícil levantar sozinho, considerando que uma perna estava imóvel, parada ali, um peso morto esticado, dificultando os movimentos. Mas Gerard ficou de pé e pegou as muletas encostadas contra a parede - amarrou o uniforme de Frank no pescoço. Provavelmente nunca mais o tiraria dali. E pôs-se a caminho do banheiro, de boxers e com a camisa amarrada, tomando cuidado para não fazer barulho e acordar seus pais - eles já estavam sofrendo o suficiente.

            Frank avançava pelo corredor, animado. “Com o negócio de cereja?”

            Fechou a porta do banheiro com delicadeza. Trancou. Encostou a testa na madeira e fechou os olhos, inchados - será que o rosto de Frank ficou inchado? Gerard lembrava perfeitamente de como estavam da última vez que os viu, os olhos amendoados de Frank. Fixos, o brilho débil, como se houvesse um vidro sujo em frente a eles. Segurou a manga da camisa e a levou aos lábios, murmurando ‘me perdoe, Frankie’ diversas vezes antes de se lembrar onde estava e o que fora fazer ali.

            Colocou as muletas encostadas na parede, ao lado da banheira antiga, e deu meia volta para se arrastar até a privada. Seu torso exposto tinha uma marca roxa cruzando-o, do cinto de segurança, e um curativo do lado esquerdo onde o metal o cortara. Na tarde anterior, Gerard havia entrado naquele banheiro queimando pelas ações que Mikey havia acabado de interromper. Mal sabia ele que seria sua última tarde com Frank...

            Abaixou a tampa da privada, decidindo que a descarga faria barulho demais. Deu três pulinhos para o lado, apoiando-se na pia. Ligou a torneira e deixou a água fria correr por seus pulsos, que estranhamente não foram machucados ao que suas mãos estavam estampadas com diversos pequenos cortes e arranhões. E a dor, a dor sumira. Gerard imaginou se sua mãe havia lhe aplicado alguma injeção de morfina durante o sono.

            Abaixou-se, lavou o rosto. A água fria foi um alívio contra a pele quente. Manteve-se apoiado numa mão enquanto levou a outra à nuca, molhando a pele sob os cabelos. A mãozinha de Frank em sua nuca, entrelaçando os dedos nos fios negros e acariciando Gerard da forma mais doce possível.           

            “Frankie...” sussurrou para si mesmo, mordendo o lábio e irritando-se com seu próprio corpo, que insistia em franzir seu queixo e induzir mais choro. Gerard balançou a cabeça rapidamente como se pudesse tirar o equilíbrio daqueles pensamentos e fazê-los cair. Fungou, tentando substituir a tristeza por raiva. Desligou a torneira e elevou o corpo, levando os olhos ao espelho para seu reflexo.

            Mas o reflexo que Gerard viu foi o de Frank.

            O grito de susto nunca deixou seu corpo, ficando preso na garganta contraída, silenciosa. Frank estava sentado na borda da banheira. Frank. Frank, vestido em roupas esquisitas, brancas, frouxas, calça e camiseta grandes demais. Passando o dedinho pela muleta encostada - quando o corpo de Gerard foi sacudido no susto, Frank notou e olhou para ele. E estava ali, inteiro, olhando para Gerard com olhos tristes que logo se tornaram surpresos.

            Gerard girou sobre seus pés rapidamente, ficando de frente para o outro... o que quer que ele fosse. “Frank?” Ele quase gritou, apoiado na cerâmica da pia, respiração muito rápida. “F-Frankie?” repetiu, dessa vez mais baixo, quase num sussurro.

            Frank franziu o cenho, inclinando a cabecinha para o lado. “Você pode me ver?”

            O ar foi expulso dos pulmões de Gerard, que estava literalmente (e muito) boquiaberto. Seu queixo tremia. Ele encarou Frank por alguns segundos, não se importando com o cabelo que caía sobre seus olhos. “O quê... eu estou sonhando?” - Levou uma mão à testa. “Eu estou dormindo.”

            “Não está,” veio a voz de Frank em resposta. A voz de Frank.

            Tirou a mão do rosto, olhou para frente. Frank estava ali. Falando com ele. Por mais que Gerard desejasse aquilo, sabia que não era possível. Frank estava morto. “O que está acontecendo?” Perguntou quase que para si mesmo.

            Um sorriso brando. “Desculpe, eu não quis te assustar.”

            Mais uma vez, os olhos já inchados de Gerard arderam e foram inundados. Ele encarou a figura à sua frente. Era ele. Puramente ele - tirando as roupas muito claras. O sorriso doce dele. O cabelo dele. A voz dele. O peito de Gerard subia e descia muito rápido. Ele sentou-se no chão lentamente, sentindo a perna direita doer por ter que agüentar todo o peso. Sentou-se sobre o tapetinho florido que circundava a pia, dobrando a perna que não estava engessada sem nunca tirar os olhos do outro. Frank permanecia na borda da banheira, pacífico, inteiro.

            “Frankie?”

            O pequeno meneou a cabeça lentamente. “Sim, sou eu.”

            “Mas - o quê? Eu... eu estou dormindo?”

            “Não,” respondeu baixinho, sua expressão serena. “E antes que você pergunte, você também não está louco.”

            Gerard balançou a cabeça, a boca ainda entreaberta revelando seus dentes pequenos. “Mas você não está aqui,” murmurou, a dor presente em sua voz e seu rosto. “Você não pode estar aqui.”

            Frank balançou os ombros. “Mas eu estou, tanto quanto você.”

            “Mas como? Você... você está... Frankie, eu não entendo, nós...” - tentou checar se estava dormindo. Parecia que não. Louco, talvez? Ele disse que não, mas talvez, Gerard, talvez te deram algum remédio errado, talvez você tenha batido a cabeça... “Eu estou imaginando você?”

            Arqueou as sobrancelhas bonitas - Frank sempre teve sobrancelhas tão perfeitas... “Você me imaginou antes?”

            Gerard lançou-lhe um olhar intrigado. “Não.”

            “Você imaginou o acidente?”

            “Não!”

            “Então isso também não é sua imaginação. Eu sou real, Gerard. Só não sou como antes.” Abriu um largo sorriso, como se isso fosse dar credibilidade ao que dizia.

            Gerard tinha o cenho tão franzido que doía, mas não podia evitar. Passou a língua pelos dentes enquanto tentava febrilmente raciocinar, tomar controle do que diabos fosse que estava acontecendo ali. “Você está morto.”

            “Meh,” fez Frank, levantando as mãos e deixando-as cair em seu colo num gesto de quem não liga muito. “Estou.”

            “Está,” repetiu, levando uma mão ao rosto, afastando os cabelos da testa. “Então... Frankie? O que você é? Eu não entendo, eu...” Ofegou novamente, passando a língua pelos lábios secos. “Você está aqui.”

            “Estive aqui o tempo todo,” declarou com simplicidade. “Você que só me viu agora.”

            “Como assim? Frankie, como assim? É você.” Não entendia. Aquilo não era possível. Não era.

            O menor voltou a sorrir, apoiando os braços dobrados nos joelhos. “Eu meio que estive com você sua vida inteira, a gente só não sabia disso.” Quando o rosto de Gerard pareceu prestes a dar um nó em confusão, Frank riu, descontraído. “Não faz essa cara, é tão ruim assim?”

            Gerard voltou a balançar a cabeça, dessa vez escondendo o rosto nas mãos. “Não, não. Eu te conheci. Eu gostava de você, e eu bati o carro. Você morreu. Eu estou louco, deve ser isso, trauma. Eu quero tanto que você volte, tanto, mas eu sei que eu estou louco.”

            “Hey, Ger. Por favor, não fique assim.”

            “Bem, é meio difícil!” Quase gritou novamente, e voltou a abaixar a voz. “Meu namorado morto conversando comigo no banheiro. Isso não é normal. Eu...” - as palavras se perderam quando voltou a olhar para o menor, que ainda parecia tão sereno. Os olhos, sempre tão inocentes, que Gerard adorava.

            Frank esfregou o pezinho descalço no tapete. “Se você quer que eu vá embora, eu não sei se eu posso, ou se eu consigo...”

            “Não, Frankie, não vá. De novo não. Eu só...” - pensou se estaria falando com as paredes, mas decidiu não pensar nisso por um momento. “O que está acontecendo?”

            Levantou o olhar para ele. “Eu sempre estive com você. Desde sempre, embora eu não me lembre muito bem das coisas antes do acidente. Quer dizer, eu sei das coisas que aconteceram quando a gente se conheceu. É como... saber que você teve um sonho, mas não lembrar do que você sonhou.”

            Gerard se acalmou um pouco, sua atenção voltando-se às palavras de Frank e saindo do fato de que ele estava ali. “Desde que eu nasci?”

            Frank crispou os lábios por um momento - vermelhos, sempre vermelhos. “Eu acho que sim... eu tenho em mim tudo o que você já sentiu. Inclusive sua aversão a pássaros, de onde vem isso?”

            O maior balançou a cabeça, ainda oblíquo a tudo. Morria de medo de pássaros desde que foi atacado por alguns. Nunca havia mencionado aquilo a nenhum de seus amigos por pura vergonha. “Como você sabe disso?”

            “Eu te disse, eu estava com você. Eu só não lembro direito. Eu meio que acordei na hora do acidente...” - sua expressão ficou repentinamente triste e ele encarou o tapete. “O jeito que você ficou... o jeito que você olhou pra mim.”

            Frank havia visto tudo. A expressão horrorizada no rosto de Gerard, paralisado pelo medo e pelo choque, encarando o rosto sem vida do outro. Eles nunca esqueceriam do rosto um do outro naquele momento.

            E ali tudo voltou a Gerard. O fato de que, não importava se ele estava louco ou não, ele havia sido a causa da morte daquele garoto. Tocou a camisa que ainda pendia em seus braços, o cheiro de sabonete ali, tentando reprimir a vontade de seu corpo de asfixiar a si próprio. “Eu sinto muito, Frank, eu sinto tanto...”

            “Eu sei disso,” replicou o outro brandamente. “Eu sei como você se sente, e me deixa tão triste, Gerard. Não fique assim.”

            “Eu matei você,” ele soluçou contra o uniforme que mantinha contra o rosto. “Eu não queria, eu não vi, me perdoe...”

            “Hey, Gee. Eu segurei você, lembra? Eu segurei você. Eu não senti nada. Num momento eu tinha você nos braços e no outro eu estava vendo tudo de outro ângulo.” Levou os dedinhos aos lábios. “Eu ainda posso sentir você aqui. Não foi culpa sua.”

            Gerard se debateu levemente, nervoso com a maldita perna esquerda e com aquele gesso estúpido que não o deixava dobrá-la. Bateu os punhos no chão. “Claro que foi. Claro que foi.”

            “Gerard por favor não fique assim. Se você sente dor, eu sinto dor. Angústia, culpa. Por favor, não se sinta assim.”

            “Fácil pra você falar,” rebateu sem pensar. Estava descontando raiva no garoto que havia matado? Ridículo, Gerard, você é um tremendo idiota ridículo. “Eu - me perdoe, Frankie. Eu só...” Puxou os cabelos, levantando os olhos molhados para o outro. “Eu destruí nossas vidas.”

            Mais um sorriso reconfortante. “Eu estou plenamente bem aqui, pare de se preocupar. E pare de achar que está louco. Eu estou aqui e não vou a lugar algum.”

            “Okay.” Lambeu os lábios, enxugou o rosto com as mãos. Tentou tornar sua respiração estável. “Okay, você está aqui. Eu não estou maluco, nem sonhando. Você está aqui.”

            “Sim.”

            Inclinou a cabeça para o lado. “Mas então... você é... um anjo, ou algo assim?”

            Frank fez uma cara de aprovação, olhando para o teto por um momento. “Gostei. Sim, digamos que sim.” Viu que Gerard o olhava sem esperanças, tristeza quase palpável. “Gerard, por favor...”

            “Como você pode não me odiar?” Questionou, desviando o olhar para o chão. “Como você pode estar tão...”

            “Você me odiaria se fosse você no meu lugar?”

            Suspirou. “Eu nunca conseguiria odiá-lo, Frankie.” Abraçou o próprio corpo, escondendo o rosto nos braços dobrados. Estava sentado no chão do banheiro, no meio da madrugada, conversando com o garoto que ele matou. Ao mesmo tempo em que isso parecia absurdo, a idéia estava passando a ser aceita. Se estivesse louco, que fosse. Não se importava. “Eu só me sinto mal, Frank, você tem que entender. Eu tirei a vida de você.”

            “Claro que não,” replicou Frank com um sorriso que Gerard não viu, mas pôde ouvir na voz dele. “Você me deu a vida, Ger. Antes de você, eu só existia. Eu matava o tempo. Você me deu mais alegrias em poucos dias do que eu tive em dezessete anos inteiros.”

            Gerard balançava o pé bom. “Não justifica.”

            “Pois eu não mudaria uma coisa sequer.” Levantou-se da banheira e atravessou o banheiro, ficando a apenas alguns passos do mais velho. “Eu acho que você está cansado. Você deveria ir dormir, que tal?”

            De repente Gerard se sentiu muito sonolento, seus olhos tumefactos queimando ainda mais. Seu corpo ficou pesado de exaustão, mesmo que a dor não mais estivesse ali. “Sim,” ele concordou brandamente, sem a menor resistência. Levantou o rosto e olhou para Frank. Porque Frank estava ali, e algo que se parecia brandamente com um sorriso cruzou o rosto de Gerard pela primeira vez em mais de vinte e quatro horas. “Você vai comigo?”

            “Eu não vou sair de perto de você por um segundo sequer.”

            Definitivamente um sorriso, lábios puxados para os lados mesmo que levemente. “Okay.”

            Gerard se levantou, apoiando-se na pia, e atravessou o banheiro com pulinhos para pegar as muletas dentro da banheira. Deixou o banheiro, não se importando em apagar a luz, constantemente espiando sobre o ombro para se certificar que Frank estava ali. Ele estava, seguindo o maior com o rosto tranqüilo e as mãos nos bolsos de suas calças brancas. Calças de anjo, talvez.

            As muletas foram novamente encostadas na parede e Gerard se deitou, cobrindo o corpo ferido com o edredon macio. Estava mais calmo, por algum motivo desconhecido. Frank se sentou na outra ponta da cama, perninhas cruzadas em estilo indiano. “Boa noite, meu anjo,” Frank brincou, piscando um olho. Seu rostinho bonito ficou na mente de Gerard, mesmo depois que ele fechou os olhos, e ainda após ele adormecer, abraçando o uniforme velho.


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