Após a nossa saída, Frank não tornou a falar de Gloria, o que foi estranho. Achei que os dois tinham se desentendido, mas quando perguntei a ele se havia ocorrido algo, ele me respondeu:

-É que... Ela anda estranha.

-Por quê?

Ele suspirou e se sentou no sofá da minha sala. Mikey havia saído, portanto, não havia perigo de ele nos ouvir.

-Bom, digamos que... Ela e Christian se desentenderam para valer...

-Afinal, por que exatamente eles brigam?

-Ela é uma revolucionária de verdade, Gerard. – ele suspirou novamente – E Christian é só um... Um “wannabe”. Ele queria ser como ela, mas não consegue porque é acomodado demais para mudar alguma coisa. Você não pode ficar só de joelhos, a revolução está lá fora. Se quiser fazer uma diferença, vá para fora e conquiste-a. Não adianta ficar aqui, parado, sem fazer nada. Mas Christian não entende isso, e se contenta em encher os ouvidos de Gloria com as conversinhas de sempre. Reclama do governo, reclama das leis... Mas não faz nada.

-Oh... Entendo. Mas como ela está agora?

Frank levantou.

-Venha ver você mesmo.

-X-

-Ok, seja cuidadoso com o que vai falar, ok? Ela está em uma situação delicada.

Assenti. Ambos estávamos na frente da porta da casa de Gloria, e esperávamos que ela abrisse-a. Frank me dava recomendações do que fazer ou do que não fazer e eu escutava atentamente.

-Ahn... Gee...

-Oi?

-Eu precisava falar com você... Eu... Acho que est...

Frank foi interrompido pela porta se abrindo, revelando uma Gloria em um estado...

... Normal.

Fisicamente, ela estava bem. Cabelos presos em um rabo de cavalo, blusa, jaqueta, calça jeans e tênis. Não vi o que havia de errado. Foi somente quando ela proferiu as primeiras palavras foi que eu entendi que, na verdade, havia algo de errado sim.

-Hey, Gloria... Tudo bem? – falei, sorrindo de lado.

-Claro. É, está sim... – disse ela.

Aquela voz...

Acho que nunca vou esquecer como a voz dela estava neutra... Sem emoção alguma... Foi a voz mais triste que já ouvi em minha vida toda.

-Gloria... O que houve com você? – perguntei, franzindo a testa. Ela balançou a cabeça negativamente – Não minta pra mim, eu sei que aconteceu alguma coisa.

-Eu estava apenas sonhando com outro lugar, outra época, de onde minha família veio. Eu posso ouvi-los cantando... Quando a chuva lavou todos esses sonhos dispersos. Eu estou... Morrendo. Por dentro. – ela começou a encarar a janela, com aqueles olhos negros que antes eram extremamente vivos, agora tão opacos.

-Com ela assim – sussurrou Frank para mim – Todos são lembrados de como é bom quando estamos de bom humor. Todo mundo da vizinhança está se afastando dela só porque ela está assim. Eu fui um dos poucos que continuei com ela.

-Gloria, por que está assim? – perguntei, mordendo o lábio inferior. Ela estava tão diferente de uma semana atrás...

-Meu coração está lavado na miséria e encharcado com gasolina.

-Você já ateou fogo a ele, Gloria. – comentou Frank, suspirando profundamente – Não existem mais risadas, as músicas de ontem agora vivem enterradas. – disse ele, fazendo um gesto em direção a um baixo azul escuro que estava encostado e empoeirado no canto da sala – Agora ande, conte a história para Gerard.

Ela suspirou profundamente, pegou um cigarro que estava jogado em cima da mesa e o acendeu.

-Na vida antes da lobotomia... O Christian cantava o elogio do qual todos falam. – ela revirou os olhos – Marcou meu coração com uma memória perdida do final do século. Continuei ouvindo toda aquela sua conversa pseudo-revolucionária, mas... Aquilo é o suficiente para te deixar doente, com vontade de lançar uma pedra e jogar um tijolo. Eu disse a ele que, enquanto o céu estiver caindo, seus sonhos queimarão na terra. Mas ele não me escuta. As lições do Christian é o que ele tem vendido. Essas lições ensinam-nos a reclamar de tudo, mas não agir. Somos todos normais e autocontrolados, mas precisamos ser algo além disso para podermos fazer alguma diferença no mundo. O Christian não entende isso... E eu acabei me desligando disso tudo. Desligando-me dele, do mundo. Como uma lobotomia. Preciso me lembrar de aprender a esquecer... E agora vivo com doses de whisky e cigarros baratos. – ela sorriu, um sorriso vazio. Gloria tragou um pouco do seu cigarro e olhou para o teto – Bom, eu não estou chapada, só estou fodida. Acho que é por isso que não consigo me levantar. Não estou amaldiçoada, porque fui abençoada, não estou apaixonada porque sou uma bagunça... E estou perdida. Perdida como uma fugitiva.

-Você, Gloria... – disse Frank, se sentando no pufe de frente a ela – É uma fugitiva do amor. Porra, você ama o Christian!

-Não amo. – ela fez uma careta e pegou um vidro cheio de whisky que estava jogado em um canto da sala – A brutalidade da realidade é a liberdade que não me deixa... Sonhar.

-Gloria, você não pode viver assim. – argumentei, olhando para ela, com pena nos olhos. O estado mental dela era lamentável... E daqui a pouco, seu estado físico também estará. Com todo esse álcool e essa nicotina, ela vai morrer aos poucos.

-Obrigada por se preocupar, Gerard, mas eu vou ficar bem. – replicou ela, sem humor algum, virando a garrafa de whisky garganta abaixo. Frank suspirou, se levantou e pegou meu braço.

-Anda, Gee. Vamos embora. Ela não quer ouvir a gente.

Mordi o lábio inferior e puxei-o para um canto. Gloria pareceu não se importar, aliás, ela não parecia se importar com nada.

-Frank, eu preciso ajudá-la...

-Como “precisa ajudá-la”?! – sussurrou ele, arqueando uma sobrancelha – Se eu não consegui, quem dirá você!

-Por favor, Frankie, eu preciso tentar...

O baixinho suspirou, mas assentiu.

-Ok, ok. Faça o que achar melhor. Sabe voltar para sua casa sozinho?

-Sei.

-Ok então. Até mais tarde.

Acenei levemente e voltei para perto de Gloria.

-Ahn... Hey...

-Hey. – disse ela.

-Não acha que deveria tentar falar com ele antes de... Se matar aos poucos, como você está fazendo?

Ela balançou a cabeça negativamente.

-Já tentei falar com ele, mas ele não me escuta. – disse ela, virando a garrafa de whisky de novo. Já havia perdido a conta de quantas vezes ela já tinha bebido, mas suas bochechas já começavam a ficar coradas por causa do álcool.

-Gloria, me escuta. – tirei a garrafa de suas mãos e o cigarro também – Você precisa parar com isso, é ridículo ficar sofrendo desse jeito!

-Não, não é! Não há nada mais a fazer, Gerard! Eu não sei mais quem eu sou! É muita dor, é muita liberdade, o que devo fazer com tudo isso?

-Beber e fumar é o que você não deve fazer. – repliquei.

-Mas é frustrante, Gerard! Christian não entende que não é o jeito que você planeja, mas sim o que você faz acontecer... – ela suspirou – E isso dói!

-Você diz que está doendo, pelo menos está sentindo algo.

Ela deu de ombros.

-Não adianta nada sentir algo, quando esse “algo” só te faz morrer a cada dia.

Bufei e me levantei.

-É um mundo frio, Gloria. E as pessoas são ainda mais frias. Você precisa aprender a lidar com isso, ou só vai morrer mais e mais cada dia. – fiz menção de ir até a porta, mas ela se levantou subitamente, segurou meus braços e... Me beijou.