O Anjo e a Flor escrita por Leh-chan


Capítulo 1
Boa noite, meu anjo.




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[Uruha’s POV]


            Vi meu menino se contorcer na cama. Os olhos pequenos fitavam o vazio, como de costume. Mais uma vez, me pergunto como ele aguenta o fardo de não poder enxergar. Uma pessoa que nasce cega acaba se conformando... Mas perder a visão num acidente como aquele não deve ser fácil. Ele mesmo confessou que a única coisa que vê agora são as cenas do carro batido... A morte das pessoas que amava...

            – Kou, vem pra cama... – Sua voz disse, num resmungo convidativo.

            – Estou aqui... Não ‘tá conseguindo dormir?

            – Não... – Assumiu, baixinho, mais para si do que pra mim. Deixei pra lá o que estava fazendo e sentei-me ao seu lado. De imediato, sua mão pequena começou a percorrer meu rosto cuidadosamente, sentindo a textura de cada traço, imagino. Não pude deixar de sorrir. Um sorriso triste e vazio, mas um sorriso.

            E assim ficamos, por um bom tempo. Eu olhando pra ele... E eu realmente não sei dizer o que ele via. Mas o que eu via era uma criança loirinha, vulnerável, adorável. E, mesmo que aos meus olhos ainda fosse uma criança, já havia sofrido muito nessa vida. Em seu rosto, outrora perfeito, aquela cicatriz enorme fazia-se presente, para sempre me lembrar do ocorrido. Novamente, a voz aveludada dele cortou o silêncio:

            – Eu... Eu daria tudo pra ver você de novo, Kou... Sempre que me lembro de você eu... Eu vejo... – Os olhos opacos se encheram de lágrimas. Quantas vezes eu fui obrigado a suportar isso? Estava sendo destruído. Tirei a mão dele cautelosamente de meu rosto, pousando-a sobre meu colo e debruçando-me sobre ele, abraçando aquele a quem tanto amava com o máximo de carinho que consegui. Logo as lágrimas saiam de meus olhos também... Por que não eu?

            Suas mãos voltaram a percorrer meu rosto erroneamente, secando as lágrimas que caiam.

            – Não chora, meu anjo... Por favor... Só não chora... – Não passou de um sussurro... E isso só fez minha necessidade de abraçá-lo crescer mais e mais. Logo eu o apertava fortemente contra meu corpo, a cabeça afagada em seu peito enquanto ele acariciava meus cabelos.

°~♥~°

Mais um show bem executado... Mais um sucesso. As coisas não poderiam ficar melhores. Agora, os cinco amigos estavam indo para algum lugar dentro de um carro espaçoso para a merecida comemoração. No banco do motorista, Kouyou segurava o volante distraidamente enquanto conversava animadamente com Ruki, que estava sentado ao seu lado. Este segundo apenas observava tudo, a admiração estampada nos olhos. No banco de trás, outras três pessoas conversando, brincando, se divertindo. Poderia ter sido apenas uma noite normal...

°~♥~°



            Quando menos esperava, meu pequeno não chorava mais. Estava ocupado demais tentando conter meu choro, que passou de meras lágrimas para algo compulsivo. Aquilo parecia queimar meus olhos, o nó em minha garganta era demasiado grande... E tudo por dentro se estilhaçava. Os gritos, o sangue, as lágrimas... Tudo vindo à tona. Era insuportável. Como eu ainda tenho coragem de estar aqui? Eu não te mereço...
 
            Ainda assim... Eu posso sentir seus braços envolta de mim. Uma pessoa tão boa que foi capaz de me perdoar. Pergunto-me se não sou eu quem deveria te chamar de “meu anjo”... Meu. Agora meu, e de mais ninguém. Minha responsabilidade... Minha vida. O mínimo que eu podia fazer agora era tornar isso menos doloroso para você... Não é?

°~♥~°

Uma garrafa de Chandon. Uma enorme garrafa, compartilhada no gargalo por todos. E a maior parte foi mimoseada a Uruha, que não negou e tomou tudo na mesma hora, derrubando uma boa parte nas pernas descobertas. Ao terminar, apenas suspirou em aprovação, sacudindo a cabeça e passando a garrafa vazia para Takanori, que começou a lamber a ponta da mesma de maneira sensual, absorvendo toda a saliva que o amigo ali deixou. Um olhar malicioso, foi o que bastou.

°~♥~°



            – SHIMA! – A voz que eu tanto amo gritava enquanto ele me sacudia, o olhar perdido... Isso dói. Por mais que eu tente falar pra acalmá-lo, eu não consigo. A voz falha... Eu falhei. Não posso cuidar de você. Mal posso cuidar de mim mesmo...

            Em todo esse tempo, eu tentei. Eu juro que tentei... Eu queria ser seus olhos, mas não é tão fácil assim. Ouvir de sua boca que você ainda me vê como no dia do acidente é doloroso demais, mais do que eu posso aguentar. Imagina como deve ser você ter uma imagem distorcida da pessoa que mais ama... E toda vez que ele o toca, você se lembra de tudo. Eu imagino, Ruki. Queria poder mudar isso. Queria trocar de lugar com você... Mas as suas lembranças me fazem lembrar. A imagem que eu vejo também é algo distorcido. Você não é mais o mesmo... Uma flor murcha. Uma flor machucada, cujas pétalas imaculadas foram manchadas e arrancadas. Queria não ter que te ver assim...  Irônico, não?

°~♥~°

A atenção que deveria manter-se na estrada mantinha-se no vocalista, que estava cutucando a onça com vara curta. Reita, Kai e Aoi haviam dormido. A garrafa da bebida jazia no chão, espalhando resquícios do líquido por toda a extensão do carpete do carro, rolando dos bancos da frente para os de trás... E Kouyou já estava praticamente esquecido de sua tarefa de motorista, olhando unicamente para o loirinho à seu lado.

°~♥~°



            – Kou... Ouve bem, meu anjo... Por favor, não chora... Eu posso te contar a verdade? – Verdade? Isso atiçou profundamente minha curiosidade. Não consegui parar de chorar por isso, mas sacudi minha cabeça em aprovação. Sei que ele sentiu meu movimento, apesar de não vê-lo, então beijou minha cabeça e sentou-se na cama, fazendo com que eu consequentemente me sentasse também. Rapidamente ele providenciou para que eu ficasse aninhado em seus braços. Depois prosseguiu:

            – Era uma vez... Um anjinho. Este era um anjo muito belo, alegre, inteligente... Mas os outros anjos não gostavam dele. Sabe por quê? Porque ele era um anjinho diferente, koi. Este anjinho, ao contrário dos outros passava o dia observando a Terra.

°~♥~°

O menor, por sua vez, apenas o provocava. Chegava com seu rosto cada vez mais próximo do outro, compartilhando o cheiro da bebida que ainda saia de sua boca; e depois simplesmente afastava-se e olhava a janela. Uruha não estava para brincadeiras, àquela altura. Tomou sua decisão e, soltando o câmbio definitivamente, segurou o rosto daquele que o seduzia, para que não mais se interessasse com a janela.

°~♥~°



            – Os outros anjos faziam as tarefas que lhes eram incumbidas, mas esse anjinho diferente passava o dia somente olhando a Terra. E ninguém entendia realmente o porquê dele ficar lá tanto tempo. Ele era diferente, e com medo das diferenças, ninguém falava com ele. Apenas observavam e cochichavam. – As lágrimas foram diminuindo enquanto eu imaginava a finalidade de tudo aquilo. Nada mudaria o fato do que aconteceu... Por que você ainda me tortura assim?

            – Mas aquele anjo não ligava. Ele não ligava, pois estava apaixonado... Apaixonado por uma flor. Um lírio branco solitário, que repousava tranquilamente na grama verdinha... E seu amor por aquela flor ia crescendo, cada dia mais e mais. Certo dia, não aguentando mais esse sentimento, resolveu que queria se aproximar dela, conhecê-la. E sem pensar duas vezes, atirou-se da nuvem, para cair e cair na direção daquilo que achou que o faria feliz.

°~♥~°

Perdido nas boas sensações que o amigo conseguia lhe causar, sem que nunca soubesse que de fato queria que ele causasse, não foi capaz de notar que o carro continuava a se mover, cada vez mais rapidamente, pois seu estado de torpor o fez afundar o pé no acelerador. A próxima lição daquele dia foi que “Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”.

°~♥~°



            – E ele foi caindo, caindo... A única coisa que tinha em foco era a flor branca que queria alcançar, não importando o custo. – Eu prestava cada vez mais atenção, pendurando-me em suas palavras como se aquilo fosse a solução para todos os meus problemas. – Mas estava tão apaixonado, tão perdidamente determinado que se esqueceu de abrir as asas. Os centímetros entre ele e o amor de sua vida diminuíam, cada vez mais, e então... O anjo caiu. Caiu em cima da florzinha perfeita, fazendo-a se despedaçar. Seu amor acabou com ela.

°~♥~°

O motorista do caminhão de combustível à frente não conseguiu desviar a tempo, eles estavam em uma velocidade muitíssimo alta. E então, aconteceu. O carro foi empurrado contra a parede, a parte de trás completamente acabada. Kouyou apenas viu o pequeno ao seu lado se encolher todo enquanto ele tentava, à todo custo, acionar o freio. Inútil. Quatro mil e setecentos litros de gasolina dentro de um caminhão não foram feitos para serem despejados desta maneira. A última coisa que o guitarrista viu antes de apagar foi fogo. Muito fogo, como no inferno, e adormeceu ao som dos gritos de Takanori.

°~♥~°



            – E por muito, muito tempo o anjo chorou... Mas a flor, ela não estava triste. Ela conheceu uma pessoa nova, que gostava dela pelo que era, não simplesmente por sua aparência. E o anjo colocou em um vaso aquela preciosa porção de vida, e passou a cuidar dela com todo o carinho. Ela jamais seria a mesma, nem ele. Kou, você entende...?

            Era como se eu simplesmente tivesse perdido um pedaço. Uma bela historinha de ninar, apenas. Como aquilo poderia ser “a verdade”? Fiz que não com a cabeça e senti minha pele roçar contra sua pele macia. Ele continuou:

            – Meu anjo...

°~♥~°

Quando abriu os olhos, Uruha notou estar num lugar muito claro... Um hospital. Várias pessoas o rodearam, e naquele momento, ele só conseguiu deixar que as lágrimas caíssem. Ao notar isso, um dos médicos colocou a mão sobre seu ombro, tentando acalmá-lo. Depois de alguns exames, a história foi brevemente contada para o loiro, que só conseguiu chorar mais e mais... Akira, Yuu, Yutaka... Mortos. E a visão só ficou ainda mais turva quando viu Ruki em uma cadeira de rodas, fitando um lugar vazio, todo enfaixado, com marcas de queimadura por todo o corpo... Principalmente no rosto. Um corte transversal, seguido por uma queimadura aparentemente gravíssima.

°~♥~°



            – Não, Ruki. – O interrompi. Agora a luz se fazia presente em minha mente. – Acontece que se eu tivesse prestado atenção no que estava fazendo... Tudo estaria bem e... – Fui interrompido por um dedo fino que procurava meus lábios com cuidado. Ao que achou, foi acariciando os mesmos lentamente, depois passando a mão pela minha bochecha para que finalmente sua cabeça pudesse se aproximar, pedindo de olhos fechados por um beijo. Selei nossos lábios, mas o contato foi rapidamente interrompido pelo loirinho.

            – Kou, eu nunca te contei o que aconteceu naquela noite depois que você desmaiou, né?

            –...

°~♥~°

Ignorando a tudo e todos, Takashima se levantou e correu até o menor, ignorando também a dor. Só queria estar junto dele, nada mais. Abraçou-o com muita necessidade, abraço que foi retribuído prontamente. Ambos precisavam daquilo.

– Kou, eu... – Não houve espaço para mais palavras. Aos poucos, os médicos foram abandonando o lugar, e Takanori explicou sua situação, sempre tentando manter um sorriso no rosto.

°~♥~°


            – Já se perguntou... Por que eu sempre te chamo de anjo, digo... Desde aquele dia..?

            – Não...

            – Naquela noite, depois que você desmaiou, eu entrei em desespero. Tudo começou a pegar fogo... Mas foi seu corpo que me protegeu dos vidros quebrados, que evitou que eu me queimasse mais... Você me derrubou do banco antes de apagar, Kou. Pode não se lembrar porque estava bêbado, mas você salvou minha vida, e eu sei que pagou um preço alto por isso. Ou você pensa que eu não ouço seus gemidos de dor todas as manhãs? Eu posso não ver, mas eu sei. – Senti-me um pouco constrangido, sem nem saber o motivo. Apenas apertei a roupa que Takanori usava e me encolhi todo. No fim, acho que eu era a criança que precisava de cuidados.

            – Koi, eu... – Novamente, fui interrompido.

            – Anjo, você salvou minha vida, e além disso, cuidou de mim por todo esse tempo. Pra que eu precisaria de olhos se eu tenho você? Você finalmente deu um significado pra minha vida, e é isso o que importa. A única coisa que eu sinto falta é de ver você, mas... É um pequeno preço que eu tenho que pagar. – E isso me deixou calado, sem ação. Apenas abracei meu pequeno com muita necessidade, tanta quanta no dia daquele acidente terrível. E ele passou a me acariciar... Logo nossos corpos foram escorregando e estávamos deitados: eu sobre o peito dele, ele me abraçando. E antes de adormecer, só pude ouvir aquelas palavras que eu tanto precisava...

            – Boa noite, meu anjo. Te amo muito... Nunca olhe para trás... – E um beijo foi depositado em meus cabelos.

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Notas finais do capítulo

N/A: Eu entrei numa fase fluffy e não consigo sair dela, me salvem!

Pelo menos, acho que isso foi o mais próximo que eu cheguei de um final feliz, então é um começo xD