Little Jenny escrita por Amélie


Capítulo 1
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Notas iniciais do capítulo

PS: Nunca gostei muito de bonecas.



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Pamela não gostava de ficar sozinha. O tique-taque do relógio de parede e as estranhas formas que bruxuleavam na penumbra a assustavam. Todavia, tinha que ser forte e aguentar este medo, em especial quando seus pais jantavam fora ou faziam hora extra no trabalho.

Sua mãe, uma engenheira plausível e dedicada, sempre dizia à Pamela: "Um dia, você entenderá o porquê de sempre trabalharmos até tarde". E então se despedia da filha com um beijo terno no rosto e saía de casa, sumia, ia embora. Só voltava no dia seguinte, quando a menina já estava desperta e arrumada para a escola.

Além do medo de ficar sozinha, também não gostava nada do escuro. Ainda mais quando não tinha companhia em seu pequeno quarto, o qual era quase sempre coberto por um breu impenetrável. Não que Pamela tivesse medo do escuro em si - jamais, isso era para criancinhas. Ela apenas evitava ficar incapaz de usar sua visão.

No dia em que nossa história se passa, Pamela não conseguia dormir. Pensou em chamar os pais e pedir para se deitar na cama com eles. A imagem de uma Pamela insone e alegre nos braços zelosos do pai encheu-a de um alívio maravilhoso - que logo foi dissipado e substituído por um suspiro de frustração.

Como podia ter se esquecido, afinal?

Seus pais não estavam em casa. Estavam trabalhando.

Estendeu o bracinho gordo até o interruptor e ligou a luz. Como era apenas uma criança, encontrava proteção nas coisas mais banais, tais como a claridade. Não entendia que a presença da luz cálida da lâmpada de seu quarto em nada mudava o ambiente macabro e monótono no qual estava, tampouco espantava os pesadelos.

Quando a luz surgiu, Pamela ficou aliviada ao ver que os monstros de seu pesadelo não estavam de tocaia atrás da porta ou dentro do imenso guarda-roupa cor de pérola, como acreditava veemente que estariam.

Aliviada e muito mais tranquila, Pamela deitou sua cabecinha em seu travesseiro de penas de ganso. Mil coisas se passaram em sua mente naquele momento. Mas nada do sono vir.

"Devia ter desligado a TV e ido dormir antes dos meus pais terem saído", ponderou ela. E então, entediada e tomada por uma insônia realmente irritante, Pamela arrastou-se para fora de sua cama - que era grande demais para ela - e foi até sua caixinha de brinquedos.

No dia anterior havia sido seu aniversário, de modo que a caixinha encontrava-se bem mais cheia do que de costume. Pamela passou os olhos pelos brinquedos que lá estavam: uma caixa de blocos Lego intacta; um kit de médico de brincadeirinha, que ganhara há dois meses e já estava sem várias peças; uma ou duas máquinas registradores de plástico; e a boneca que ganhara de aniversário de sua mãe, uma tal de Little Jenny.

"Estranho", pensou Pamela com seus botões. "Pensei que tinha enfiado essa boneca ridícula no fundo da caixa de brinquedos".

Era isso mesmo: Pamela achava aquela a boneca mais feia de todo o planeta e odiara a dita-cuja desde o momento em que bateu os olhos nela na loja de brinquedos. Sua mãe, Margaret, dissera que aquela era uma boneca muito mais "acessível" do que a Kathy Kitten que Pamela originalmente pedira. Depois de ter perguntado o que significava "acessível" e ouvido um sermão de como as coisas iam mal no emprego de seu pai, Pamela cedeu e acabou por contentar-se com a tal Little Jenny, que era estática, muda e tinha um cabelo ralo da cor de miojo podre.

A garota, ainda meio atordoada, colocou a boneca - que nem tinha saído da caixa ainda - no fundo do baú novamente, esmagada pela montanha de brinquedos. Depois, passou dez ou onze minutos brincando com seus blocos Lego novos, sentiu que estava ficando com sono e foi para a cama com cara de "missão cumprida".

Já estava quase no maravilhoso mundo dos sonhos quando, de repente, foi interrompida por uma voz abafada e quase inaudível. Pamela abriu os olhos automaticamente e começou a rondar o quarto com eles. Havia deixado a luz acesa para o caso de algum monstro mau resolver aparecer durante a noite, mas não estava preparada psicologicamente para vozes vindas do além.

Esperou a voz falar novamente.

Esperou.

Ousou olhar para o relógio de parede. Marcava 00:16 da madrugada.

Esperou até o visor indicar 00:30 e, cansada de aguardar pela voz e tentando se convencer de que era o barulho da TV de algum vizinho, Pamela aninhou-se em sua cama novamente.

Contudo, não durou nem trinta segundos relaxada.

– Little Jenny quer seu amor. Little Jenny quer seu amor.

Pamela saiu de sua cama com um salto. A voz, que antes pronunciava palavras ininteligíveis, agora falava claramente. Seu tom era monótono e sem vida, como a voz do Google Tradutor.

– Little Jenny quer seu amor. Little Jenny quer seu amor.

Logo acima da tampa da caixa de brinquedos, encontrava-se a tão desprezada e injustiçada boneca Little Jenny. Fora da caixa.

Pamela deu um grito tão alto que até mesmo um dos peões de obra que trabalhavam na casa ao lado poderiam ter ouvido, mas não ouviram.

Little Jenny repetia doentiamente o slogan que tinha em sua caixa, enquanto Pamela tentava sair pela porta lateral de seu quarto. Estava fechada e trancada, apesar da menina tê-la deixado praticamente escancarada quando fora dormir.

– Deixe-me em paz! - suplicou a garota, indo para trás a passadas trêmulas. O que mais a amedrontava eram os olhos vítreos e a estranha expressão da boneca. Era como se tivessem talhado um sorriso em um semblante raivoso; o sorriso inocente de boneca contrastava totalmente com o restante do rosto.

– Little Jenny precisa de carinho - disse ela, e então soltou uma risada, como se a ideia de uma boneca precisar disso fosse realmente engraçada. E era, pelo menos para grande parte das pessoas.

Pamela não sabia mais o que fazer. Conseguia sentir as marteladas da consciência brincando com sua lucidez; imagens entrecortadas da cena na loja de brinquedos, de seu choro mimado ao perceber que teria de levar a Little Jenny e das falas irritadas da mãe, que insistia em dizer que a boneca era muito melhor que a Kathy Kitten que Pamela tanto cobiçava, apesar de nem mesmo ela concordar com isso.

– Little Jenny precisa de carinho - repetiu a boneca, aproximando-se mais ainda da cama - Agora.

Tomada pelo desespero, Pamela se viu obrigada a acalmar os ânimos da Little Jenny.

– Eu vou te amar! Eu vou te dar carinho! - disse. E, para selar seus votos, estendeu o braço e esticou o dedo mindinho. - Promessa é dívida!

Little Jenny hesitou por um momento. A princípio, Pamela achou que ela fosse acreditar em suas palavras - que eram, de fato, sinceras. Contudo, o que se sucedeu foi de uma maldade tão terrível que seria impossível de ser descrita. Que tipo de pessoa machucaria uma criança? A resposta era muito óbvia. Sem coração e sem cérebro, talvez - só talvez - Little Jenny não passasse de um monte de plástico e cabelos artificiais. Sem sangue correndo nas veias, talvez não fosse possível sentir ciúmes e guardar rancor. Mas, por mais bizarro que possa parecer, foi uma boneca - aquela boneca - que fez Pamela arrepender-se de ter desejado qualquer outro brinquedo na vida, por mais atraente que fosse.



O dia seguinte veio exatamente como todos os outros. Junto com ele, vieram Margaret e Tiago, os pais de Pamela. Seguindo a costumeira rotina de sempre, Tiago destrancou a porta da frente e caminhou até a sala de estar, com uma Margaret exausta à tira colo. Ambos deixaram suas maletas de trabalho ali mesmo no sofá e Tiago foi para a cozinha preparar um bom e velho café expresso. Margaret foi ver se Pamela já estava pronta para a escola.



– Filha! - chamou ela, alegre. Em suas mãos, havia uma imensa caixa embrulhada em papel cor-de-rosa. No embrulho, o logo da loja de brinquedos - Veja só o que a mamãe trouxe para você! Aquela boneca que você tanto queria! Como era o nome dela mesmo? Kathy Hat?, Kathy Cat?

Sem resposta.

– Ah, sua dorminhoca! - Margaret aproximou-se da soleira da porta e pousou sua mão direita na maçaneta. - Vou ter que abrir a porta eu mesma. Doli uma, doli duas, doli...

Foi aí que Margaret, uma mulher já vivida de trinta e poucos anos, deparou-se com a cena mais arrebatadora que já vira. Na cama, com os olhinhos vítreos e boca sorridente, encontrava-se Little Jenny. Logo ao seu lado, Pamela jazia semiconsciente, com vários talhos espalhados pelo corpo, a boca amordaçada e uma faca banhada à sangue empoleirada nos lençóis.

Quando a mãe foi examiná-la, alguns segundos mais tarde, notou que não estava morta, e sim agonizando silenciosamente. Contudo, o que mais chamou sua atenção foi a frase escrita com cortes superficiais, porém terríveis, em seu peito:


"Agora você me ama?".



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Notas finais do capítulo

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